Rui Zink, A Instalação do Medo (2012)
De vez en quando sofro da saudade de ler um bom livro. Bom neste sentido: que me surpreenda, pelo imaginário e pela estrutura narrativa, original, inovadora, irrepetível. Repeti-la seria plagiato (ainda que pelo mesmo autor).
Já li tanto, já li sempre, e às vezes vou antes ler um livro antigo do que algum destes novos que surgem em catadupa e de que não se dá conta, nem mesmo só a folhear.
Penso: estou velha, perdi sensibilidade, capacidade de alguma nova emoção. A culpa é minha.
E de repente, como aconteceu ontem, quando fui ao correio, dá-se o milagre!
Pela mão de um amigo, antigo e que muito admiro, desde os tempos da sua juvenil irreverência (e já nela a criatividade se deixava adivinhar) e do enorme brilho da sua inteligência e da sua cultura, bem maior do que o usual nas antigas décadas da Universidade.
Sempre gostei da inteligência irreverente, porque segura de si: do que sabe e do que ainda vai desejar saber, no decurso da vida. É a boa atitude de livre independência, nada tem a ver com a autocomplacência imbecil dos ignorantes.
Mas dizia eu, ontem tive a graça desse milagre que a leitura, pela mão do amigo Rui Zink, me concedeu. Abri o seu romance e não mais parei.Há muito tempo que não me acontecia. Tive, ao ler A Instalação do Medo, a mesma emoção feita de espanto causada pela leitura de O Processo, de Kafka.
A situação, inesperada;
os diálogos, ao mesmo tempo roçando o hermético ou o absurdo de um Ionesco, reconhecíveis nas nossas perigosas situações actuais, como a forçada instalação dos célebres tdt...( ou será que já eram ddt? );
a violação da privacidade, a dois, como nos tempo da PIDE, que parece ter regressado de forma ínvia, não declarada mas dolorosamente genuína.. ;
e esse medo que vem para se instalar, e já está mesmo muito espalhado por grandes manchas da nossa sociedade (eu diria que até mesmo entre nós, criadores, sob a capa da autocensura...);
e para lá dos diálogos ( que só por si já poderiam ser o suporte de uma bela peça de teatro, ou de uma ópera ao gosto post-moderno)
as subjacentes alusões, ou descrições do que se torna insustentável, a ponto de levar à loucura, à violência e à morte.
Mais do que este medo que se anuncia porta a porta e se instala, de modo viral, incontornável, a descrição de situações com que deparamos dia a dia em destaque na net, nos jornais, na rua, -por todo o lado: a da indiferença perante o outro, despido da sua humanidade, como os judeus o foram outrora, de modo sistemático como nunca se vira até ao tremendo momento da "solução final".
Este medo descrito, de diversas maneiras, é próximo parente dessa ideia de alguma solução final, agora modernizada e mais adequada ao que se julga ser de imediato mais útil: empobrecer, em vez de matar logo. Pois a promoção da pobreza, física, mental, moral - matará tanto ou mais do que as câmaras que consumiram os corpos mas acabaram por elevar as almas: hoje a consciência do Holocausto é mais viva e o apelo a que nunca mais se repita fala alto.
O medo fala baixinho, por isso se tornou em arma melhor escolhida, mais fácil de espalhar e mais actuante: medo e silêncio coabitam nas almas enfraquecidas.
E de novo Rui, cuja obra é a meu ver a mais radical e significativa que nos foi dada este ano coloca na mão da mulher ( que é mãe, ou sonhou apenas ser mãe tentando esconder/salvar o filho? ) um pé -de - cabra com que rebenta a cabeça de um dos instaladores do medo.
Não por acaso é de Alberto Pimenta a epígrafe do cap. IV intitulado Corolário:
Dizes: é necessário construir o futuro.
Agora percebo por que afundas o presente.
Para instalar os alicerces.
Pimenta, o pai dos nossos radicalismos, o da desconstrução da palavra balofa, o criador da performance em que a grande erudição está sempre presente e nos ofusca com o seu brilho. Ele confronta-nos com a nossa ignorância e com muito da nossa preguiça ( a tão louvada paciência lusitana, tão feita de desistência e cobardia...e que um dia rebenta, como a cabeça do outro cai no chão, rebentada).
Ah, mas o que são os alicerces: os do medo, é evidente; e sobre eles se ergueria então o edifício sonhado, o da esfera dos puros, bem no alto, de onde nada do que se passe cá em baixo de arrastamento e miséria possa alguma vez ser visto, ou discutido.
Outros leitores dirão: eu prendi-me mais ao jogo subtil de trocadilhos, bem ao gosto surrealista, evocador talvez de um Boris Vian, por vezes mais do que de um Kafka. Pois sim. O humor (negro) atravessa muitas das páginas de Rui. Mas são páginas que do sorriso (de quem as entenda) logo conduzem ao pensamento profundo que não escondem, revelam, acentuam.
Nesta obra, Rui Zink deixa um grande fresco da nossa sociedade portuguesa e não só, pelo nosso exemplo passa a nova realidade que no mundo se enfrenta : e escusado será dizer, é uma realidade que ele, pela ironia crua nos convoca a combater.