À medida que o tempo passa
enquanto os dias se alongam
não é o tempo que passa
somos nós.
Não só dos copos
também dos dias
se pode dizer
que se esvaziam
e onde está o tempo
o garrafão que os enche?
Ainda que fosse bordado a ouro e diamantes
esse pano que vos cobre a cabeça
para tapar os longos cabelos
que chegam à cintura
ainda assim esse pano seria sempre
sinal de escravatura.
Ó jovens do Irão
rasgai os panos
cortai os longos cabelos
quebrai as varas com que
vos martirizam
esses falsos profetas
de um deus que nada disse
Chamai os Anjos do Céu
que desçam
com as suas espadas de fogo
e que degolem
os homens que foram filhos
e agora torturam mães.
Quando o livro me chegou, pelo correio, não estranhei a beleza da edição, há anos que a editora Quetzal da Piedade Ferreira e do Rogério Petinga me habituaram ao bom papel, à letra cuidada, escolhida para que se leia, aos autores que depois arrumo na estante que chamo dos amigos. Só bons autores, bem editados, um prazer. Prosa ou poesia, sempre a colheita é genuína.
Por que me ocorre então esta palavra, estranhamento, com este livro de agora, O MEU CORPO HUMANO de Maria do Rosário Pedreira?Poderia ser outra coisa, o seu corpo, a não ser humano? Podiam os poemas ser de animais, uma espécie de bestiário moderno, ao gosto dos textos de metáforas medievais? Que humanidade especial deseja a poeta sublinhar, neste livro, com estes poemas? O tu a quem se dirigem não perceberia o sentido se ela não o sublinhasse? Que é corpo, (tanto como será de alma) e cada parcela do seu corpo adquire vida própria, como se fosse de vida renovada, pelos sentidos despertos, que abrem em epígrafe o início da escrita e da nossa leitura:
É o meu corpo
humano, vê, ouve,
toca, pensa e
dói-lhe.
Volto porque
preciso muito
que me amem.
O livro fala do que sente um corpo que ama, mas deseja mais, que sofre e evoca o sofrimento, ainda que passado, desarticula, como se fosse livro de estudo de anatomia, as várias partes de um corpo que no poema se disseca. Tem a noção da efemeridade do que é humano no corpo, sem se sentir obrigada, no exercício poético a exprimir estados românticos de alma: "daqui até à morte é um instante". Pede contudo que aquele a quem se dirige - esse outro sempre presente - lhe ensine no intervalo da vida " as horas do amor". O amor, dado e pedido, faz a materialidade do seu corpo mais presente, ou mesmo sempre presente, quando é expresso. Basta um gesto, uma presença, uma comunhão, mesmo ao envelhecer pensando em como foi o sexo que fizeram e o que vão fazer. O mesmo com os poemas, pois também os versos terão o seu tempo, ou já o tiveram, e não se sabe se voltarão a ter. Esta não é uma poética de interrogação, é uma poética de evocação (bem humana) ou de afirmação convicta do que diz. Torna-se um quase diário que se não estivesse ordenado em estrofes, poderíamos chamar de prosa poética como a de Comte Lautréamont: prosa pela narrativa nua, realista por vezes de tão directa (passo a mão pelo veludo das tuas calças velhas / e aperto as nádegas / firmes do passado. Não sou / só eu: as tuas roupas também / têm saudades".
Oscilamos, ao ler, entre passado e presente outrora um tempo feliz, agora um tempo que se suspende entre ser e não ser um tempo (um corpo) desejado. Ou como no poema de Sexo, um envelhecer ainda assim cuidado: " Os poemas, tal como nós, já vão / murchando. Há uma espécie de / bolor que se instala nas pregas da / nossa vida e deixa as mãos mais / trôpegas sobre o papel. / Ao fim da tarde / eu fico triste sem razão e / tu adormeces diante de um bom / livro. Temos medo do que aí vem, / mas não o confessamos (...) mas juntos e abraçados até ao fim. " O sexo, o acto de o praticar, com desejo e amor, é referido no poema, em suspenso porque como nos poemas tudo pode ter um fim: são corpo e são humanos os poemas, como a carne de quem escreve e também tem o seu tempo.
