ANTÓNIO CAEIRO, O QUE É A FILOSOFIA?
A explicação que dá título a esta edição, da Tinta da China, 2023, responde a uma pergunta, sobre o que é a filosofia, começando pela obra de Platão e Aristóteles, que ambos dão início a uma interrogação que ora corresponde ora não, ao que mais nos inquieta: o que somos, nesta vida que é dada, e o que dela fazemos, com o que sabemos, com o que procuramos saber.
António Caeiro, de currículo vasto, nesta e noutras áreas, como na filologia a origem do sentido das definições que se atribuem à filosofia, ajuda a que se entenda melhor a definição usual: é o amor da sabedoria.
Mas definir o que é a sabedoria é uma tarefa difícil. Bom senso, experiência de vida, conhecimento num grau mais elevado do que é o ser, ou mais ainda do que é o universo criado? Do que é o seu criador? Ou ainda conhecimento de si, do que se é, o célebre nosce te ipsum? Conhece-te a ti próprio (porque assim pela via do que és, conhecerás tudo o mais?)
Ler Platão ensina o contraponto do diálogo, argumento e contra-argumento, e em alguns diálogos, como o Fédon ou o Timeu a reflexão sobre o que se é: sombras de uma realidade que nunca poderá ser conhecida, como tal e em si, e ainda, noutra vertente do seu pensamento, a descoberta de mitos, como o da Atlântida, ou o da música das esferas, que percorrerá a nossa cultura ocidental, recuperado por Shakespeare, por exemplo em algumas das suas peças. Ainda, e quem sabe se oferecendo matéria de maior profundidade, a contraposição, no livro X de A República de dois modelos de utopia social: o da cidade perfeita, em que reina a ordem de um pensamento de sábios, sendo eles que dominam e um outro, em que os criadores, os poetas, têm o seu lugar, ao passo que na cidade perfeita não o têm, devem ser expulsos, pois o imaginário criador perturba a ordem racional que se deseja que impere. Uma utopia, a ordem da cidade, um mito, o da criação perturbadora, que iremos descobrir adiante, nas tragédias, o género literário de que Aristóteles, na Poética, será um sistematizador. Mas Platão deixou um rasto na sua doutrina, o das Ideias fundadoras do Belo, do Bom e do Verdadeiro.
Aqui se torna complexo o nosso estudo do que é a filosofia: é a busca destas ideias materializadas no mundo que conhecemos, na nossa realidade? Ou sendo ideias antes fundam o que passaremos a chamar de idealismo platónico na história da filosofia? Ideias, mas não a realidade, matérias do imaginário mas não do conhecimento tal como o entendemos, de conhecimento racional da realidade palpável, por assim dizer. Séculos mais tarde, nos séculos XVII e XVIII ainda veremos que se discute a oposição razão vs. sentimento, racionalismo vs. idealismo sendo este um dos fundamentos do movimento do Romantismo, tal como o conheceremos sobretudo nos grandes criadores alemães.
Antes disso teremos com Descartes a afirmação do pensamento como razão mesma da existência: je pense donc je suis, penso, logo existo.
Embora na versão traduzida, entre o ser e o existir alguma coisa da essência (a essência do ser, segundo Heidegger) se perca pelo caminho. Em o Ser e o Tempo é aprofundada esta questão. A noção do Ser pertence ao reino da imaterialidade intemporal, universal, das Ideias de Platão, ao passo que é no Tempo que se materializa a existência da condição humana que é a nossa, particular, individual, limitada.
A escolha de Kant, sobretudo com a Crítica da Razão Prática, introduz a dimensão moral nesta apresentação das doutrinas filosóficas que até ele não tinham sido discutidas de modo autónomo. A Ética passa agora a ser uma área de reflexão com um estatuto autónomo próprio, que não só tem lugar como ultrapassa a questão do conhecimento só por si. Entram o bem e o mal na discussão dos valores e das opções que se colocam ao homem no momento da escolha. Sem Kant não poderíamos entender Nietzsche e a sua reflexão em Para Além do Bem e do Mal que teria, como teve, um percurso que chegou aos nossos dias, pela escrita de um Musil, em O Homem sem Qualidades, ou o fanatismo de um Hitler.
Chamo a atenção dos meus leitores para o facto de eu não estar a fazer aqui um exercício de crítica literária, não faço crítica literária, nem tento, ainda menos, fazer crítica filosófica. Converso, ao correr da pena, com este livro de António Caeiro que me seduziu pelo modo como nos apresenta o seu ponto de vista sobre o que é a filosofia, através de uma escolha de pensadores que estão na base e nos dão os fundamentos do pensar filosófico, desde Platão até Heidegger ou Wittgenstein.
Interessante como no percurso escolhido poderemos ler em Heidegger a transição para O QUE É PENSAR, suas últimas aulas de filosofia. Pois toda a filosofia é pensamento. E como se dá, em Wittgenstein, uma nova transição, muito própria do Modernismo, sobre as questões da linguagem e modos de exprimir o que se pensou e deseja dizer. A conclusão parece simples, mas não é: wovon man nicht sprechen kann darueber muss man schweigen. Devemos calar o que não conseguimos dizer. Aqui poderia entrar o célebre comentário de Kierkegaard: onde as palavras acabam, entra a música.
