Thursday, May 06, 2010

Árvores do mundo

Magdalena Tulli é uma escritora polaca cuja obra não é por enquanto conhecida em Portugal.
A versão inglesa deste seu primeiro romance, Sonhos e Pedras, datado de 1995, permite desde logo adivinhar uma grande sensibilidade poética e um forte poder descritivo. Magdalena é psicóloga e tradutora, tendo traduzido Marcel Proust e Italo Calvino, escolhas que nos confirmam a impressão com que ficamos ao ler a sua prosa: a um poderoso imaginário da cidade, Varsóvia, neste caso, une-se a meditação de um Tempo que se reconstrói nela e a partir dela, como a Árvore do mundo descrita na primeira página.
É deste modo, simbólico mas muito directo, que a autora nos coloca no Centro - da cidade e do mundo- sem mais perda de tempo ( o Tempo, o precioso transformador de pedras e de sonhos).
Cito do primeiro parágrafo:
" A ÁRVORE DO MUNDO, como qualquer outra árvore, no começo da estação da vegetação (esta é a frase que o tradutor inglês escolheu, eu talvez dissesse antes floração), abre pequenas e delicadas folhas douradas que com o tempo adquirem um tom verde escuro e um brilho prateado. Depois tornam-se amarelas e vermelhas como se estivessem a arder em chama viva e depois de terem ardido...tornam-se castanhas e caem no chão...como papéis transformados em cinza..." (p.7).
Esta árvore é uma metáfora da Árvore da Vida, como se vê adiante:
" Quando a estação da vegetação chega ao fim a árvore do mundo está carregada de frutos. Os frutos amadurecem, caem, apodrecem. Em cada fruto há uma semente e nessa semente o germe de uma árvore e dos seus opostos, a copa e a raiz...O fruto pertence à árvore mas contém em si mesmo uma futura árvore completa, em simultâneo com o fruto que nela vai nascer "(p.7-8).
Não será necessário recorrer à primeiríssima imagem da árvore Ygdrasil, a árvore cósmica que une céu e terra, fortalecendo o poder da imagem do círculo como símbolo de totalidade contida e perfeita em si mesma.
Outras imagens ocorrem, como a árvore da Kabala, de raízes plantadas no céu e copa enterrada na terra, como se a perfeição do redondo da copa (o Todo) só nas profundezas mais recônditas do ser e da existência fosse possível de encontrar.
Mas a autora não pretende, desde logo, apontar uma via mística e sim conduzir o leitor ao coração da cidade:
" As cidades que amadurecem na árvore do mundo estão contidas na sua forma, como maçãs. Cada uma é igual à outra . Cada uma é diferente" (p.8).
Seguem-se descrições :um rio, ruas, um jardim zoológico, habitantes que sabem a côr das nuvens e que sabem ainda que a cada coisa que lhes é dada corresponde outra que lhes é tirada. Cada olhar é acompanhado de uma consciência de perda" (p.8).
Deste modo, reflectindo sobre o que se perdeu ou perde ainda e o que se poderia ter ou ter tido, a autora inscreve o tema central do que vai ser esta obra: a partir da imagem da árvore do mundo, seus frutos e sementes, a maçã da cidade, suas pedras, seus espaços e tempos, sendo o Tempo o grande escultor que tudo transforma e recupera.
Proust anda próximo, principalmente das últimas páginas, em que já se fala do tempo abertamente.
Mas por enquanto a proximidade que se sente é mais a de um Blake ou sobretudo de um Rilke, de cujas árvores, frutos, copas redondas, sombras, não se pode escapar ao ler este princípio.
Falemos pois de Rilke e da sua nogueira, na cidade de Paris:
Árvore, sempre no meio
de tudo o que a rodeia
Árvore que saboreia
a cúpula inteira dos céus.
O imaginário do ser redondo, para usar as palavras de Gaston Bachelard, impõe-se aqui:
" O mundo é redondo em volta do ser redondo" (G.B., La Poétique de L'Éspace,p. 214).
E os versos de Rilke vão erguendo em direcção a Deus a árvore que escolheu:
Deus vai aparecer~lhe
e para que tenha a certeza
dá forma redonda ao seu ser
e estende-lhe os braços maduros.

Árvore que talvez
pense por dentro.
Árvore que se domina
dando-se lentamente
a forma que elimina
os acasos do vento!

Podemos falar, com Bachelard, de um imaginário do ser perfeito, neste poema de Rilke; mas podemos, com Magdalena Tulli, nesta obra, igualmente falar de uma simbólica muito própria, muito íntima, da sua relação com a cidade:
o fruto, com o tempo, com o verme que o rói; e a semente, com o mesmo tempo, do renascimento perpétuo.
Os sonhos, no romance de Magdalena, acabam por moldar as pedras, devolvendo-lhes a forma primitiva ou parte dela; vencem os "acidentes" da matéria, sem permitir que a marca funda da existência se disperse.
A árvore, com o seu fruto, é forma contida na multiplicidade do devir.

(Dreams and Stones, trad. Bill Johnston, archipelago books, 2004)

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