Por coincidência, Rosário Pedreira publica sobre o seu corpo humano, e Nuno Félix da Costa um outro livro, em que também é do humano que se ocupa. O meu corpo humano, poemas de tristeza passada a ferro como ela diz. Alisar o sofrimento de que padece o corpo? Ou exorcizar, dizendo o que tem a dizer, e é sempre tão humana a sua voz, feita de canto e lágrimas, por vezes. Mas leio o Nuno Félix: prosa poética, ou poemas em prosa, conceptuais, em que a cultura é transversal à imagem poética, por vezes surpreendente, como já disse a propósito de outras obras. Um pensador que escreve poesia, ou que fala de como ela surge, ainda que de modo insólito (não esquecer que estamos perante um psiquiatra):
"O corpo é uma noção acimentada num conjunto / O que o cérebro leva do corpo qualquer máquina de reanimar / supre"(p.9). Assim começa a nossa leitura.Com um texto em que se declara que se vive do pouco que a máquina dá, concluindo com ácida ironia que "confia na pátria e nas soluções mecânicas para a vida".
Estão lançados os dados para uma aprendisagem (é um manual...) que se torna por vezes desconcertante, mas essa é precisamente aqui a intenção do poeta. Não facilita, obriga. O dia que começa será vagaroso, e nesse vagar ou desse vagar nascerá o brilho das estrela, e o resto do cosmos. Do corpo que esteve adormecido, sonhando, nascerão outros corpos, as órbitas dos astros. Faz parte do imaginário do humano o sobrehumano, para logo num poema seguinte recuperar uma fisiologia anatómica que conduzirá no fim à ideia, higiénica, de ir tomar banho. Álvaro de Campos não faria melhor. Mas também penso em Lautréamont, é difícil, ao ler, não evocar outras leituras:
sem palavras para uma teoria da simplicidade, eis o título de um poema em que o mais é menos, e o menos é mais, ao gosto de Celan. Pois nada é simples, em Nuno Félix, tudo é complexo e obriga a revisitar o que se leu:
"A visão da palavra antecede-a. É assim o fundo do mar onde a luz que
cada uma emite encontra o alvo - sinos
que mantêm silencioso o pensamento
A mentira não existe entre os peixes
do inconsciente" (p.16). A visão da palavra antecede-a: no primeiro verso já se revela o último, que é feito do silêncio dos peixes do inconsciente, nos sonhos. Fica no ar: o pensamento é mentiroso? Porque na oposição racional versus irracional, é esta última ideia a vencedora? Porque no inconsciente não há filtros ambíguos, a imagem é simples e directa e diz o que diz, sem mais?
Como Freud via o mar - as ondas revoltosas, os perigos de naufrágio sem bóia de salvação, Nuno Félix em "conhece-te a ti mesmo" poema do impossível, reflecte também sobre o que vê no mar:
"O mar limpa a necessidade de ordem, interrompe-a e afoga / a luz de uma obscura consciência num mim aquiescente / a personagem, uma massa de anjos habituados a mim" (p.18).
Aqui poderia entrar uma nova imagem, uma nova palavra, o sublime, dos anjos, ou então a sublimação de um "ego" que se metaforizou num "mim" (a margem de diferença entre o Ich e o Selbst de um Jung, sobrevoando a massa de anjos descrita).
A reflexão sobre o eu e o mim é talvez a pulsão mais funda deste livro no poeta que se sentiu impelido a escrever sobre o que sente e o que sabe que sente. Não é fácil, nem isso lhe interessa. Deixa fluir, para ficar mais livre: "liberto do lastro do eu tento ver sem mim...." ou adiante: "conheço como ninguém o que desconheço..."(p.19). Gostaria neste momento de utilizar a definição de Jung para Selbst, que ele distingue do conceito de Ich como sendo mais abrangente, englobando o todo da consciência (domínio do eu, do Ich) até à esfera do sub- e do inconsciente. Com os perigos de inflação de um eu que se funde, mas não se sublima de facto.
Já disse atrás que este é um livro desconcertante, que alia ciência e conhecimento da psique à uma exposição do corpo - é o corpo que nos faz humanos, com as particularidades que Nuno Félix não hesita em referir, é no corpo e pelo corpo que na verdade
sentimos, a dôr ou as alegrias, ainda que passageiras, da vida que é dada, e é por aí que o autor nos leva, quando fala de manual para ser humano.
