Friday, January 21, 2022

Slavoj Zizek / Mladen Dolar, Opera's Second Death, ed. Routledge, 2002

 Podemos ver no youtube muitas intervenções de Zizek, do maior interesse, em contraponto às do quase místico Peterson. O debate é fascinante, entre dois grandes eruditos, de grande bagagem filosófica, cultural, artística, um cristão e junguiano assumido, outro marxista, materialista e freudiano, um, Peterson, vindo a público vestido com algum formalismo, o outro com ar de quem saiu de casa sem tomar banho, podia estar de pijama, e podia, para não estar sempre a limpar o nariz com a mão, tomar um Kestine, por exemplo. Secava-lhe o pingo sem secar as ideias nem o discurso...

Só agora descobri estes dois contraditórios expoentes de uma nova sensibilidade post-moderna, best-sellers nas vendas, milhões de visitantes no youtube, ambos professores universitários, na relação fácil e directa com a juventude que os segue e interpela com um à-vontade impensável entre nós, portugueses sempre cheios de empáfia que em nada ajuda a que se pense mais e melhor. 

Estes dois ajudam.

Abordei um pouco Zizek no facebook, a partir de um video do youtube em que deixei que exibisse o seu lado mais truculento, não digo libertino mas libertário, que faz a sua sala rir, e rir é sempre saudável, e prende a atenção.

Mas aqui proponho-me falar de uma paixão que ambos partilhamos: a ópera. Ele atira a ópera está morta, como quem diz, já nasceu morta, e agora morreu de vez. 

Não é fácil discutir com a sua enorme erudição, mas tentarei, porque eu, como ele, temos em Mozart e Wagner as óperas preferidas, as ouvidas mil vezes, as estudadas nas várias produções de vários encenadores e vários cantores de excepção - enfim uma matéria infindável de estudo e de prazer. 

Na Introdução, for the love of Opera,  Zizec condena a introdução moderna das leituras psicoanalíticas, freudianas, e a que a imprensa tem reagido mal, e com razão.

A moda de desconstruir o libretto, que marca o século 19 com o aparecimento da obra de Freud, parece indicar que o trabalho está feito e a ópera não faz mais falta, está morta, e a LULU de Berg é o melhor exemplo. Ora o que Zizec vem agora dizer é que a ópera merece melhor do que isto. Retirar o contexto em que a ópera surge, e com que temas, míticos, históricos, simbólicos é despi-la de uma realidade que por alguma razão se tornou universal até aos nosso tempos. Em que fontes bebiam os libretistas a sua inspiração, que os agora encenadores da moda ignoram, alteram para submeter o antigo fascínio a uma ideologia que empobrece? São eles que matam a ópera, não foi a matéria operática que se suicidou.

No caso de Wagner, que Zizec vai buscar, esquecendo agora o ulterior enquadramento histórico do seu anti-semitismo, do entusiasmo por uma ideologia nefasta, alguma razão existe para que a universalidade das suas óperas se mantenha, seja o Tristão e Isolda, seja o Parsifal, bebido sobretudo em Eschenbach (para não falar da Tetralogia). Wagner demonstra, segundo alguma crítica post moderna, um nacionalismo ultrapassado, um anti-semitismo condenável, e para lá disso a idealização de um Homem Superior, o Homem alemão (quem se lembra dos discursos de Fichte à Nação Alemã, apelando a um germanismo idealista que dominasse a corrupção evidente da cultura europeia, cedendo às invasões napoleónicas? ). Mas nada disso impediu, e até hoje, que a marca de universalidade das óperas de Wagner tenha permanecido e nos desafie. Ultrapassam o contexto epocal, histórico, elevando-se a uma outra esfera de uma arte sublime e sublimadora de mitos e fantasmas que a memória arcaica conservou.

E cito Zizec na justificação deste seu livro, que remete também para Lacan:

" A ideia subjacente a este livro, como exercício de leitura de Lacan,  é simplesmente que Mozart e Wagner são as duas figuras-chave na história da ópera e que cada uma delas segue, em níveis diferentes, a mesma trajectória de uma matriz de base (como em Mozart O Rapto de Serralho ou em Wagner O Holandês Voador, através de uma série de variações que culminam numa  letal decepção ( Cosi fan Tutte, Tristan )  para depois a reverterem na ambiguidade da benção de um conto de fadas na  produção final da Flauta Mágica e de Parsifal". 

