Sunday, May 09, 2010

Cesário Verde


Cesário realista é também idealista.E tal como os outros também leu Baudelaire.
As suas mulheres,tanto as as vendedeiras que atravessam as ruas, como as outras que ele idealiza, frágeis ou fortes, humildes "enfezaditas" ou burguesas "frígidas" fatais são, mais do que figuras que despertem sentimentos, suportes para falar da vida e do quotidiano da cidade. O seu Livro é o livro da Lisboa e da sociedade do seu tempo.Poderíamos dizer que há em Cesário um sociólogo, um político apurado, disfarçado de poeta. Remeto para uma obra que não perdeu actualidade:
de Helder Macedo, Nós.Uma leitura de CESÁRIO VERDE, Plátano ed., s.d.
Em epígrafe, Helder Macedo coloca um poema de Fernando Pessoa /Alberto Caeiro que elegeu Cesário como Mestre:

Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas coisas,
É o de quem olha para as árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

Não se poderia escolher melhor texto para enquadrar o que foi a obra de Cesário: poeta também ele "do campo na cidade" como Pessoa desejou, algo artificialmente, que fosse o seu Alberto Caeiro, o poeta que pastoreava os pensamentos como se fossem sensações...
Cesário é um poeta de sensações, mas que não perde o sentido crítico nem o gosto de uma ironia que se sobrepõe à intenção poética, prejudicando-a por vezes. Quero dizer que essa intenção se banaliza, ao ser simplificada num exercício de humor por vezes demasiado caricatural.
O seu tratamento da mulher - entre elas a de uma Passante - varia conforme o contexto em que a coloca e descreve.
Como que inspirado em Arcimboldo acontece-lhe ver no corpo de uma pobre e magra vendedeira de hortaliça a própria terra-mãe, gigantesca, de grandes seios "injectados" e opulentas "carnes tentadoras". É o seu modo de trazer a abundância imaginada do campo para dentro da paisagem cinzenta da cidade:
...
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.
...
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros nas cenouras.

Como observa Helder Macedo, " O ser humano vegetal que emerge da cornucópia trazida para a cidade pela frágil mensageira do campo é uma Deusa-Mãe arquetipal, uma personificação da Natureza (...) é a antítese do corpo da vendedeira que o transporta, caracterizada inicialmente como 'rota, pequenina, azafamada, esguedelhada, feia' (estrofe5), 'magra, enfezadita' (estrofe 19)'descolorida nas maçãs do rosto'/E sem quadris na saia de ramagens( estrofe 16).
Trata-se do poema Num Bairro Moderno e como diz Helder Macedo, que o comenta, nele "se dramatiza uma invasão simbólica da cidade pelo campo", evocando imagens e valores que na cidade de há muito se perderam (p. 147 e seguintes).
Noutro poema célebre, Na Cidade, que Stephen Reckert também estuda, na companhia de Helder Macedo, a cidade é descrita como velha Babel, corruptora:
...Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora
.....
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.
....
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava - talvez o não suspeites!-
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
....
Atravessavas, branca, esvelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.
.....
E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi então que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu que sou hábil, prático, viril.

O poema termina com a crítica que era, afinal, o fio do poema: não a jovem passante, mas os outros, os padres, "bando ameaçador de corvos pretos", os funcionários, os burgueses, em suma, sendo o seu olhar de poeta "viril" um artifício mais da pérfida cidade.Mas é esta o centro da atenção: a cidade e a sociedade revolta, degradada, não a pálida passante, que no torvelinho da ironia se esfuma e se apaga.



AS PASSANTES



Um dos poemas franceses de Rilke (1875-1927) trouxe-me outros à memória, entre eles o célebre de Baudelaire, que fez do motivo da "Passante" um verdadeiro topos literário, como escreve Stephen Reckert a propósito dessa Passante e de várias outras, de Cesário, Pessoa, Sá-Carneiro no seu ensaio "A Passante e o Futuro do Passado" (em Fernando Pessoa, tempo. solidão. hermetismo, Moraes ed.,Lisboa, 1978).
Mas começo com Rilke:
La Passante d'Été
Vois-tu venir sur le chemin la lente, l'heureuse,
celle que l'on envie, la promeneuse?
Au tournant de la route il faudrait qu'elle soit
saluée par des beaux messieurs d'autrefois.

