Nascido em Barcelona, em 1920, Joan Perucho é outro distinto criador pertencente à geração que deu à Catalunha o nome de Pátria das Artes, com um escol de poetas, pintores, ficcionistas, críticos de arte de renome mundial.
Perucho era Juiz, de profissão, mas foi sempre cultor da Arte e distinguido com vários prémios ao longo da sua vida: em 1995 obteve o Prémio Nacional de Literatura da Generalitat da Catalunha, e em 2002 o prestigiado Prémio Nacional das Letras Espanholas.
Dele observa L.Alberto de Cuenca que “escrevia com uma vertigem expressiva” apoiada em sólida erudição, conferindo à sua escrita uma originalidade marcante no conjunto das literaturas da Península.
É extensa a sua bibliografia, com obras de poesia publicadas desde 1947 e de ficção desde 1953, até 2001.
Aqui deixarei apenas, como já fiz com os outros autores escolhidos, a versão livre do conjunto que foi apresentado em 1996 na Fundação Gulbenkian.
Iremos encontrar tanto a emoção da memória e da cultura (nos poemas dedicados a Vicente Aleixandre e Dámaso Alonso) como a solidariedade com os que sofreram as atrocidades da Guerra Civil de Espanha (como por exemplo no poema Os Soldados ou em Elegia À Terra E Aos Mortos de Gandesa, pequena localidade que foi palco da Batalha do Ebro).
Reencontro em Perucho, como nos outros da sua geração, um amor à cultura que em Paris, sobretudo, nos seus grandes poetas, ( Baudelaire, mas poderia citar tantos) no rio Sena de águas transformadoras vai nos anos da Guerra e das grandes Ilusões (penso em René Clair, penso em Prévert, o amigo de Picasso) manter viva e ardente a chama da criação.
Poderá ser mais livre e radical ou mais factual e descritiva, mas será sempre testemunho do Homem que respeitou o sofrimento e procurou a mudança.
AS FIGURAS DE CERA
Reinvindicam um amor eterno e imarcescível.
Paradas no tempo descem às paragens
que causam horror aos humanos. Mas ficam sempre
com os seus sorrisos extáticos, com desvelo seguro
e não com esta vida impura que envelhece e deforma.
“ O mort, vieux capitaine, il est temps, levons l’ancre”.
Mas estes lábios femininos que suspiram imóveis
não podem dizer todo o horror de Carlota Corday
nem o da Belle Heaulmière que amou o poeta.
Um grito, o pestanejar, o suave gesto daquela mão
tudo agora permanence imutável na sua aparência mais profunda
O crime é na verdade sangrento; o amor esta cera amarelecida.
OS SOLDADOS
Avançam lentamente pelo caminho enlameado
mas agora já não pensam na mulher nem nos filhos
nem na casa que deixaram para trás, abandonada.
Macilentos
avançam e cantam hinos de violência sob o sol
duma terra áspera e enegrecida. A morte, contudo,
empurra-os para a frente
nas suas longas fileiras de tristes destinos, sombras
do que foram outrora. Jamais voltarão a encontrar
a paz daquelas horas que viveram, longínquas
como o écran branco do cinema, como na sede
daquele domingo em que ofereceram o seu tímido amor.
O PAÍS DAS MARAVILHAS
A uma hora de caminho da montanha sagrada
quando os dentes riem sozinhos de forma glacial
e as palmas das mãos voam pelo ar
desafia-se o que é imprevisível
o lamento dos violinos
a íntima tragédia.
Não há escola como a da vida.
Mas há o restaurante económico,
aquele das palavras cozinhadas, recozinhadas,
e os beijos na face com pública virtude.
Amanhã, Senhora minha, partiremos em viagem.
Não sei se jamais nos voltaremos a encontrar.
ELEGIA À TERRA E AOS MORTOS DE GANDESA
Triste flôr de Dezembro
no vento enraizada
nutrida pelo sangue de tantos mortos que nesta terra
foram crescer
em mato e em arbustos;
que na casa paterna
e nss chuvas de Inverno
foram hóspedes alegres
ares cinzentos, miúdas flores do bosque
que, com o aroma do tempo,
perderam os júbilos agrestes da Primavera
tristes alegrias que foram outrora graciosamente concedidas.
Seca e miserável terra. Avaramente apostada em
sobreviver ao pó
daquelas torrentes desoladas
e à infinita melancolia do camponês que chora
sob o grito do abutre.
Dura terra que amo na sua agonia
dura agonia minha
dentro do peito guardada.
Não, não há semente que possa fertilizar a rocha.
Alimentada pelo sangue destes mortos que floriram
em ásperos tomilhos
nada te acompanha a não ser o silêncio,
a espera abandonada,
a imensidade augusta e muda do firmamento.
A BALADA DO SENA
Um rosto difuso passeia sob as pontes
espreita quilhas, o cinzento da madrugada,
vidas entrelaçadas, chuvosas raízes,
mil desejos que se perdem como luzes na água espessa.
São Luís reclinado na Sainte Chapelle.
Os anos passam a voar.
Uma senhora estrangeira penteia-se na parede
e uma rosa floresce no olho esquerdo do grácil unicórnio.
Voam os estandartes. Em Saint-Julien-le-Pauvre
dizem Missa perpétua pelos afogados nocturnos.
Sinto como sobe, agora, a maré.
Como sobe a maré.
E os lábios de Paris.
Algo de fosforecente passa sob a água.
E há um restaurante chinês na rua Grégoire de Tours.
Gertrud Stein morreu faz agora sete anos
com uma doce melancolia perfumada.
Au revoir, mes amours.
Quando o movimento devora este silêncio
uma voz declama, boulevard Saint-Germain,
os versos de uma balada misteriosa e obscura.
Mas sobe-me pelos pés a relva, o mato,
e também o sangue do meu país.
Debruço-me a olhar o Sena.
Os pássaros de Abril fugiram tristemente.
Penso na minha vida,
alguns dias alegres e distantes.
Outros olhos contemplarão o Sena, penso.
A terra, nos meus olhos, florirá alegremente.