O tempo, de sofrer, de ser feliz, de amar e ser amada, recordar e esquecer, atravessa esta obra de Rosário Pedreira. É o tempo que torna humano esse seu corpo que ela detalha materializando, como Heidegger, o Ser.
E já percebo porque me ocorreu a palavra estranhamento ao pegar neste seu livro. Quem já tanto fez, já tanto disse e escreveu, sente esta necessidade imperiosa de voltar a dizer, por que razão? Devolve a quem lhe deu outra vida, um seu relato, cheio de amor e gratidão que se adivinha entre linhas? Diz da sua existência, quem sabe outrora apagada, agora feliz num corpo que sente amado e por isso mesmo humano? Mais humano, como em Nietzche? Humano, demasiado humano, e precisando de mais e mais consciência de que é amado esse corpo, que é o seu. Não esquecer nunca que esta poeta é culta, lida, vivida, e não estranhemos o que nos pode a nós parecer estranho.
Estranha mesmo só a vida...
Entrámos em Agosto, já
Setembro, um Outono quente e húmido.
Ando há muito tempo com a
ideia de falar daquele encontro no Parque Eduardo VII onde se iam fechar as
festas de Lisboa. Nós tínhamos convite para as filas da frente, porque iam
tocar os nossos filhos, acompanhando um grande músico brasileiro, que eles
conheciam bem, e era o convidado de honra.
O Bernardo tinha sido operado
há muito pouco tempo, e íamos os dois, sem empurrões, caminhando na fila para
os nosso lugares.
Foi então que me cruzei com
um dos meus antigos editores, que não via há tempos, a saudação foi rápida, era
hora do concerto, mas o que vi então me deixou até hoje com o que descobri ser
da parte dele a revelação – por um breve gesto que fez – de um amor grande e
terno. Ia à nossa frente com uma jovem mulher, de aspecto frágil, cujo rosto
não vi, mas que ele carinhosamente, com muito cuidado, aconhegou da humidade da
noite, puxando-lhe sobre os ombros um casaquinho de malha. Ou seria um
xailinho?
Ele visivelmente cuidando do
seu amor. Ela visivelemente deixando-se ser cuidada.
Seguiram para os seus
lugares, no fim do concerto já não nos voltámos a encontrar.
Ainda hoje, já passaram mais
de dez anos, revejo a cena tão comovente e tão reveladora.
Como num gesto tão simples se
pode esconder tanto amor.
Hoje são um casal, andam
juntos por todo o lado, põem as suas fotos no facebook, a ele conheci muito
bem, porque foi meu editor, a ela não conheço pessoalmente, conheço os seus
poemas, alguns deles carregados da sombra que é a marca do fado, e muitos deles
têm sido cantados por isso mesmo.
Hoje colocou no facebook, que
se tem transformado em espelho de alma de alguns, um poema em que ao falar de
antigo sofrimento, de todas as maneiras – termina dizendo, pode não parecer,
mas é um poema de amor. Eu sei a quem, vi-os, naquela noite, ali começou
ternamente a química que os salvava, a ele da solidão e a ela, quem sabe, da morte
ao mesmo tempo temida e desejada.
Há um Anjo que protege os
amantes na hora do amor. Rilke sabia.
Ocorre-me que tudo no amor é química, e por isso de repente surge uma fusão tão intensa, que se torna irrecusável. Durará para sempre ? Não podemos saber, mas não importa, a força está na magia do instante. Essa é a magia irrecusável, a suave atracção que unirá dois seres. Quantas vezes na vida poderá acontecer? Também não saberemos. Importante é o momento, a entrega subtil, feita em silêncio e tão alquímica que de dois faz um só, num tempo que se tornou perfeito. O que se perdeu regressa, transformado. Os poemas são os anéis da alma, ouro fundido em que todos os nomes se renovam: outrora cinzas, agora estrelas.
