Monday, July 26, 2021

Isabel de Sá, A ALEGRIA DA DÚVIDA, ed. Exclamação 2021

 Quantas vezes darei comigo a dizer que gosto de livros elegantes, capas atraentes de edição cuidada, bom papel, boa letra...direi mil vezes até que se torne habitual o amor ao livro que o poeta escreveu, e se tenha cuidado com ele, o cuidado que merece.

Este é um caso especial, uma antologia feita por uma pintora, Graça Martins, que ao  escolher os seus poemas preferidos das obras de Isabel de Sá, os acompanha com o cuidado editorial que merecem. Sonho de qualquer poeta...

A foto da capa é linda, um rosto entre o claro escuro na alegria da dúvida.

E como não gostar de um livro em que o primeiro poema afirma "Porque sem Beleza não se aguenta estar vivo" ?

De Beleza se vive, de Beleza se morre. Mas permanece no rasto que deixa a alegria desse abismo iluminado, sempre de regresso, quando menos se espera. 

Isabel de Sá evoca nos seus poemas algo da surpresa do ser e do dizer dos surrealistas, que deixam os versos em aberto, na alegria da dúvida que nos surge no título. Herdeira da antiga cultura filosófica e literária que nos tempos que correm muitos preferem esquecer, Isabel de Sá inova e renova, na sua linguagem poética, o prazer do Belo, da palavra que se ama e se declara amada, como no Cântico dos Cânticos.

Poderia citar Descartes, pois há ironia, nesta alegria da dúvida. Descartes com o conceito de dúvida metódica interpelou o real, mas passou ao lado da mais bela irrealidade que poderia viver (ou sentir). Não, não é de Descartes que devemos falar, mas dos que são disruptores dos sentimentos, da consciência e do verdadeiro conceito de existir: pois sem Beleza não se aguenta estar vivo?

Em KAFKA CÉLINE E MAIS ALGUNS (p.17) a última estrofe refere-se ao que é estranho (por ser outro): 

o estranho dá vontade 

de fugir

ensombra a beleza toda.


E contudo é na capacidade de estranhar e de se estranhar que se revela a obra de um criador:

Chegada é a hora propícia às sombras.

 Do nada estoiram visões. Impossível 

esconder o rosto ou fugir ao tumulto.

As palavras agitam-se em filamentos

de luz. O poema transforma

o nosso rosto naquele que desconhecemos.

Necessito de beleza, fortalece-me

a destruição, o desejo.

(p.11)


As imagens falam, e também se fala dentro das imagens.  Perigosamente, num mundo perigoso, em que os homens são infelizes "porque se esqueceram de amar" (p.13). Amor e beleza, a única união que liberta as palavras certas, no mundo descrito e feito de incertezas. 

No poema Manhã de Agosto, lemos uma espécie de autobiografia, o momento em que se diz - e  é importante esse momento - que a poeta quer  arrastar o seu amante "para esse universo / onde a vida é trocada por palavras". E a poeta descreve  o que tem lido, qual a emoção da primeira leitura, o que a impressionou em Blaise Cendrars quando ele perdeu a mão direita, diz ainda que tem lido os poetas da sua geração, ainda lembra o primeiro poema que "inaugurou " a vida nela. Vida que ficará para sempre ligada à escrita poética, a difícil, a que narra, mas com a palavra certa. Leu Musil, guardou dele uma frase especial, e fala também das música que ama dos compositores preferidos:Schubert, Brahms, interrompendo um quotidiano  de que está cansada, pois guarda a sensação que nada do que ama é vida, a vida passa-se lá fora, não tarda chegará o Inverno " a morte no lençol", o desconforto que se adivinha. Os últimos versos não anunciam um fim desejado, mas exprimem a dôr da razão que se perde, a cabeça irreal, a morfina que acabe com o tormento, mas num toque de reversão desse momento cruel, a recuperação do possível : tomar uma aspirina, permanecer em casa.

A solidão alivia os poetas, quando se sentem perdidos no mundo das palavras, sejam elas incisivas ou até surreais. Porque é preciso aguardar até que a palavra que súbito irrompe não fecha, não prende, antes abre de novo as portas do universo (p.18-19).