Escrevi, precisamente, sobre  Mozart e sobre Wagner, muito, ensaios vários em que culmino por razões do seu peso simbólico, maçónico e não só, com a Flauta Mágica e com Parsifal .

A ópera não morre, nem está morta, o que tem sido é mal enterrada por uns e por outros que não se querendo dar ao trabalho de ler, de enquadrar ou libertar mas com sensibilidade e inteligência das raízes históricas mas sobretudo míticas (mas não é o mito, também ele, uma memória arcaica, histórica?) para aí encontrar novo sentido, que é universal e será eterno enquanto o homem vibrar com sentimentos, com esperanças ainda que tantas vezes atraiçoadas? A ópera não precisa, antes pelo contrário, de ser travestida de modernices caricatas que se pretendem feitas de humor ou de desprezo por valores em que não se acredita. Precisa que na fusão do compositor  e do libretista uma outra esfera se alcance, de fusão também com o seu público.

Diremos: o publico de hoje é menos preparado, não é culto, sai aos teatros para ser visto e fazer uma selfie que porá no facebook. Mas para quem na filosofia, na literatura e na arte encontra o seu interesse (para não dizer paixão) de vida, a missão de trazer estes temas à discussão, como se faz nesta obra, é imperativa, para que se desperte o pensamento e a curiosidade. As últimas considerações de Stephen Hawking, num encontro com alunos, pouco antes de morrer foram essas, de que o progresso virá sempre da curiosidade, na ciência (no caso era a astrofísica) como na arte (a arte acrescentei eu). Um artista sem curiosidade pelo que se fez, e pelo que ele mesmo faz, não irá longe. Ficará talvez com menos trabalho, ao contrário de outros, - Wagner tanto se queixou de ter pouco dinheiro para a sua ambição da ópera total - mas não passará de uma mediocridade que depressa o fará cair no esquecimento. Mas já Mozart, ou Wagner, por muito que nos digam que estão fora de moda, ultrapassados, exercem ainda um fascínio que estes autores nos irão explicar.

Dos tempos do nascimento da ópera, a crítica é que era muito mais teatro do que outra coisa. Primeira morte. Errado abordá-la assim, pois nascida de mitos - o de Orfeu, por exemplo, dos mais belos, é errado. Pois no mito a narrativa conhecida tinha de ser vista e recordada, tal como na tragédia antiga acontecia. Ainda havia uma aspiração de catarse, de identificação, que hoje o post-modernismo descarta por completo. Mas lembremos que se estava outrora no século XVI, e não neste século de almas quase despidas de tudo, excepto de uma ilusória arrogância de que se pode fazer tudo o que se queira, desde que se possa...

A herança que nos chega desse passado  é a da curiosidade, da recuperação e da renovação do prazer e do gosto que a arte de fusão total, de imersão na palavra e na música, e até da dança (ainda no século XIX, nos teatros de França, algo de que Wagner não gostava, achava perda de tempo, interrompendo a fusão alcançada). 

O capítulo de que se ocupa Mladen Dolar - A música como alimento do amor - começa por citar reacções de figuras da cultura alemã de grande peso intelectual: Schelling, por exemplo, que afirma que "a ópera era a forma mais baixa da caricatura da mais elevada forma de arte, o teatro grego". Mladen vai buscar um filósofo como Kierkegaard (entre outros) para contrariar esta ideia. Diz-nos que Kierkegaard se deixou fascinar completamente pelo encantamento da ópera, de tal modo que para ele se transformou no paradigma da fascinação estética e sensual, elevando contudo a alma para lá disso tudo  até à esfera da ética e da religião. Por sua vez Nietzsche também viu, durante um tempo, em Wagner um mesmo projecto da mesma natureza, embora posteriormente o recusasse como errado.

Mladen irá, num capítulo adiante (p.50) abordar a ópera na filosofia, com Mozart e  Kierkegaard. 