Na edição da puf, de 2011, Zizec é definido como "o mais sublime dos histéricos". Uma adjectivação que atrai, porque o define como anti- seja o que fôr, neste caso contra Platão, o que Aristóteles já fora e continuando a distinção entre o que é possível ou desejável num filósofo Zizec vai fazendo um rápido mas brilhante historial dos filósofos que distinguiu, Fichte, o dos Discursos à Nação Alemã a ser derrotada por Napoleão, a Hegel, que ele define, como se diz no prefácio a este volume, como "monstro do panlogicismo, a mediação dialéctica total da realidade, da dissolução total da realidade no automovimento da IDEIA. Face a este monstro afirmou-se, pelo contrário, o elemento que era suposto escapar à mediação do conceito" (p.11). Assim evoluíram os sistemas ditos post-hegelianos que se opuseram ao absolutismo da da Ideia em nome do abismo irracional da Vontade, cita-se Schelling, eu lembraria também Schopenhauer ( o mundo como Vontade e Representação), cita-se Kierkegaard evocando o "paradoxo da existência do indivíduo" e ainda Marx "em nome do processo produtivo da vida". A questão que permanece, em relação a Hegel, é que não se ultrapasse o limite que é constituído pelo Saber Absoluto. Zizec interroga-se sobre a origem deste conceito, e que causa horror, do Saber Absoluto. Donde vem? O que se esconde por trás de uma ideia fantasmagórica como esta e da sua presença "fascinante" ? (p.13) Um buraco, um vazio, que só pode ser preenchido se lermos Hegel com Lacan, é a tese defendida por Zizec, ou seja, sobre o fundo da problemática lacaniana da ausência no Outro, o vazio traumático à volta do qual se articula o processo significante. Podemos, por limitação de espaço, saltar para as três étapas do Simbólico em Lacan, a partir do seu hegelianismo : a primeira é a da função e do campo da palavra e da linguagem na psicanálise, que coloca o acento sobre a dimensão intersubjectiva da palavra: a palavra como meio do reconhecimento intersubjectivo do desejo. O que aí predomina são os temas da simbolisação como historiarização, realização simbólica: os sintomas, os traumatismos são "brancas", são espaços vazios, não historiados, do universo simbólico do sujeito; a análise realiza no simbólico esses traços traumáticos, inclui-os no universo simbólico conferindo-lhes a-posteriori, retroactivamente um significado. No fundo estamos ainda numa concepção fenomenológica da linguagem, tendo a análise como objectivo produzir o reconhecimento do desejo numa palavra "total", de a integrar no universo da significação, identificando a ordem da palavra à da significação. Citando Lacan: " Toda a experiência analítica é uma experiência de significação" (Lacan, 1978, p.374). Será preciso recordar agora que Hegel estudou nos seminários de Hoelderlin e Schelling ambos tido influencia nos seus conceitos idealistas, o que nos levaria até Platão, o Pai das Ideias fundadoras do Bem, do Belo e do Verdadeiro. Uma herança que foi chegando aos nossos dias, incluindo como Zizec refere a utopia do marxismo (tal como em Platão também já tínhamos tido A República e a sua ideia da sociedade perfeita, gerida por sábios filósofos (com a expulsão dos poetas, perturbadores das almas). Mas retomando Lacan: eis que da filosofia, pela análise se busca agora o sentido, aquele que se oculta e reprime nos sinais de que falara Hoelderlin, nos seus Hinos. Ser um sinal que perdeu o sentido...E chegou o momento de falar de Nuno Félix, que conhece bem este filósofo, Lacan, e para quem a citação de que toda a análise é uma experiência de significação nos remete também para o célebre verso do poeta alemão: somos um sinal que perdeu o sentido. Filósofos, que constroem os seus sistemas buscando uma racionalidade que se torne explícita e clara, são diferenciados em relação aos poetas que. embora filosofando não é da racionalidade que se ocupam, mas sim de todas as outras formas possíveis, as irracionais também e acima de tudo. Porque há uma razão oculta no irracional, a circunstância, o acontecimento, a vivência ( o desejo ou a repulsa reprimidos). O interessante em Lacan é o modo como ele transita para os domínios da palavra, da linguagem, no dizer de não-sistemas que se aproximam mais da poesia do que da filosofia, manipulam símbolos como se fossem coisas palpáveis no mundo impalpável do que já foi e não é recuperável, engana-se quem julga que o tempo devolve ao outro tempo, do imaginário, o que nele se dissolveu. O que lhe devolve é já outra coisa, que a análise digeriu.