Em O Pó Negro Da Cidade a visão da cidade é de facto negra: tudo rotinado, os seres descritos, cada qual com os seus hábitos, dos mais elegantes aos mais pobres dementes, aos mais abandonados, na infância como na velhice. Descreve-se "a vida mercantil" a vida, em todos os sectores está à venda, e só mesmo no último verso uma pequena luz de esperança: "o filho recém-nascido, e um futuro qualquer para iludir a vida mercantil"( p.22). 


Mas volta-se ao poder das palavras, no poema a seguir:

Tragédia e Paraíso Sempre:

O poder redentor das palavras

bala no coração até ao fim

mineral escondido no poço

escuridão no olhar dos amantes

....

a loucura brilhando no rosto

(p.23)

Graça Martins, na sua escolha, equilibra a dimensão social com a dimensão mais íntima dos poemas, em que o amor, o desejo e a pulsão do encontro estão presentes. Não descurando um certo realismo que dá aos versos, cuidadosamente escolhidos, uma teatralidade que torna visíveis os meandros negros da paixão : "Dir-me-ás que a paixão se desfez, / que já esqueceste o nome e os poemas". (p.25)

Mas há um esplendor no instinto que leva os amantes ao seu encontro, e esse esplendor atravessa toda a sua escrita poética, mesmo no meio da dôr da separação.

Isabel de Sá exprime de forma genuína e exemplar a solidão de quem ama, mesmo quando é amado de volta: 

Só lume dos teus beijos rompe

a treva onde a solidão nos mata.

Enrolamos a vida no escuro,

na semente de um amor atribulado

...

Tudo o que disseste

no desaforo da paixão

só podia incendiar a vida inteira

e encher de esperança o universo.

(p.31) 

Assim entre o prazer temido e procurado e o deslumbramento de um universo que se abre, vão correndo os poemas, e os dias.

Já referi que há poetas e vidas e obras de autores que foram lidos e são escolhas de preferência: ou porque se mataram, ou porque morreram, deixando uma obra feita.

Mas há outros poemas, igualmente elaborados mas mais intensos no desvendar do amor que se vive e a palavra descreve, como palavra que evoca, e vive ainda o que já foi vivido:

Lembrar-te, é amar os corpos que partilhamos. O que me atrai em ti pertence à sabedoria do texto, à primeira palavra murmurada.O que me atrai no amor é a indeterminação, o impulso inicial....É na treva que sou obrigada a reconhecer o que escrevo. Sucumbo a uma grave abstracção de pensamento donde chego a sair tocada pela invocação da palavra (p.41).

Este incessante falar de amor, de prazer e de paixão não descura nunca a palavra que é inicial e quase iniciática, pois é por ela que se inicia o encontro e o fatal desfazer do sentido e dos sentidos. Que depois só a mesma palavra poderá recuperar, no seu  fulgôr.

O longo ciclo  de Chegado era o Tempo (p.78-84) tem para mim uma súbita alteração no discurso poético, e vem-me à memória Herberto Helder, com as inúmeras crianças que vivem nos seus poemas de A Colher na Boca, entre rosas e sangue, o sangue da mulher que dá à luz. As crianças surgem entrelaçadas nos versos, como aqui, neste ciclo, as aparentes vivências da infância nos seus modos vários, nem sempre inocentes - mas quem decidiu que a infância é inocente?- O olhar de uma criança é antes clarividente e determinará o seu futuro no momento presente. 

O texto, na prosa poética escolhida como modo de dizer, em nada altera a subtileza do que é dito. A Vida está ali, o caminho, e a poesia, o amor e a necessidade absoluta de beleza permanecem, intocáveis:

Elevando a voz, a criança continuou: Apenas a música. Necessito de beleza. Fortalece-me a destruição, o desejo. / Pederastas disseram não haver definição para esse paraíso: os olhos do menino. / Falaram de perfeição absoluta, portas abertas a rios (p.79).

E numa espécie de ampliação do ciclo, outros poemas, com algo de mais surrealismo na expressão, numa escrita de associação de ideias, são retomadas imagens que surgem mais uma vez, como um contar de uma infância que Jung certamente analisaria à luz do seu conceito de puer eternus,  a criança eterna, um animus que é especialmente activo nos grandes criadores e nesta obra escolhida por Graça Martins se revela plenamente. Temos de ler e reler, com o cuidado que cada imagem nos pede.

