A revista NERVO, de literatura e arte, editada por Maria F. Roldão, abre o ano de 2024 com uma capa de Nuno Félix da Costa: foto de Fernando Pessoa em frente (enfrentando? ) do Coelho de Alice. Tal como nos desenhos que ilustram a primeira edição de Lewis Carroll, aqui o coelho é da altura de Pessoa. Um frente a frente simétrico, embora se pressinta que toda a simetria se esgota aí. Serão muito diferentes, nesta fotografia, embora no livro de Carroll o coelho possa ser considerado o condutor de Alice, que vai correr atrás dele até cair na sua toca, um poço de mistério profundo onde tudo pode acontecer e vai acontecendo. Alice, com o coelho, vive uma série de peripécias que a fazem crescer ao longo de uma narrativa que todo o tempo surpreende. Pessoa, pelo contrário, frente ao coelho não deixa de se revelar homem crescido, sisudo mesmo, e quem sabe se incapaz de toda e qualquer aventura que surpreenda, como as de Alice.
O que levou então o autor, neste caso da foto, Nuno Félix, a colocá-los frente a frente? E que título se daria a esta obra? Pessoa na toca do coelho? Impossível, pois o poeta da Mensagem e da Ode Marítima nunca seria capaz de correr atrás de um imprevisto, ele que sofria de um mal terrível, o da permanente e paralisante interrogação do destino, o seu e o dos outros, no somatório do país e do mundo.
O coelho levou Alice a correr o mundo, da fantasia e da vida. Ela foi sempre andando, por aqui e por ali. Ele ficou sempre parado, inquirindo, é certo, mas os mistérios nunca se lhe revelaram. Alice, podemos dizer que foi de certa maneira iniciada com a intervenção do coelho. Já Pessoa desejou profundamente uma iniciação que não chegava. As correrias do coelho, que se dizia sempre atrasado (até chegar à Rainha de Copas) não eram as de Pessoa, que podemos dizer com justiça que esteve sempre adiantado e foi sempre adiado no seu desejo profundo, talvez por isso mesmo. O coelho era prenda de crianças ainda em desenvolvimento, emocional (e sem querer ofender leitores mais sensíveis) e sexual. O coelho da reprodução, necessidade da espécie. De frente para o sisudo Pessoa, escolhido por Nuno Félix, percebe-se que o condena, por ser um pensador abstinente. Por sua vez o ar de Pessoa não disfarça como as correrias do coelho o deixariam ainda mais quieto e indiferente.
Não era homem de pressas, e os desvarios de um Álvaro de Campos não eram mais do que isso : excitação puramente intelectual, quem sabe se com algum desejo oculto de escandalizar o burguês do seu tempo, mas na prática não o levando a mexer-se da cadeira, ou do encosto à cómoda onde gostava por vezes de escrever em pé, como Montaigne no seu castelo. Pessoa o pensador, frente ao coelho reprodutor, está dito. Vendo bem, o coelho assusta tanto, quando olhamos para ele, como Pessoa, o venerado poeta. Não há riso, naquela foto. E sabemos que Alice, na sombra, se interroga por trás de ambos.
Alusão a uma Anima que embora ausente da foto se vai manifestando através deles? Um sinal que ao contrário do que afirma Hoelderlin está mesmo carregado de sentido?
Félix deixa-nos então à mercê não de uma resposta ao desafio, mas de uma pergunta, quem sabe sem resposta.
Mais fácil é compreender as duas outras ilustrações, com ouras duas fotos, Pessoa e Camões frente e frente. Na primeira entrepõe-se entre Pessoa e o seu sonho de Super-Camões um corpo de mulher, oferecida, de costas. A lição é directa não haverá mulher, nem corpo tentador que se interponha entre Pessoa e o seu sonho. Na segunda foto já nem sequer a mulher está presente. O desejo do feminino, se alguma vez existiu, foi apagado.
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