Podemos não ter herdeiros, mas temos antepassados. Nesta leitura que o estudo de Nuno Félix desencadeou há um Freud, fundador e que a todos guiou nos seus vários caminhos, mas há, como em Lacan, as árvores do pensamento dos caminhos de floresta de um Heidegger, por sua vez abrindo a questão do ser e do tempo - tudo o que é, é no tempo - e adiante a questão da linguagem, o sinal e o sentido, deriva que fez os linguistas de Paris dizer que Lacan tinha dado cabo dos estudos de Linguística na Universidade, ao formatar conceitos oriundos da filosofia e da psicanálise, traduzidos do alemão e por aí inovando e confundindo o que era normalmente ensinado.
Félix teve todos estes antepassados e foi ele próprio inovador: bebeu no surrealismo metáforas e símbolos arcaicos, mas a que deu novo sopro e nova actualidade. Toda a imagem, todo o objecto, e nas várias escolas também as da abjeccção, com em Bataille, se forem úteis serão utilizadas. A liberdade é total, Freud pode lá estar mas sem autoritarismo. Termino como ele faz, citando Wittgenstein: calar aquilo de que não se pode (por não conseguir) falar.
Mas deixo Valère Novarina, pintor e poeta, que afirma o contrário: ce dont on ne peut parler c'est cela qu'il faut dire!
Não tem fim o caminho...
Podemos ver no youtube muitas intervenções de Zizek, do maior interesse, em contraponto às do quase místico Peterson. O debate é fascinante, entre dois grandes eruditos, de grande bagagem filosófica, cultural, artística, um cristão e junguiano assumido, outro marxista, materialista e freudiano, um, Peterson, vindo a público vestido com algum formalismo, o outro com ar de quem saiu de casa sem tomar banho, podia estar de pijama, e podia, para não estar sempre a limpar o nariz com a mão, tomar um Kestine, por exemplo. Secava-lhe o pingo sem secar as ideias nem o discurso...
Só agora descobri estes dois contraditórios expoentes de uma nova sensibilidade post-moderna, best-sellers nas vendas, milhões de visitantes no youtube, ambos professores universitários, na relação fácil e directa com a juventude que os segue e interpela com um à-vontade impensável entre nós, portugueses sempre cheios de empáfia que em nada ajuda a que se pense mais e melhor.
Estes dois ajudam.
Abordei um pouco Zizek no facebook, a partir de um video do youtube em que deixei que exibisse o seu lado mais truculento, não digo libertino mas libertário, que faz a sua sala rir, e rir é sempre saudável, e prende a atenção.
Mas aqui proponho-me falar de uma paixão que ambos partilhamos: a ópera. Ele atira a ópera está morta, como quem diz, já nasceu morta, e agora morreu de vez.
Não é fácil discutir com a sua enorme erudição, mas tentarei, porque eu, como ele, temos em Mozart e Wagner as óperas preferidas, as ouvidas mil vezes, as estudadas nas várias produções de vários encenadores e vários cantores de excepção - enfim uma matéria infindável de estudo e de prazer.
Na Introdução, for the love of Opera, Zizec condena a introdução moderna das leituras psicoanalíticas, freudianas, e a que a imprensa tem reagido mal, e com razão.
A moda de desconstruir o libretto, que marca o século 19 com o aparecimento da obra de Freud, parece indicar que o trabalho está feito e a ópera não faz mais falta, está morta, e a LULU de Berg é o melhor exemplo. Ora o que Zizec vem agora dizer é que a ópera merece melhor do que isto. Retirar o contexto em que a ópera surge, e com que temas, míticos, históricos, simbólicos é despi-la de uma realidade que por alguma razão se tornou universal até aos nosso tempos. Em que fontes bebiam os libretistas a sua inspiração, que os agora encenadores da moda ignoram, alteram para submeter o antigo fascínio a uma ideologia que empobrece? São eles que matam a ópera, não foi a matéria operática que se suicidou.
No caso de Wagner, que Zizec vai buscar, esquecendo agora o ulterior enquadramento histórico do seu anti-semitismo, do entusiasmo por uma ideologia nefasta, alguma razão existe para que a universalidade das suas óperas se mantenha, seja o Tristão e Isolda, seja o Parsifal, bebido sobretudo em Eschenbach (para não falar da Tetralogia). Wagner demonstra, segundo alguma crítica post moderna, um nacionalismo ultrapassado, um anti-semitismo condenável, e para lá disso a idealização de um Homem Superior, o Homem alemão (quem se lembra dos discursos de Fichte à Nação Alemã, apelando a um germanismo idealista que dominasse a corrupção evidente da cultura europeia, cedendo às invasões napoleónicas? ). Mas nada disso impediu, e até hoje, que a marca de universalidade das óperas de Wagner tenha permanecido e nos desafie. Ultrapassam o contexto epocal, histórico, elevando-se a uma outra esfera de uma arte sublime e sublimadora de mitos e fantasmas que a memória arcaica conservou.