Alguns leitores terão dificuldade em segui-lo, outros gostarão do pensamento que desafia, nas suas contradições. Não vale a pena querer unificar o que não é uno, pois sabemos que não há unidade, há oposições, contraposições, associações livres e únicas, como muito bem expressaram os surrealistas, e das múltiplas imagens e símbolos que ocorrem, nos sonhos mais fundos ou nos meio-acordados (a
rêverie). De todas estas manifestações que se dão na escrita, como na arte em geral - Nuno Félix não exclui a Fotografia como ARTE ÚLTIMA, numa das suas obras mais belas de fotografias encenadas - a discussão (não chega a ser discussão mas reflexão cuidada) entre o eu e o mim não fica fechada, continua em aberto, entre um que pensa o que é, e se o que é o define, o completa, ou inquieta. Inquieta, por isso, embora proclame que "conhece como ninguém o que desconhece" é imparável a sua necessidade de fazer ou refazer com outro olhar o que foi feito. Nunca se vê da mesma maneira o que já foi visto. Basta a deslocação subtil do tempo, do espaço, isto é da circunstância própria que os define.
Marie-Louise von Franz, colaboradora privilegiada de Jung, ela mesma grande erudita, explica num das suas obras,
Zahl und Zeit como se aproximam a Psicologia das profundidades e a Física
(ed. Surkamp,1980) numa obra que ao tempo foi pioneira, mas que hoje em dia, como se vê pelas obras de Félix se tornou objecto normal de estudo e reflexão.
Aproveito, porque a ela, colega e amiga devo a gentileza, para agradecer a Anabela Mendes a oferta deste livro, que ela me deu em 1984, estávamos ambas interessadas nestes domínios que os freudianos caseiros ainda abominavam.
O cap. 1 afirma desde logo que é o número que ordena a psique e a matéria. Podemos regressar à narrativa bíblica, para entender melhor como a fundação primordial começou com uma criação ordenada em números, os seis primeiros e finalmente o 7º que deveria ser de um eterno descanso, que nunca chegou a ser... Psique e Matéria dificilmente se entredefinem, a não ser, como Nuno explica, se se traçar, com cuidado, com tempo (um outro conceito muito caro a Marie-Louise) um caminho que vá abrindo esferas num todo que permanece fechado, até que se lhe dê atenção e cuidado. Como a rosa de Rilke, tão múltipla e tão rara cujo centro é o centro do cosmos por onde vagueia ainda em ignorância o nosso pequeno planeta, como Dante nos círculos do Inferno. Contudo é este planeta uma das partes do corpo do universo, e a humanidade a sua materialização. Jung refere que sem o Homem, ser que Deus ele mesmo criou, não teria tido consciência de si mesmo e é assim que Jung lê os tormento de Job: a dôr injusta faz parte desta aposta na vida, nascida no Éden e envenenada à partida. Deus - Jeová - precisou de se materializar em
corpo humano, para adquirir consciência de si mesmo. E assim aconteceu com Jesus, nascido de uma virgem inocente, e se transformou em Cristo, alter ego da Trindade da religião ocidental. Com a Ascenção de Maria o trio divino se tornará em todo mágico, com o Eterno Feminino conduzindo, como em Goethe, o Espírito Santo da futura Utopia num sonho que se viveu como real, durante séculos.
Resumindo, sem corpo não há consciência, nem da divindade criadora nem da humanidade que foi por ela criada. Na obra de Marie-Louise von Franz, ainda no capítulo 1, iremos encontrar as suas reflexões sobre o que são as descobertas de Jung sobre as matérias da consciência e do inconsciente, em Freud ainda aceite como individual, em Jung já acumulando as investigações sobre o que o levariam ao tão discutido, na altura entre ambos, de inconsciente colectivo, acumulação universal de símbolos e mitos que ele estudara em muitas e variadas memórias de antigas civilizações.
Marie-Louise traz à nossa leitura uma comparação que faz todo o sentido para entender melhor esta obra de Nuno Félix de que nos ocupamos: o conceito de onda e de partícula que o estudo da física quântica, praticamente no início ainda do século XX apresentou aos cientistas, para melhor entender o comportamento da matéria. E como nos é útil agora, para seguir a nossa leitura de uma obra ao mesmo tempo conceptual e poética, atravessada por imagens e símbolos que nascem do inconsciente e não de uma racionalidade expectável, esta nova aproximação ao entendimento do humano, que em si mesmo contém o espiritual e o material, no somatório de um eu e de um mim que ora são onda ora são partícula, do todo do ser, definido por Jung e pela sua discípula pelo número 4, nos capítulos em que analisam a simbólica dos quatro primeiros números.
Termino, um post não pode ser exaustivo, com a citação do nº12 de Arte Última, publicado em 1998:
" A mente é o altar
entre o abismo da ordem
e o caos da exactidão".