Podemos ver no youtube muitas intervenções de Zizek, do maior interesse, em contraponto às do quase místico Peterson. O debate é fascinante, entre dois grandes eruditos, de grande bagagem filosófica, cultural, artística, um cristão e junguiano assumido, outro marxista, materialista e freudiano, um, Peterson, vindo a público vestido com algum formalismo, o outro com ar de quem saiu de casa sem tomar banho, podia estar de pijama, e podia, para não estar sempre a limpar o nariz com a mão, tomar um Kestine, por exemplo. Secava-lhe o pingo sem secar as ideias nem o discurso...
Só agora descobri estes dois contraditórios expoentes de uma nova sensibilidade post-moderna, best-sellers nas vendas, milhões de visitantes no youtube, ambos professores universitários, na relação fácil e directa com a juventude que os segue e interpela com um à-vontade impensável entre nós, portugueses sempre cheios de empáfia que em nada ajuda a que se pense mais e melhor.
Estes dois ajudam.
Abordei um pouco Zizek no facebook, a partir de um video do youtube em que deixei que exibisse o seu lado mais truculento, não digo libertino mas libertário, que faz a sua sala rir, e rir é sempre saudável, e prende a atenção.
Mas aqui proponho-me falar de uma paixão que ambos partilhamos: a ópera. Ele atira a ópera está morta, como quem diz, já nasceu morta, e agora morreu de vez.
Não é fácil discutir com a sua enorme erudição, mas tentarei, porque eu, como ele, temos em Mozart e Wagner as óperas preferidas, as ouvidas mil vezes, as estudadas nas várias produções de vários encenadores e vários cantores de excepção - enfim uma matéria infindável de estudo e de prazer.
Na Introdução, for the love of Opera, Zizec condena a introdução moderna das leituras psicoanalíticas, freudianas, e a que a imprensa tem reagido mal, e com razão.
A moda de desconstruir o libretto, que marca o século 19 com o aparecimento da obra de Freud, parece indicar que o trabalho está feito e a ópera não faz mais falta, está morta, e a LULU de Berg é o melhor exemplo. Ora o que Zizec vem agora dizer é que a ópera merece melhor do que isto. Retirar o contexto em que a ópera surge, e com que temas, míticos, históricos, simbólicos é despi-la de uma realidade que por alguma razão se tornou universal até aos nosso tempos. Em que fontes bebiam os libretistas a sua inspiração, que os agora encenadores da moda ignoram, alteram para submeter o antigo fascínio a uma ideologia que empobrece? São eles que matam a ópera, não foi a matéria operática que se suicidou.
No caso de Wagner, que Zizec vai buscar, esquecendo agora o ulterior enquadramento histórico do seu anti-semitismo, do entusiasmo por uma ideologia nefasta, alguma razão existe para que a universalidade das suas óperas se mantenha, seja o Tristão e Isolda, seja o Parsifal, bebido sobretudo em Eschenbach (para não falar da Tetralogia). Wagner demonstra, segundo alguma crítica post moderna, um nacionalismo ultrapassado, um anti-semitismo condenável, e para lá disso a idealização de um Homem Superior, o Homem alemão (quem se lembra dos discursos de Fichte à Nação Alemã, apelando a um germanismo idealista que dominasse a corrupção evidente da cultura europeia, cedendo às invasões napoleónicas? ). Mas nada disso impediu, e até hoje, que a marca de universalidade das óperas de Wagner tenha permanecido e nos desafie. Ultrapassam o contexto epocal, histórico, elevando-se a uma outra esfera de uma arte sublime e sublimadora de mitos e fantasmas que a memória arcaica conservou.
E cito Zizec na justificação deste seu livro, que remete também para Lacan:
" A ideia subjacente a este livro, como exercício de leitura de Lacan, é simplesmente que Mozart e Wagner são as duas figuras-chave na história da ópera e que cada uma delas segue, em níveis diferentes, a mesma trajectória de uma matriz de base (como em Mozart O Rapto de Serralho ou em Wagner O Holandês Voador, através de uma série de variações que culminam numa letal decepção ( Cosi fan Tutte, Tristan ) para depois a reverterem na ambiguidade da benção de um conto de fadas na produção final da Flauta Mágica e de Parsifal".
Escrevi, precisamente, sobre Mozart e sobre Wagner, muito, ensaios vários em que culmino por razões do seu peso simbólico, maçónico e não só, com a Flauta Mágica e com Parsifal .