E cito Zizec na justificação deste seu livro, que remete também para Lacan:
" A ideia subjacente a este livro, como exercício de leitura de Lacan, é simplesmente que Mozart e Wagner são as duas figuras-chave na história da ópera e que cada uma delas segue, em níveis diferentes, a mesma trajectória de uma matriz de base (como em Mozart O Rapto de Serralho ou em Wagner O Holandês Voador, através de uma série de variações que culminam numa letal decepção ( Cosi fan Tutte, Tristan ) para depois a reverterem na ambiguidade da benção de um conto de fadas na produção final da Flauta Mágica e de Parsifal".
Escrevi, precisamente, sobre Mozart e sobre Wagner, muito, ensaios vários em que culmino por razões do seu peso simbólico, maçónico e não só, com a Flauta Mágica e com Parsifal .
A ópera não morre, nem está morta, o que tem sido é mal enterrada por uns e por outros que não se querendo dar ao trabalho de ler, de enquadrar ou libertar mas com sensibilidade e inteligência das raízes históricas mas sobretudo míticas (mas não é o mito, também ele, uma memória arcaica, histórica?) para aí encontrar novo sentido, que é universal e será eterno enquanto o homem vibrar com sentimentos, com esperanças ainda que tantas vezes atraiçoadas? A ópera não precisa, antes pelo contrário, de ser travestida de modernices caricatas que se pretendem feitas de humor ou de desprezo por valores em que não se acredita. Precisa que na fusão do compositor e do libretista uma outra esfera se alcance, de fusão também com o seu público.
Diremos: o publico de hoje é menos preparado, não é culto, sai aos teatros para ser visto e fazer uma selfie que porá no facebook. Mas para quem na filosofia, na literatura e na arte encontra o seu interesse (para não dizer paixão) de vida, a missão de trazer estes temas à discussão, como se faz nesta obra, é imperativa, para que se desperte o pensamento e a curiosidade. As últimas considerações de Stephen Hawking, num encontro com alunos, pouco antes de morrer foram essas, de que o progresso virá sempre da curiosidade, na ciência (no caso era a astrofísica) como na arte (a arte acrescentei eu). Um artista sem curiosidade pelo que se fez, e pelo que ele mesmo faz, não irá longe. Ficará talvez com menos trabalho, ao contrário de outros, - Wagner tanto se queixou de ter pouco dinheiro para a sua ambição da ópera total - mas não passará de uma mediocridade que depressa o fará cair no esquecimento. Mas já Mozart, ou Wagner, por muito que nos digam que estão fora de moda, ultrapassados, exercem ainda um fascínio que estes autores nos irão explicar.
Dos tempos do nascimento da ópera, a crítica é que era muito mais teatro do que outra coisa. Primeira morte. Errado abordá-la assim, pois nascida de mitos - o de Orfeu, por exemplo, dos mais belos, é errado. Pois no mito a narrativa conhecida tinha de ser vista e recordada, tal como na tragédia antiga acontecia. Ainda havia uma aspiração de catarse, de identificação, que hoje o post-modernismo descarta por completo. Mas lembremos que se estava outrora no século XVI, e não neste século de almas quase despidas de tudo, excepto de uma ilusória arrogância de que se pode fazer tudo o que se queira, desde que se possa...
A herança que nos chega desse passado é a da curiosidade, da recuperação e da renovação do prazer e do gosto que a arte de fusão total, de imersão na palavra e na música, e até da dança (ainda no século XIX, nos teatros de França, algo de que Wagner não gostava, achava perda de tempo, interrompendo a fusão alcançada).