Sous son ombrelle, avec une grâce passive,
elle exploite la tendre alternative:
s'effaçant un instant à la trop brusque lumière,
elle ramène l'ombre dont elle s'éclaire.

Por comodidade usarei a bela tradução de Gabriela LLansol, ainda que discorde da tradução de Passante por Passeante.
Aquela que passa e que vemos passar não representa, como arquétipo, o mesmo que aquela que passeia. Mas respeito a liberdade poética da tradutora:
A Passeante de Verão
Já vês a lenta e feliz,
aquela que se inveja, a passeante?
Na dobra da estrada, importa que seja
saudada pelos belos senhores de antigamente.

Debaixo da sombrinha, com uma graça passiva,
vai fazendo render a suave alternativa:
por um instante apagando-se a luz demasiado viva,
volta a chamar a si a sombra que a ilumina.

No ciclo de poemas franceses transparece por um lado a experiência do tempo que Rilke viveu em Paris, secretariando o temível e ingrato Rodin, enquanto se absorvia na escrita da sua obra maior, ainda que pouco lida em comparação com as Elegias de Duíno ou os Sonetos a Orfeu: Os Cadernos de Malte Laurids Brigge. Aqui se funda uma experiência literária, uma técnica de narração inspirada e inovadora, que fornece em parte as bases do chamado movimento Modernista. A um espaço do presente, descrito com olhar minucioso, a contraposição de um tempo que é passado e só no dizer da escrita se actualiza.
Os Cadernos...cuja edição data de 1910, começaram a ser a ser escritos em 1907- 1908, a partir de notas de memórias e viagens e sobretudo da estadia em Paris.
Os amigos de que se rodeava eram grandes vultos da época: Rodin, Emile Verhaeren, André Gide, Romain Rolland. No salão de 1907 descobriu a obra de Cézanne, e como leitura de sempre encontrou em Paul Valéry, que traduziu para alemão, o seu guia e influência.
A Paris de Rilke era o museu do Louvre, o Jardin des Plantes e du Luxembourg, as ruas que percorria a pé ou contemplava de longe, a gente anónima, sofredora e pobre, em contraste com a élite da cultura. Em simultâneo o grande isolamento do trabalho. Foi para ele não a cidade das luzes da ópera, dos musicais ou do teatro, mas a cidade do trabalho e mais trabalho: nos primeiros volumes de poesia, e nas notas dos Cadernos.
Vejamos agora o belo poema de Baudelaire (1821-1867) como que fundador do motivo e do mito que por trás dele se esconde (do Belo passageiro, da Beleza efémera, da Poesia, em suma, no que tem de inatingível).
A Une Passante
La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair...puis la nuit!- Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?

Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu na sias où je vais,
O toi que j'eusse aimée, o toi qui le savais!
(Les Fleurs du Mal, 1861)

Diferentes épocas, diferentes sensibilidades, diferentes reacções a uma passante: em Baudelaire, cultor de uma libertinagem assumida, a do excesso da vida e seus prazeres - neste caso a bebida - cortada no entanto pelo imperativo do poema e da absoluta necessidade de o dizer, de proclamar esse último reduto da alma que se encontra e se perde na busca do Absoluto indicível.
Daqui podíamos, sem esforço, passar para os poemas em que se descreve a temível, a avassaladora Beleza, o tal Belo do mundo platónico das Ideias, da Essência fundadora do Ser, ( o Belo, o Bom, o Verdadeiro ).
La Beauté (XVII)
Je suis belle, ô mortels! comme un rêve de pierre,
Et mon sein, où chacun s'est meurtri tour à tour,
Est fait pour inspirer au poète un amour
Eternel et muet ainsi que la matière.
...
etc. ou ainda:
Hymne à la Beauté (XXI)
Viens-tu du ciel profond ou sors-tu de l'abîme,
O Beauté? ton regard, infernal et divin,
Verse confusément le bienfait et le crime,
Et l'on peut pour cela te comparer au vin

Tu contiens dans ton oeil le couchant et l'aurore;
Tu répands des parfums comme un soir orageux;
Tes baisers sont un philtre et ta bouche une amphore
Qui font le héros lâche et l'enfant courageux.

