Num artigo que escrevi há algum tempo para a revista MEALIBRA, ocupei-me desta obra emblemática de Arpad, Le Couple.
A exposição agora oferecida pela fundação EDP escolhe como imagem fundadora exactamente este quadro, tão carregado de tradição e simbolismo.
O subtítulo, Vieira da Silva Arpad Szenes e o castelo surrealista, é muito interessante pois sabemos como os surrealistas valorizavam o exercício da libertação (automática ou não) das imagens e arquétipos do inconsciente, para eles o verdadeiro repositório do possível ambicionando a passagem a acto.
Verdadeiro fio condutor serão os esquissos que conduzem ao produto final do óleo.Já no desenho do convite da exposição está presente a mancha circular, laranja, que envolve os corpos, aludindo à esfera andrógina primordial.
O título do meu artigo, que citarei, era ANDROGINIAS: DE KLIMT A ARPAD SZENES.
Aí escrevo que o par está inserido numa representação mandálica, definida pelo arco superior, quase disco solar, que os limites do cavalete (à esquerda do observador) e da perna e tampo da mesa (à sua direita) ajudam a definir.
As cartas na mesa permitem que também nós, de modo surrealista, façamos uma interpretação bem subjectiva: são as cartas do destino que os uniu, está feito o jogo, as cartas estão lançadas, face a elas o par unido abraça-se. O negro da figura feminina evoca o negro da alma, a pulsão que será convertida na unidade da vida e obra.
A figura masculina tem, pelo contrário, os pés bem assentes no chão, suporte da realidade objectiva; a mão direita ( a razão) apoia-se na mesa, a esquerda ( o sentimento) abraça já a mulher ( o Eterno Feminino que será sempre o seu); marido e mulher figuram aqui o par andrógino primordial, vendo-se bem como a mulher repousa no marido, na sua energia luminosa, com a cabeça encostada à dele e o braço passado à volta do seu pescoço.
O elemento masculino revela-se como suporte delicado de um feminino sombrio ( o negro do vestido é poderoso), como a razão actuante se revelará, na criação, como suporte do caos negro do inconsciente libertado.
A obra de arte exige ordem, e a estrutura que ordena o conjunto é tão ou mais importante do que o próprio impulso de criação. E também na memória artística influi a tradição: cultural ou outra.
Teríamos Platão, para a memória do andrógino, e a perfeição primordial que o mito simboliza.
Teremos Klimt, com O Beijo, para a memória artística mais próxima de Arpad.
O Par evoca O Beijo:
Um mesmo enquadramento mandálico, no caso de Klimt com o brilho excessivo das pedrarias de que ele tanto usou e abusou nas sua produção. O simbolismo andrógino de Klimt é mais directo, o de Arpad mais discreto. Em Klimt os corpos ocupam todo o espaço, em Arpad há espaço (como o teve na vida) para o atelier e a obra ali mesmo apontados.
À representação sensual e orientalizante de Klimt podemos opôr a leitura moderna que Arpad nos deixa do mito (colectivo, platónico, tanto como pessoal, da vida íntima de marido e mulher, ambos artistas).
O Par é um quadro que ilustra a união de dois artistas que se amam mas não deixam de ser pintores, vivendo essa união no atelier onde uma outra parte da sua vida irá decorrer para sempre.
Se Klimt funde os amantes num beijo Arpad une os artistas na obra. A sua marca será ao mesmo tempo pessoal e colectiva, mais moderna e mais universal: pois na união tanto ele como Helena, sua mulher, conservam a sua identidade própria; entregam-se, e encontram-se, não se perdem. A própria composição aponta estes detalhes : o par está atrás da mesa, que de algum modo interrompe o que se poderia julgar fusão total; e as ramagens altas do vaso ultrapassam as cabeças encostadas, desviando um pouco mais o nosso olhar, obrigando a que se saia do exclusivo ângulo do par .
Recordo uma frase de Paula Rego: " um quadro não é uma narrativa, é uma composição, temos de considerar os planos, os ângulos, os elementos verticais, horizontais, circulares,etc. inscritos na composição e ainda o jogo das cores e da matéria ou matérias utilizadas...".
Para além do círculo solar que envolve Arpad e Helena daremos ainda atenção ao negro e ao branco, pares de opostos que ( como no jogo da consciência e do inconsciente tão valorizado pelos surrealistas ) nos permitem uma leitura mais vasta, própria dos grandes arquétipos fundadores.
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