O capítulo de que se ocupa Mladen Dolar - A música como alimento do amor - começa por citar reacções de figuras da cultura alemã de grande peso intelectual: Schelling, por exemplo, que afirma que "a ópera era a forma mais baixa da caricatura da mais elevada forma de arte, o teatro grego". Mladen vai buscar um filósofo como Kierkegaard (entre outros) para contrariar esta ideia. Diz-nos que Kierkegaard se deixou fascinar completamente pelo encantamento da ópera, de tal modo que para ele se transformou no paradigma da fascinação estética e sensual, elevando contudo a alma para lá disso tudo até à esfera da ética e da religião. Por sua vez Nietzsche também viu, durante um tempo, em Wagner um mesmo projecto da mesma natureza, embora posteriormente o recusasse como errado.
Mladen irá, num capítulo adiante (p.50) abordar a ópera na filosofia, com Mozart e Kierkegaard.
Foi preciso esperar por uma alma de cristão tão devoto quanto Kierkegaard para que ópera de Mozart, Don Giovanni, fosse tomada de verdade como mito a integrar num horizonte metafísico. Tentar escrever outro Do Juan depois de Mozart seria como tentar escrever "uma Ilíada post-Homérica- porque a versão de Mozart é inultrapassável, conseguindo uma harmonia completa de conteúdo e forma (K.1992:50). E continua Mladen, nunca até aí nenhuma ópera tinha sido abordada com uma reflexão filosófica tão abrangente. Kierkegaard escreveu 150 páginas só a ela no seu estudo Ou/Ou com uma expressão de lirismo incontornável. Para ele Don Juan é um herói cristão por excelência. Nele se humanizam o bem e o mal, com sedução do mal, pelo qual se é castigado, enquanto o elevo da música, sempre presente recorda que existe uma transcendência e que com ela tudo se ultrapassa. Para Kierkegaard, diz Mladen (58), foi a filosofia moderna que introduziu a ópera no mundo. Quando a linguagem atinge o seu limite é a música, para lá da linguagem, que ultrapassa os seus limites e não se podendo falar, compõe-se música.
Podemos ler em Chrétien de Troyes, no seu Perceval le Gallois o drama da terre gaste, ou no Parsifal de Eschenbach ou de Wagner a ferida infligida por Kundry a Amfortas, cuja ferida não sara, até que um cavaleiro inocente apareça no seu reino do Graal e faça uma pergunta que será chave de salvação e transformação do reino. Em ambas as narrativas se revela a crueza do Eterno Feminino, devorador de energias que enfraquecem o Homem quando a ele se entrega, sob a forma de mulher (serpente ou feiticeira) sedutora e depois redentora (no final da ópera de Wagner).
O sangue não deixa de estar presente como elemento simbólico, no Perceval: no cap.VII o jovem cavaleiro vê três gotas de sangue que deixou para trás um dos patos selvagens que ele tentou caçar, sem conseguir. O animal ficou ferido, mas ainda assim fugiu. As gotas de sangue no solo gelado de neve daquele acampamento do rei, trazem-lhe à memória o belo rosto da jovem que não consegue esquecer. Adiante se dará o encontro com ela, mas de momento fica ali a fixar aquela imagem do sangue na neve, como a pureza das faces da bela, que o hipnotizam a ponto de quase parecer que adormeceu. De novo um sangue, e uma vida que se irá transformar por completo.
Na fotografia de Nuno Félix da Costa a mulher inclina a cabeça de modo quase terno, maternal, sobre um jovem que parece implorar, ou o seu amor ou a sua compaixão, para não morrer depois de tanta entrega e tanto amor.
Também, pelo misterioso apelo que ali se pressente, poderíamos ver nessa Mulher uma variante da Mater Dolorosa, a Virgem Mãe que sabe, ao aceitar a Graça que o Anjo lhe veio comunicar, que esse Deus-filho que ela aceita e se fará carne humana na sua própria carne, será, por essa razão, sacrificado. Temos nesta fotografia tantas leituras possíveis da nossa humanidade e do nosso imaginário mítico e simbólico.
O Homem aos pés da Mulher pode ser Rei (Jesus glorificou-se como Rei dos Judeus, Cristo no Reino dos Céus) tanto quanto pode ser uma criatura em rito sacrificial, oriunda das memórias arcaicas mais distantes, sem que nada se perca da sua força inicial - a do desejo - que também ali se adivinha no encontro dos corpos materializados.
Representação de leitura aberta, mas que no secreto mistério que a envolve apeteceria ver esculpida para ser exposta num museu. A obra de fotografia artística de Nuno Félix, poeta e pintor, merecia estudo e destaque.
