Mão amiga ofereceu-me este livro, obra-prima de invenção e bom gosto, de todos os pontos de vista: o objecto-livro, com o papel, o design da paginação e da letra, tudo agradável ao leitor que pega nele e o abre, ao acaso.
E a seguir o imenso prazer da descoberta de um autor que primeiro dissera que queria publicar três livros, um da infância, outro da mocidade e um último da velhice.
E que afinal, depois de ter escrito os primeiros textos, simplesmente conclui: "eu só tive infância".
Ah, poeta feliz, de escrita tão inteligente e tão subtil!
Com a sorte de ter na filha a ilustradora que nos oferece para cada texto poético belas iluminuras, também elas inspiradas, oníricas por vezes, e sempre coloridas com os tons mais íntimos e discretos da imaginação: também ela, por certo, dirá com o pai que sempre teve infância.
Manoel de Barros, que agora descubro, faz-me lembrar por vezes o imaginário de Guimarães Rosa.
Ambos nos dão a conhecer outras linguagens, outros seres de paisagens que nos são ao mesmo tempo longínquas e muito próximas: gente de sabedoria herdada, sem contaminação.
Como não invejar alguém que se dá ao luxo de poder afirmar:
" Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos.Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação (...)Então eu trago das minhas raizes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina (...) Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. Era o menino e o rio. Era o menino e as árvores"(p.187).
Penso na mística comunhão de um São Francisco de alma pura.
E tabém penso num Alberto Caeiro - o tal que Fernando Pessoa desejava ser, mas não era: o místico que pastoreava pensamentos, em vez de se estender simplesmente na terra, a olhar as copas das árvores, sendo de verdade a terra, o sol, o rio com a sua água.
Lição que Manoel nos dá, de sermos, em vez de querermos ou de fingirmos ser.
Leio, e agradeço esta prenda que vem do Longe.