Friday, July 06, 2012

Manuel Alegre, Nada está Escrito

Terá sido este título?
A primeira vez que escrevi um post sobre este novo livro do Manuel foi engolido pelo espaço ( levado por algum maldoso bosão?)
E agora foram precisas várias tentativas até conseguir escolher a imagem da capa. Deve ser do título: nada está escrito, então que nada se escreva a propósito.
Mas sou teimosa.
Manuel Alegre, mesmo quando triste ("de alegre se fez triste"....) é um poeta feliz: encontra as memórias e as palavras certas para o que pretende dizer. 
O livro está dividido em 7 partes, como as 7 partidas do mundo, por aí podemos adivinhar que há sonho nos poemas, há desejo, utopia, - ainda que num momento de especial fragilidade identitária: afinal somos europeus, mas sem o ser plenamente?Somos europeus, se pensarmos na nossa tradição cultural.
O primeiro poema do livro, belíssimo, BALADA DOS AFLITOS é desde logo a prova de que uma cultura entranhada na tradição e na memória literária se actualiza em qualquer momento e se faz portadora de voz outra, nacional, que não nacionalista - e deste modo podemos falar de uma cultura europeia universal, vivida e absorvida pelos seus grandes. Eis a Balada:
Irmãos humanos tão desamparados
a luz que nos guiava já não guia
somos pessoas - dizeis - e não mercados
este por certo não é tempo de poesia
gostaria de vos dar outros recados
com pão e vinho e menos mais valia.


Irmãos meus que passais um mau bocado
e não tendes sequer a fantasia
de sonhar outro tempo e outro lado
como António digo adeus a Alexandria
desconcerto do mundo tão mudado
tão diferente daquilo que se queria.


Talvez Deus esteja a ser crucificado
neste reino onde tudo se avalia
irmãos meus sem valor acrescentado
rogai por nós Senhora da Agonia
irmãos meus a quem tudo é recusado
talvez o poema traga um novo dia.


Rogai por nós Senhora dos Aflitos
em cada dia em terra naufragados
mão invisível nos tem aqui proscritos
em nós mesmos perdidos e cercados
venham por nós os versos nunca escritos
irmãos humanos que não sois mercados.


Balada de ritmo pungente, logo no primeiro verso declara a sua filiação: retoma o lamento do ÉPITAPHE VILLON de François Villon, o grande poeta francês do século XV (1431-?) de vida aventurosa, várias vezes condenado e preso, em 1463 condenado à forca ( é quando escreve a célebre Ballade des Pendus, Balada dos Enforcados) e depois libertado. A seguir a esta data nada mais se sabe da sua vida. 
Ora vem isto a propósito da cultura, da tradição e da memória: todos os bons leitores de poesia conhecem e reconhecem este poeta e a sua poesia sem igual:
Frères humains qui après nous vivez,
N'ayez les coeurs contre nous endurcis,
Car, si pitié de nous pauvres  avez,
Dieu en aura plutôt de vous mercis.
Vous nous voyez ci attachés cinq, six:
Quant de la chair, que trop avons nourrie,
Elle est pièça dévorée et pourrie,
Et nous, les os, devenons cendre et poudre.
De notre mal personne ne s'en rie;
Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre!
.....
E segue, a Balada, com a plena consciência do pecado, mancha da humanidade e não apenas dos condenados, pedindo a Deus que todos sejam perdoados. Este é o refrão com que termina cada uma das estrofes: 
"Mais priez Dieu que tous nous veuille absoudre !". Rogai a Deus que a todos nos absolva!
O poema de Manuel actualiza e politiza o lamento, mas ainda assim mantém um apelo ao divino, como que reconhecendo que entre os homens não tem havido ou não haverá solução. É o lamento de alguém que reconhece que estão perdidos laços e caminhos; que talvez só mesmo a palavra poética ajude à salvação: do poeta de certeza, que se liberta nela e por ela; mas dos outros? Só mesmo de quem lê.... 
E nem de propósito, eis o poema com que encerra a primeira parte do livro:
DEPOIS DO BRANCO
Quem sabe o que na página se esconde
e se dentro do branco está um muro
e se depois do muro não há onde
e se depois do branco é tudo escuro?


Quem sabe o que pode acontecer 
quando ao verso já escrito outro se junta
e tudo está no verso por escrever
e o que se escreve é só uma pergunta?


Quem sabe o que se vê e não se vê
se por dentro do branco apenas cabe
esse nome que nunca ninguém lê
e o verso que se sabe e não se sabe?


Sobre este poema escrevi algumas notas noutro blog, Cultura Visual, ao evocar Malevitch e os seus célebres Quadrados, Brancos e Negros...remeto para lá, pois não caberia aqui outro texto mais longo.
Como é costume, o que se aconselha agora é que se leia o livro, pois se Nunca Nada está Escrito, ainda menos está lido....(ed. D.Quixote, 2012).



2 comments:

Letra1 said...

Bom dia,

gostaria de a convidar a escrever no site Letra1.com. estaria interessada?

Yvette Centeno said...

Aceito com prazer, mas previno que demoro, não escrevo todo tempo...e preciso de saber quem é ou quem são os LETRA 1 ? Não gosto de anonimatos!abraço cordial