Sors-tu du gouffre noir ou descends-tu des astres?
Le Destin charmé suit tes jupons comme un chien;
Tu sèmes au hasard la joie et les désastres,
Et tu gouvernes tout et ne réponds de rien.

Tu marches sur des morts, Beauté, dont tu te moques;
De tes bijoux l'Horreur n'est pas le moins charmant,
Et le Meurtre, parmi tes plus chères breloques,
Sur ton ventre orgueilleux danse amoureusement.
....
De Satan ou de Dieu, qu'importe? Ange ou Sirène,
Qu'importe, si tu rends, - fée aux yeux de velours,
...
L'univers moins hideux et les instants moins lourds?

Este sentido trágico do Belo, só é comparável, em Rilke, ao sentido trágico do Anjo nas Elegias de Duíno. Há contudo mais diferenças a notar entre estes dois poetas: a sensualidade de Baudelaire, explícita em relação ao corpo da mulher, ou a qualquer metáfora do feminino, não se encontra em Rilke, que envolve o feminino no véu de uma espiritualidade que o sublima- como no caso da Portuguesa, ou das referências aos amantes perfeitos.
Baudelaire vive o corpo, ama o corpo, descreve-o, como noutro poema, La Chevelure, e não perde a noção dos sentidos nem quando o corpo é velho, feio, deformado, repulsivo, como em Une Charogne. Disso não faltam exemplos, bastará ler ainda dos Tableaux Parisiens, além do poema da Passante a Danse Macabre, para ficar por aqui.
Cultiva-se um decadentismo que esconde uma ferida profunda, a do amor do Belo representado num Eterno Feminino irrecuperável.
Stephen Reckert encontra em Manuel Bandeira, poeta dos nossos dias (penso no século XX) a expressão de um mesmo motivo em idêntica situação - de passar- que desperta " a curiosidade erótica como meio de cognição, por assim dizer, metafísica, transmutando a 'passante' média ou alta burguesa em princesa de conto de fadas, com o fim evidente de acentuar até ao extremo a sua inacessibilidade" (p. 51 da obra citada):
Aquela cor de cabelos
Que eu vi na filha do rei
-mas vi tão subitamente-
Será a mesma cor da axila,
Do maravilhoso pente?
Como agora o saberei?
Vi-a tão subitamente!
Ela passou como um raio:
Só vi a cor dos cabelos.
Mas o corpo, a luz do corpo? ...
Como seria o seu corpo?...
Jamais o conhecerei!
( A Filha do Rei )

Poderíamos, quanto aos baudelairianos nacionais, ir então espreitar Cesário Verde, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, na companhia de Reckert. Mas ficará para outra vez.
São de Klimt as imagens escolhidas.