A ópera não morre, nem está morta, o que tem sido é mal enterrada por uns e por outros que não se querendo dar ao trabalho de ler, de enquadrar ou libertar mas com sensibilidade e inteligência das raízes históricas mas sobretudo míticas (mas não é o mito, também ele, uma memória arcaica, histórica?) para aí encontrar novo sentido, que é universal e será eterno enquanto o homem vibrar com sentimentos, com esperanças ainda que tantas vezes atraiçoadas? A ópera não precisa, antes pelo contrário, de ser travestida de modernices caricatas que se pretendem feitas de humor ou de desprezo por valores em que não se acredita. Precisa que na fusão do compositor e do libretista uma outra esfera se alcance, de fusão também com o seu público.
Diremos: o publico de hoje é menos preparado, não é culto, sai aos teatros para ser visto e fazer uma selfie que porá no facebook. Mas para quem na filosofia, na literatura e na arte encontra o seu interesse (para não dizer paixão) de vida, a missão de trazer estes temas à discussão, como se faz nesta obra, é imperativa, para que se desperte o pensamento e a curiosidade. As últimas considerações de Stephen Hawking, num encontro com alunos, pouco antes de morrer foram essas, de que o progresso virá sempre da curiosidade, na ciência (no caso era a astrofísica) como na arte (a arte acrescentei eu). Um artista sem curiosidade pelo que se fez, e pelo que ele mesmo faz, não irá longe. Ficará talvez com menos trabalho, ao contrário de outros, - Wagner tanto se queixou de ter pouco dinheiro para a sua ambição da ópera total - mas não passará de uma mediocridade que depressa o fará cair no esquecimento. Mas já Mozart, ou Wagner, por muito que nos digam que estão fora de moda, ultrapassados, exercem ainda um fascínio que estes autores nos irão explicar.
Dos tempos do nascimento da ópera, a crítica é que era muito mais teatro do que outra coisa. Primeira morte. Errado abordá-la assim, pois nascida de mitos - o de Orfeu, por exemplo, dos mais belos, é errado. Pois no mito a narrativa conhecida tinha de ser vista e recordada, tal como na tragédia antiga acontecia. Ainda havia uma aspiração de catarse, de identificação, que hoje o post-modernismo descarta por completo. Mas lembremos que se estava outrora no século XVI, e não neste século de almas quase despidas de tudo, excepto de uma ilusória arrogância de que se pode fazer tudo o que se queira, desde que se possa...
A herança que nos chega desse passado é a da curiosidade, da recuperação e da renovação do prazer e do gosto que a arte de fusão total, de imersão na palavra e na música, e até da dança (ainda no século XIX, nos teatros de França, algo de que Wagner não gostava, achava perda de tempo, interrompendo a fusão alcançada).
O capítulo de que se ocupa Mladen Dolar - A música como alimento do amor - começa por citar reacções de figuras da cultura alemã de grande peso intelectual: Schelling, por exemplo, que afirma que "a ópera era a forma mais baixa da caricatura da mais elevada forma de arte, o teatro grego". Mladen vai buscar um filósofo como Kierkegaard (entre outros) para contrariar esta ideia. Diz-nos que Kierkegaard se deixou fascinar completamente pelo encantamento da ópera, de tal modo que para ele se transformou no paradigma da fascinação estética e sensual, elevando contudo a alma para lá disso tudo até à esfera da ética e da religião. Por sua vez Nietzsche também viu, durante um tempo, em Wagner um mesmo projecto da mesma natureza, embora posteriormente o recusasse como errado.
Mladen irá, num capítulo adiante (p.50) abordar a ópera na filosofia, com Mozart e Kierkegaard.
Foi preciso esperar por uma alma de cristão tão devoto quanto Kierkegaard para que ópera de Mozart, Don Giovanni, fosse tomada de verdade como mito a integrar num horizonte metafísico. Tentar escrever outro Do Juan depois de Mozart seria como tentar escrever "uma Ilíada post-Homérica- porque a versão de Mozart é inultrapassável, conseguindo uma harmonia completa de conteúdo e forma (K.1992:50). E continua Mladen, nunca até aí nenhuma ópera tinha sido abordada com uma reflexão filosófica tão abrangente. Kierkegaard escreveu 150 páginas só a ela no seu estudo Ou/Ou com uma expressão de lirismo incontornável. Para ele Don Juan é um herói cristão por excelência. Nele se humanizam o bem e o mal, com sedução do mal, pelo qual se é castigado, enquanto o elevo da música, sempre presente recorda que existe uma transcendência e que com ela tudo se ultrapassa. Para Kierkegaard, diz Mladen (58), foi a filosofia moderna que introduziu a ópera no mundo. Quando a linguagem atinge o seu limite é a música, para lá da linguagem, que ultrapassa os seus limites e não se podendo falar, compõe-se música.