Crianças sem memória desmaiavam olhando a luz. / Seus dedos procuravam contacto. / Não suportavam seiva de raízes, nem medo / Um lençol de terra sobre a face

....

A rapariga aparecia, a solidez da face, os dentes alinhados, belos. O olhar da rapariga, violento eclodir da folhagem (p.87) 

Herberto Helder não diria melhor.

E passamos aos textos de biografia já a fechar um livro que foi de espantosa leitura, na intensidade da expressão, na busca da palavra nua por ser a palavra certa,  sem labirintos e rodeios, mas tendo no coração uma experiência sempre procurada: a da beleza, em si, como nos outros muitos que cita.

As páginas 103, 104, cito apenas para que sejam lidas, não cabendo neste espaço exíguo a transcrição. É um apelo aos leitores. Leiam, procurem, para encontrar quanto de si se encontra nestes poemas. Entre ironias delicadas e verdades mais duras, por ali passou, e passa ainda a nossa vida.

Deixo-os com a CONCLUSÃO ( datada de 1997)

Fui amante da morte

 e da beleza. Vi a loucura,

acreditei na vida.

Da infância falei

como lugar de abismo.

O prazer

foi também a grande fonte

de perturbação e alegria.

Lembrei as mulheres

que recusaram submeter-se, 

escrevi palavras fúnebres.

Não poupei a adolescência,

o coração magoado

e não soube que fazer

de mim fora das palavras.

Escrevi para desistir

e depender

e ter identidade.



 




Sunday, July 18, 2021

ORFEU

 

ORFEU

lendo Miguel Serras Pereira

 

Cresceu nos campos da infância

tinham no meio um jardim

onde ele ia procurar

fosse de noite ou de dia

as flores que preferia

guardava sempre o perfume

até chegar outro dia

dos campos não tinha medo

nem das brisas que sentia

indo a caminho do rio

um rio tão manso aquele

tão cheio de submissão

ali embalava amores

que se escondiam na onda

ali sonhava viagens

que só trariam saudades

longe de dissabores

a amada não fugia

não tinha medo do mocho

do seu pio ouvido ao longe

entre folhagens distantes

onde a amada tecia

as suas coroas de flores

 

Eurídice dizia ele

num sussurro temeroso

o mocho é ave da noite

o seu apelo é fatal

dá-me a pedra que te dei

em segredo junto ao rio

da nossa infância perdida

vem comigo desta vez

deixa essa noite infernal

dá-me o beijo que é só nosso

o do Jardim imortal

 

Yvette Centeno

17 de Julho de 2021

 

Saturday, July 17, 2021

Miguel Serras Pereira, 40 anos de poesia

 Continuo a ter ao meu lado a obra de Miguel Serras Pereira, edição em branco, muito elegante, evocando as mais antigas da Ática, onde descobri Fernando Pessoa e publiquei o meu primeiro livro. Sempre gostei de capas assim, lisas,  que se fechavam sobre o que iria lá dentro, e o branco não deixava adivinhar.Fiel a esta escolha, de que no branco se esconde todo o mistério, e por vezes toda a revelação, Miguel não nos dá versos fáceis de ler, mas deixa em suspenso as nossas e suas interrogações.  Conheci o Miguel há muitos anos, num encontro de literatura e arte,  em que pude também apreciar as suas grandes qualidades de tradutor. Agora reuniu 40 anos de produção poética e podemos ter o prazer de ler e estudar como foi evoluindo, ao longo dos anos que passaram. E de como a sua escrita ora se adensou ora se tornou mais simples e secreta, com uma falsa aparência de leveza, com versos batendo ao ritmo do coração. Sente-se a herança de Camões, em muitos dos seus poemas, sonetos de evocações amorosas, embora envoltos em roupagem moderna. Ou algo do Velho Marinheiro, com versos onde navegam viajantes, navios percorrem um imaginário simbólico que permite ao poeta escapar do quotidiano, que evoca por vezes sem desejar que volte a ser. Nada nos seus poemas permite que volte a ser o que foi. Interroga,  mas fica A MEIO DO CAMINHO (p. 86) poema em que a contradição do destino permanece no ar. Como em Camões, o Destino comanda o sentimento, o Caminho, toda uma vida em suspenso.Não há peso no que escreve e descreve: há sim, uma narrativa mais detalhada, com o passar dos anos, do carrocel de emoções. Contrastando com a contenção que podemos ver neste poema, que  citei e agora transcrevo, e onde encontro uma espécie de anseio, de esperança, de que afinal mesmo o tempo pode ser revertido, e não apenas o espaço que em sonhos se percorre e já foi sublimado:

A MEIO DO CAMINHO

Mas dizer que me sais hoje ao caminho

e levas e desteces dia a dia

o fio dos meus passos e me firmas

tão desprendidamente tranquila

como se não tivesses vindo ainda


E tão ao desencontro do destino

que só podes ser tu quem vem assim


Que melhor modo de dizer  o amor e o abandono de um amor que se deseja ainda? Esta Amada bem poderia ser a de Rilke, nos Cadernos de Malte Laurids Brigge, a Portuguesa que amou infinitamente nas cartas que alguém em seu nome escreveu, e assim a imortalizou.Não é escolhida ao acaso a epígrafe com que o livro nos confronta. É de Rimbaud, o das Illuminations, "Je suis un musicien...qui ai trouvé quelque chose comme la clef de l'amour".A muita leitura e a muita cultura de Miguel Serras Pereira transparece, subtil, nunca a denunciando, porque a fez sua, carne de sua carne, vivida, e sobre a qual nos deixa indícios que nos levem também a ler, para entender, ou descobrir (em cada nova leitura um novo eco, uma nova descoberta) e faz da sua obra algo de original, de precioso a que podemos voltar vezes sem conta.

Em A CORÇA para que bicho mítico nos remete este poema, que depois, noutro poema , nos fala da "amada desconhecida" (p.115) ? Uma corça que morre aos pés do amado é certamente uma licorne, a da DAME À LA LICORNE, que pousou a cabeça no colo dessa mulher pura e entregue à solidão do seu amor guardado. Pode não ser a única, mas é a que naquele momento condensou toda a expressão do desejo assim manifestado 

É a última corça? É a primeira? E é a única?/ Transforma-a uma flecha de água em rapariga/ e ao abrigo do vento atravessando a bruma / leva-me à orla da lagoa e deita-me contigo

No belo Jardim das tapeçarias da Dama,  que julgo terem sido de Jean de Lyon (escrevi um post sobre essa autoria até hoje não assinalada) há um Éden terreal, povoado de um bestiário alquímico, mas a que falta a água, o elemento de que tudo nasce. Aqui o poeta pede que seja levado à lagoa, a água em que a Conjunção se pode dar. Completa, deste modo, com o seu poema, a "lição" que as imagens continham. A figura da amada atravessa o livro, como sombra leve retirada de algum sonho em que corpo e alma se fundiam, obedecendo a uma pulsão secreta. Sombra que vai, não permanece:

A FIGURA DA AMADA

Ao princípio eram duas a figura da amada

mais incerto hoje o número se é de ti que se trata

neste coito estelar que nos ronda e assombra


Ao princípio eram duas a figura da amada

ou as duas só tu e o vazio da onda

Este poema pediria aqui uma das mais importantes imagens da alquimia medieval, do Rosarium Philosophorum ( 1550) em que a conjunção de anima e animus é feita na dissolução da água. Dois sublimados na união do Um. Ficará para uma próxima vez. Sendo como é, um livro de balanço de escrita poética ao longo dos anos, é natural que a inocência pelo caminho se perca, e a escrita se torne mais reflexiva, mais dubitativa. Não se cresce, na vida como na obra, sem perder a inocência. Mas é-se enriquecido pela hesitação, pela interpelação, pela contemplação, (veja-se a longa lista de Haikai no meio do livro) e por uma nova capacidade adquirida de abertura às vozes do mundo, ao seu vozear, mais centrado ou confuso.

Miguel Serras Pereira, como grande poeta que é, dá atenção a essas vozes, enquanto se interroga sobre a sua, nunca posta de lado, que atravessam os seus 40 anos de produção, a que, espero, se irão seguir outros mais.