Thursday, May 06, 2010

Árvores do mundo

Magdalena Tulli é uma escritora polaca cuja obra não é por enquanto conhecida em Portugal.
A versão inglesa deste seu primeiro romance, Sonhos e Pedras, datado de 1995, permite desde logo adivinhar uma grande sensibilidade poética e um forte poder descritivo. Magdalena é psicóloga e tradutora, tendo traduzido Marcel Proust e Italo Calvino, escolhas que nos confirmam a impressão com que ficamos ao ler a sua prosa: a um poderoso imaginário da cidade, Varsóvia, neste caso, une-se a meditação de um Tempo que se reconstrói nela e a partir dela, como a Árvore do mundo descrita na primeira página.
É deste modo, simbólico mas muito directo, que a autora nos coloca no Centro - da cidade e do mundo- sem mais perda de tempo ( o Tempo, o precioso transformador de pedras e de sonhos).
Cito do primeiro parágrafo:
" A ÁRVORE DO MUNDO, como qualquer outra árvore, no começo da estação da vegetação (esta é a frase que o tradutor inglês escolheu, eu talvez dissesse antes floração), abre pequenas e delicadas folhas douradas que com o tempo adquirem um tom verde escuro e um brilho prateado. Depois tornam-se amarelas e vermelhas como se estivessem a arder em chama viva e depois de terem ardido...tornam-se castanhas e caem no chão...como papéis transformados em cinza..." (p.7).
Esta árvore é uma metáfora da Árvore da Vida, como se vê adiante:
" Quando a estação da vegetação chega ao fim a árvore do mundo está carregada de frutos. Os frutos amadurecem, caem, apodrecem. Em cada fruto há uma semente e nessa semente o germe de uma árvore e dos seus opostos, a copa e a raiz...O fruto pertence à árvore mas contém em si mesmo uma futura árvore completa, em simultâneo com o fruto que nela vai nascer "(p.7-8).
Não será necessário recorrer à primeiríssima imagem da árvore Ygdrasil, a árvore cósmica que une céu e terra, fortalecendo o poder da imagem do círculo como símbolo de totalidade contida e perfeita em si mesma.
Outras imagens ocorrem, como a árvore da Kabala, de raízes plantadas no céu e copa enterrada na terra, como se a perfeição do redondo da copa (o Todo) só nas profundezas mais recônditas do ser e da existência fosse possível de encontrar.
Mas a autora não pretende, desde logo, apontar uma via mística e sim conduzir o leitor ao coração da cidade:
" As cidades que amadurecem na árvore do mundo estão contidas na sua forma, como maçãs. Cada uma é igual à outra . Cada uma é diferente" (p.8).
Seguem-se descrições :um rio, ruas, um jardim zoológico, habitantes que sabem a côr das nuvens e que sabem ainda que a cada coisa que lhes é dada corresponde outra que lhes é tirada. Cada olhar é acompanhado de uma consciência de perda" (p.8).
Deste modo, reflectindo sobre o que se perdeu ou perde ainda e o que se poderia ter ou ter tido, a autora inscreve o tema central do que vai ser esta obra: a partir da imagem da árvore do mundo, seus frutos e sementes, a maçã da cidade, suas pedras, seus espaços e tempos, sendo o Tempo o grande escultor que tudo transforma e recupera.
Proust anda próximo, principalmente das últimas páginas, em que já se fala do tempo abertamente.
Mas por enquanto a proximidade que se sente é mais a de um Blake ou sobretudo de um Rilke, de cujas árvores, frutos, copas redondas, sombras, não se pode escapar ao ler este princípio.
Falemos pois de Rilke e da sua nogueira, na cidade de Paris:
Árvore, sempre no meio
de tudo o que a rodeia
Árvore que saboreia
a cúpula inteira dos céus.
O imaginário do ser redondo, para usar as palavras de Gaston Bachelard, impõe-se aqui:
" O mundo é redondo em volta do ser redondo" (G.B., La Poétique de L'Éspace,p. 214).
E os versos de Rilke vão erguendo em direcção a Deus a árvore que escolheu:
Deus vai aparecer~lhe
e para que tenha a certeza
dá forma redonda ao seu ser
e estende-lhe os braços maduros.

Árvore que talvez
pense por dentro.
Árvore que se domina
dando-se lentamente
a forma que elimina
os acasos do vento!

Podemos falar, com Bachelard, de um imaginário do ser perfeito, neste poema de Rilke; mas podemos, com Magdalena Tulli, nesta obra, igualmente falar de uma simbólica muito própria, muito íntima, da sua relação com a cidade:
o fruto, com o tempo, com o verme que o rói; e a semente, com o mesmo tempo, do renascimento perpétuo.
Os sonhos, no romance de Magdalena, acabam por moldar as pedras, devolvendo-lhes a forma primitiva ou parte dela; vencem os "acidentes" da matéria, sem permitir que a marca funda da existência se disperse.
A árvore, com o seu fruto, é forma contida na multiplicidade do devir.

(Dreams and Stones, trad. Bill Johnston, archipelago books, 2004)