Paulo da Costa Domingos é um autor já de uma obra vasta, lida, conceituada, e reservada aos "nichos" (palavra que li recentemente aplicada a quem não escreve para tudo e todos) de quem aprecia literatura de maior inovação e de desafio ou de revolta, como é o seu caso. Os seus livros circulam pela mão de quem lê, e não de quem fala, sem ter lido. É uma grande qualidade.
Leio, e quando penso no que neles vai dito, hesito muitas vezes, pois a sua escrita tem de ser abordada com pinças, com delicadeza, e uma atenção especial ao que por vezes esconde, mas está lá contida: uma enorme cultura, atravessada por uma anárquica originalidade e quotidiana provocação, uma liberdade que oscila entre o surrealismo e a revolta assumida contra os ismos que mais prendem do que libertam. Ele não se quer classificado, ele quer-se como é, em cada momento (d)escrito.
Se fosse francês, estaria no grupo dos OULIPO: Imaginação criadora, livre e libertadora. Anti-sistema.
Mas irá falar de que rosas, neste seu novo livro, em tempos de pandemia e de guerras eternas de eternos inimigos? Porque não se pode fugir ao que se vê, se lê, se ouve no estrondoso rebentar das bombas pela calada da noite. Os gritos de desespero de quem nada tinha e nada terá mais ainda.
Procuro rosas: as do culto de Isis, no Burro de Ouro de Apuleio, as de Rilke, no despedir-se da vida que depressa acontece, a grande rosa do mundo da Divina Comédia de Dante, ou a secreta rosa dos alquimistas -
Dat Rosa Mel Apibus, gravura que ilustra uma obra de Robert Fludd, Summum Bonum, de 1629: a rosa dá o mel às abelhas. O caminho da sabedoria é difícil e lento. O do poeta não o é menos. Paulo cita Rilke: "porque existe algures uma antiga hostilidade / entre a vida quotidiana e a grande obra". Mas neste livro, tal como noutros, anteriores, Paulo deixa-se atravessar pela vida quotidiana, não teme essa narrativa tão alheia a tantos outros, e mesmo assim, ou apesar disso mesmo, constrói a sua obra, que é grande por ser tão universal e genuína. A condição humana está representada como um absoluto necessário em muitos dos poemas. E a ela se sobrepõe um absoluto maior, o da escrita, de que não se desprende nunca, pois isso seria morrer mais cedo.
Que obra é esta que se pretende deixar em herança? A da sublimação alquímica? A da continuidade universal em leitores de permanência?
Paulo sabe que é da escrita que fala. Da vida como escrita, e assim a escreve e a vive. Por vezes doente, mas nunca dolente, nunca adormecida. Pulsa nele a observação impiedosa dos destinos, o seu e o do mundo, destinos que nunca foram escolhidos, mas impostos, por vezes duramente. Rosas de sangue negro, como as de Paul Celan, que ele também leu, e vieram de longe para um enxerto, se possível, com as rosas de Herberto Helder, corpo e sangue de desejo incontido. Rosas que escorrem pelas páginas que vamos lendo, enquanto o poeta se debate, para no fim ceder e exclamar, num ciclo de tercetos (pp. 27-39):
Não consigo desligar-me da escrita.
a cepa torta, notação da música
do sangue. Não consigo, não consigo.
....
Lisboa, tão velha, e nós tão novos
aguardamos o sinal do arvoredo
para o abraço de uma Primavera
.....
Eu, homem breve, conheço a cidade
que me enterrará, não sem de antemão
responder pelos seu inane crime.
O crime é o que se sabe: o da existência. Nua e crua, livre, e libertária mesmo.
Evoca Cesariny: "há uma estrada real do pensamento e da acção / por onde só passa um de cada vez".
De novo na secreta alquimia do verbo : la Voie Royale.
Um de cada vez. Desta vez é Paulo quem a atravessa. Vai ora crítico ora jubiloso, em direcção a um Nada, como no poema de Celan, Salmo, que vale a pena citar:
Ninguém nos moldará de novo em terra e barro,
ninguém animará pela palavra o nosso pó.
Ninguém.
Louvado sejas, Ninguém.
Por amor de ti queremos
florir. Em direcção
a ti.
Um Nada
fomos, somos, continuaremos
a ser, florescendo:
a rosa do Nada, a
de Ninguém.
( in Sete Rosas Mais Tarde, trad. João Barrento).
Nascer, como nos diz Paulo da Costa Domingos, pode ser algo de violento, brutal:
...e as águas quentes escoaram-se na vulva:
e ficámos deixados no cimo de alta árvore
tudo mirando em redor: o tráfego aéreo:
e só aqueles que puderam voar iam à terra,
e assim eu desci ainda molhado de placenta
no arrepio vivido de umas correntes de ar
vendo a arca lá no alto como copa arbórea:
e demorava o chão onde pousar todo o mal
que ainda trazia por depurar, soltando-me:
e o útero torna-se o maior desejo: o motor
para o retorno ao eterno país de Nunca,
iludido em arte, desiludido em escrita (p.43)
Termino, lembrando apenas que o país real é este seu, da escrita, e que para ele nascerá todas as vezes que forem necessárias. Alguém que nos salve, antes que mundo se extinga.