Há então um limite no que concerne às palavras, a expressão, o dizer do que seja impossível. Celan trabalhou o dizer impossível, nos seus versos despidos. Mas Wittgenstein, filósofo que se ocupou em simultâneo do pensamento, como Heidegger, e da linguagem, como Saussure e os estruturalistas, pretende ir mais longe, e nega o que lhe surge como impossível. Será contrariado por Valère Novarina, pintor e dramaturgo franco-suíço que o desafia: ce dont on ne peut parler, c'est cela qu'il faut dire. O que é preciso é dizer aquilo de que não se pode falar. E não se pode por um conjunto de razões, nem sempre fáceis. Por ignorância? Por não se entender os fundamentos que obrigariam ao silêncio? A moda? A pressão social ou política? A descrença num mundo de crenças, algumas radicais e temíveis? Ou pura e simplesmente porque conceitos como os da doutrina platónica das Ideias nos parecem tão distantes do real conhecido que falar ou aspirar a um mundo melhor, mais humano e perfeito não só não pode ser credível, como está imbuído de uma irracionalidade chocante para o homem do século XXI, já bastante orientado por logaritmos, e não por sentimentos piedosos, mas que se tornaram caricatos.
E contudo... a filosofia, com o seu pensar este mundo e o outro, e a reflexão sobre o que é a condição humana (a natura naturata de um Spinoza) ainda continua e ainda nos desafia. A sua importância, o seu estudo, são cada vez mais importantes para a mente humana na inquirição precisamente do que é, e do que pode vir a ser, a menos que seja varrida do mundo por alguma catástrofe inesperada e fatal.
Pensar é algo de estruturante, na mente humana. Nasce da imperiosa busca para lá dos Sinais que, como dizia Hoelderlin, tenham perdido o Sentido). E a linguagem, o que é senão essa mesma estrutura já constituída geneticamente que podemos observar, segundo alguns, desde a infância e evoluindo depois segundo o meio cultural, social, político em que cada um se desenvolve. Discute-se nesta aquisição da linguagem, se é algo de adquirido ou já inato.
O problema não se coloca a um filósofo, no seu percurso, em que é o pensar que estrutura as suas ideias e a exposição das mesmas, ora seguidas ora contrariadas, como na acentuação do Racionalismo face ao Idealismo ou ao místico neoplatonismo que virá a ter grande influência no século XV, com as primeiras traduções dos antigos clássicos feitas por Pico della Mirandola, Marsilio Ficino e Reuchlin (para a Kabalah judaica). Com eles tem início o chamado Humanismo no Renascimento filosófico e literário (e podemos dizer, em parte, místico, com as traduções de Platão e Plotino). Em Pico della Mirandola é especialmente interessante o seu discurso Sobre a Dignidade do Homem, que fundamenta esse novo conceito de Humanismo, que surge em ligação com o Renascimento.
Trazer a discussão à dignidade humana, sendo o homem uma criação divina, relaciona um com o outro, o homem com Deus, a dignidade suprema, e Deus com o homem, a sua suprema criação.
Por aqui podíamos regressar a Kant, e à sua Razão Prática, voltando a aprofundar o conceito de Moral e criando um espaço filosófico, o da Ética.
Nesta procura do saber, pela via do saber filosófico, percorre-se um caminho em que tudo está ligado, desde o princípio ao fim que ainda não conhecemos, mas pelo qual vamos, por tentativas, procurar entender o que pode significar. Torna-se explícita a necessidade de ser curioso, de ir fazendo perguntas, ainda que fiquem sem resposta, pois sem a curiosidade que nos move, em nada poderemos progredir, nem na ciência, nem na sabedoria da experiência de vida que é a nossa. A filosofia, pouco a pouco, é isso que nos mostra: o amor e a curiosidade de saber. Saber mais sobre o homem (a dada altura será diálogo com os eus da consciência e do inconsciente) a natureza e o mundo. Um mundo que se alarga para lá do planeta conhecido até ao cosmos infinito.
Até agora passeei por um jardim, com alamedas cuidadas, cada uma conduzindo a uma saída possível, diferente, e com um pequeno banco onde nos pudéssemos sentar, a reflectir. Está na hora de apresentar melhor o Jardineiro, fazendo-lhe a justiça que merece, pois foi ele sempre, e continua a ser, o Cuidador.
Cito-o, como é devido, nas suas conclusões:
" No tédio profundo renasce o espírito da filosofia. A filosofia exige a transparência relativamente ao modo como temos vivido, como temos sido com os outros, como temos sido com a nossa própria possibilidade, o nosso potencial. Essa transfiguração e metamorfose podem durar um breve lapso de tempo, numa manhã, no local mais insuspeito, como o corredor da nossa casa a caminho de uma divisão. Nesses momentos faz-se a experiência da vida no estrangulamento do seu sentido. É também aí que nasce a possibilidade de ser quem se é. Portanto, a filosofia não acontece num horário determinado. A possibilidade da filosofia dá-se no interior da existência, 24 horas por dia, sete dias por semana. Porque é óbvio que não nos encontramos nessa situação extrema e radical. O que aconteceu no tédio profundo foi uma vivência que temos de rever e tentar compreender vezes sem conta. A possibilidade de vivermos uma pergunta é também a sua resposta. Depois de nos ter acordado para a existência, a filosofia tem de ser mantida acordada, não a podemos deixar adormecer, porque a ditadura do quotidiano pretende vingar e fazer esquecer-nos do que verdadeiramente nos aconteceu." (p.367).
Descubro aqui uma coincidência (sincronicidade?) com o que Clarice Lispector chamaria a sua Hora da Estrela. Não estão longe um do outro esta autora que comecei a ler aos 18 anos e que agora me chega do passado e este filósofo, moderno criador que nos explica e inspira para um despertar também ele de estrela.
Y. K. Centeno
Lisboa, 7 de Novembro, 2023.