Nesta obra Peterson dá seguimento a um anterior volume, em que propõe igualmente 12 regras de vida, mas desta vez ampliadas a mais temas, que passam inclusivamente pela dôr, pelo sofrimento no limite do inaceitável, e de como ultrapassar tais situações. Escrevi na altura em que li algumas considerações no facebook, sobretudo nas que tocavam no efeito curativo da arte, da relação com a pintura, com a música, ou a literatura. A arte como esfera de elevação do eu a um outro patamar em que o sentido da vida, mesmo em pleno sofrimento, podia ser recuperado.
Peterson considera que a súbita descoberta dos valores morais e religiosos do cristianismo, melhor, do catolicismo, que desconhecera até esse momento difícil da sua vida, pessoal e familiar foram mais do que uma ajuda preciosa um quase milagre.
Dirige-se ao seu numeroso público do youtube quase em lágrimas, profundamente comovido, para confessar o que sente: espanto perante uma fé que vive e não entende. Pede que não lhe perguntem se acredita em deus, mas afirma: tento viver como se deus existisse. Por outras palavras, o que nos diz é que devemos valorizar a ética, nos nossos comportamentos, não pregar aos outros o que não praticamos, porque religião ou moral de boca não é algo de genuíno que deva ser respeitado, e temos de ser exemplares para que nos respeitem.
Podemos achar por vezes, no livro que agora leio, um certo estilo americano de simplificação de matérias tão complexas como esta da religião e da fé, para que o grande público, menos culto, o possa acompanhar no que pretende dizer. Mas no essencial a sua mensagem, tendo na psicologia o modelo de Jung, de valorização do espírito e da alma, leva-nos a prestar mais atenção ao mundo dos arquétipos, dos mitos e dos símbolos, como matéria prima para o nosso enriquecimento pessoal, e de quem nos rodeia, numa sociedade doente, materialista, sem valores que não sejam o do prazer e do ganho imediato.
Tarde ou cedo a hipocrisia do ganho imediato nos fará pagar caro, no mundo, essas escolhas erradas. Depressões, fome, miséria, será esse o destino de um planeta que ajudámos a destruir, quando precisava de ser salvo.
Peterson escolhe muitos exemplos da Bíblia, e dos muitos livros que leu e fundamentam o seu discurso erudito. Fala, sabendo do que fala. Estudou a filosofia ocidental desde os primórdios dos gregos, dos pré-socráticos a Platão. Podia dar muitos exemplos, de como o antigo pensamento levou ao conhecimento que hoje é valorizado, e estrutura a cultura do ocidente.
Mas aí entra a nova reflexão, dos valores do cristianismo, uma nova moral, exigente e exigindo um novo comportamento, de respeito e entrega ao outro, amando o outro como a si mesmo. Uma das regras de que nos fala Peterson é essa do olhar generoso, que perdoa, mais do que castiga, que se concentra no estudo de si mesmo para alcançar maior perfeição, sabendo embora que o caminho para a perfeição será sempre difícil, sinuoso, que passa por não fazer o que se detesta, como ele diz, e por abandonar o vício da ideologia, que reduz, não amplia, o carácter de cada um no seu modo de vida em sociedade.
No fundo, nestas regras que propõe, exige coerência entre o discurso e os actos, o pensamento doutrinal e a prática, que deve passar também pelo perdão, como em Jesus Cristo, modelo da mudança universal que se deseja. A última das regras proclama: " Sê grato, apesar do sofrimento".
Terei tempo de dizer
não o que foi
mas o que é
e que eu ainda queria?
Um tempo tão controverso
em situação tão adversa
a tudo o que possa pensar
perder tempo a desejar
sei que é um tempo perdido
e quem deseja perder
o que já não faz sentido?
Desejar é um castigo
falemos então verdade
passou esse tempo antigo
a nossa porta fechou-se
o tempo é nosso inimigo
está lá por trás escondido
com a sua foice fatal
que por enquanto não vemos
mas terá o seu momento
outrora não era esse
o tempo que nos cabia
podíamos sonhar um outro
novo ano novo dia
campo dourado de trigo
pão da vida mais à frente
tudo era consentido
mas será que sobra tempo
e direi o que queria ?
Que o trigo já foi ceifado
e o bom pão já foi comido...
(2 de Janeiro, 2022)