Foi preciso esperar por uma alma de cristão tão devoto quanto Kierkegaard para que ópera de Mozart, Don Giovanni, fosse tomada de verdade como mito a integrar num horizonte metafísico. Tentar escrever outro Do Juan depois de Mozart seria como tentar escrever "uma Ilíada post-Homérica- porque a versão de Mozart é inultrapassável, conseguindo uma harmonia completa de conteúdo e forma (K.1992:50). E continua Mladen, nunca até aí nenhuma ópera tinha sido abordada com uma reflexão filosófica tão abrangente. Kierkegaard escreveu 150 páginas só a ela no seu estudo Ou/Ou  com uma expressão de lirismo incontornável. Para ele Don Juan é um herói cristão por excelência. Nele se humanizam o bem e o mal, com  sedução do mal, pelo qual se é castigado, enquanto o elevo da música, sempre presente recorda que existe uma transcendência e que com ela tudo se ultrapassa. Para Kierkegaard, diz Mladen (58), foi a filosofia moderna que introduziu a ópera no mundo. Quando a linguagem atinge o seu limite é a música, para lá da linguagem, que ultrapassa os seus limites e não se podendo falar, compõe-se música.



Thursday, January 20, 2022

Nuno Félix da Costa, Fotografia esculpida...


 A Deusa-Mãe esculpida, mão direita no peito e mão esquerda no sexo, com o amante a seus pés. Será morto, depois do encontro fatal da iniciação. É assim que se repete, todos os anos, na gruta oculta de Inanna o rito que permite o eterno retorno à terra fértil, que nasce do sangue derramado. São muitos os rituais arcaicos em que sacrifício e sangue, dos mais belos, mais jovens, mais valorosos heróis como nos Maias, ou na lenda grega do Minotauro - para dar exemplos de civilizações e culturas diferentes - são a base da construção de uma sociedade que se deseja continuada pela repetição de algo que tem a ver com o princípio dos princípios da vida na terra criada por um deus que entretanto se ausentou e incumbiu os humanos de lhe dar continuidade.

Podemos ler em Chrétien de Troyes, no seu Perceval le Gallois o drama da terre gaste, ou no Parsifal de Eschenbach ou de  Wagner a ferida infligida por Kundry a Amfortas, cuja ferida não sara, até que um cavaleiro inocente apareça no seu reino do Graal e faça uma pergunta que será chave de salvação e transformação do reino. Em ambas as narrativas se revela a crueza do Eterno Feminino, devorador de energias que enfraquecem o Homem quando a ele se entrega, sob a forma de mulher (serpente ou feiticeira) sedutora e depois redentora (no final da ópera de Wagner).

O sangue não deixa de estar presente como elemento simbólico, no Perceval: no cap.VII o jovem cavaleiro vê três gotas de sangue que deixou para trás um dos patos selvagens que ele tentou caçar, sem conseguir. O animal ficou ferido, mas ainda assim fugiu. As gotas de sangue no solo gelado de neve daquele acampamento do rei, trazem-lhe à memória o belo rosto da jovem que não consegue esquecer. Adiante se dará o encontro com ela, mas de momento fica ali a fixar aquela imagem do sangue na neve, como a pureza das faces da bela, que o hipnotizam a ponto de quase parecer que adormeceu. De novo um sangue, e uma vida que se irá transformar por completo.

Na fotografia de Nuno Félix da Costa a mulher inclina a cabeça de modo quase terno, maternal, sobre um jovem que parece implorar, ou o seu amor ou a sua compaixão, para não morrer depois de tanta entrega e tanto amor.

Também, pelo misterioso apelo que ali se pressente, poderíamos ver nessa Mulher uma variante da Mater Dolorosa, a Virgem Mãe que sabe, ao aceitar a Graça que o Anjo lhe veio comunicar, que esse Deus-filho que ela aceita e se fará carne humana na sua própria carne, será, por essa razão, sacrificado. Temos nesta fotografia tantas leituras possíveis da nossa humanidade e do nosso imaginário mítico e simbólico. 

O Homem aos pés da Mulher pode ser Rei (Jesus glorificou-se como Rei dos Judeus, Cristo no Reino dos Céus) tanto quanto pode ser uma criatura em rito sacrificial, oriunda das memórias arcaicas mais distantes, sem que nada se perca da sua força inicial - a do desejo - que também ali se adivinha no encontro dos corpos materializados.

Representação de leitura aberta, mas que no secreto mistério que a envolve apeteceria ver esculpida para ser exposta num museu. A obra de fotografia artística de Nuno Félix, poeta e pintor, merecia estudo e destaque.


Monday, January 17, 2022

Jordan B. Peterson, Beyond Order, ed. Penguin, 2021

 Nesta obra Peterson dá seguimento a um anterior volume, em que propõe igualmente 12 regras de vida, mas desta vez ampliadas a mais temas, que passam inclusivamente pela dôr, pelo sofrimento no limite do inaceitável, e de como ultrapassar tais situações. Escrevi na altura em que li algumas considerações no facebook, sobretudo nas que tocavam no efeito curativo da arte, da relação com a pintura, com a música, ou a literatura. A arte como esfera de elevação do eu a um outro patamar em que o sentido da vida, mesmo em pleno sofrimento,  podia ser recuperado.

Peterson considera que a súbita descoberta dos valores morais e religiosos do cristianismo, melhor, do catolicismo, que desconhecera até esse momento difícil da sua vida, pessoal e familiar foram mais do que uma ajuda preciosa um quase milagre.

Dirige-se ao seu numeroso público do youtube quase em lágrimas, profundamente comovido, para confessar o que sente: espanto perante uma fé que vive  e não entende. Pede que não lhe perguntem se acredita em deus, mas afirma: tento viver como se deus existisse. Por outras palavras, o que nos diz é que devemos valorizar a ética, nos nossos comportamentos, não pregar aos outros o que não praticamos, porque religião ou moral de boca não é algo de genuíno que deva ser respeitado, e temos de ser exemplares para que nos respeitem. 

Podemos achar por vezes, no livro que agora leio, um certo estilo americano de simplificação de matérias tão complexas como esta da religião e da fé, para que o grande público, menos culto, o possa acompanhar no que pretende dizer. Mas no essencial a sua mensagem, tendo na psicologia o modelo de Jung, de valorização do espírito e da alma, leva-nos a prestar mais atenção ao mundo dos arquétipos, dos mitos e dos símbolos, como matéria prima para o nosso enriquecimento pessoal, e de quem nos rodeia, numa sociedade doente, materialista, sem valores que não sejam o do prazer e do ganho imediato. 

Tarde ou cedo a hipocrisia do ganho imediato nos fará pagar caro, no mundo, essas escolhas erradas. Depressões, fome, miséria, será esse o destino de um planeta que ajudámos a destruir, quando precisava de ser salvo.

Peterson escolhe muitos exemplos da Bíblia, e dos muitos livros que leu e fundamentam o seu discurso erudito. Fala, sabendo do que fala. Estudou a filosofia ocidental desde os primórdios dos gregos, dos pré-socráticos a Platão. Podia dar muitos exemplos, de como o antigo pensamento levou ao conhecimento que hoje é valorizado, e estrutura a cultura do ocidente.

Mas aí entra a nova reflexão, dos valores do cristianismo, uma nova moral, exigente e exigindo um novo comportamento, de respeito e entrega ao outro, amando o outro como a si mesmo. Uma das regras de que nos  fala Peterson é essa do olhar generoso, que perdoa, mais do que castiga, que se concentra no estudo de si mesmo para alcançar maior perfeição, sabendo embora que o caminho para a perfeição será sempre difícil, sinuoso, que passa por não fazer o que se detesta, como ele diz, e por abandonar o vício da ideologia, que reduz, não amplia, o carácter de cada um no seu modo de vida em sociedade.

No fundo, nestas regras que propõe, exige coerência entre o discurso e os actos, o pensamento doutrinal e a prática, que deve passar também pelo perdão, como em Jesus Cristo, modelo da mudança universal que se deseja. A última das regras proclama: " Sê grato, apesar do sofrimento".

Sunday, January 02, 2022

Poema do Bom Pão

 Terei tempo de dizer

não o que foi

mas o que é

e que eu ainda queria?

Um tempo tão controverso

em situação tão adversa

a tudo o que possa pensar

perder tempo a desejar

sei que é um tempo perdido

e quem deseja perder

o que já não faz sentido?

Desejar é um castigo

falemos então verdade

passou esse tempo antigo

a nossa porta fechou-se

o tempo é nosso inimigo

está lá por trás escondido

com a sua foice fatal

que por enquanto não vemos

mas terá o seu momento

outrora não era esse

o tempo que nos cabia

podíamos sonhar um outro

novo ano novo dia

campo dourado de trigo

pão da vida mais à frente

tudo era consentido

mas será que sobra tempo

e direi o que queria ?

Que o trigo já foi ceifado

e o bom pão já foi comido...

(2 de Janeiro, 2022)