Tuesday, December 22, 2020

Almanaque do Céu e da Terra, ed. Relógio d'Água, 2020

Cristina Carvalho, de quem já falei no meu blog, e que terá em breve outro livro seu, já com várias edições, a ser editado na Alemanha, na Leipziger Literatur Verlag, dá-nos agora uma prenda de Natal em bela edição, como esta da Relógio d'Água. Ao gosto dos Almanaques de outrora (será que têm resistido?) como o Borda d'Água que eu comprava sempre, num almanaque fala-se de tudo um pouco, dos astros, das colheitas, do que é ou não o momento propício para semear, dos dias fastos e dos nefastos, conforme. De uma escritora de mão feita, que tem na ascendência mãe escritora, pai duplamente dotado, poeta como António Gedeão e Professor como Rómulo de Carvalho, cujos livros o meu pai me comprava, para a minha cultura geral, e com quem o meu marido aprendeu as leis da física, no liceu de Coimbra - a Cristina, estava eu a dizer,  cresceu com eles numa casa de cultura e de amor ao saber  e ao sabor dos livros. Teve a sorte que os de hoje não têm, alimentados a extractos e não a livros inteiros e íntegros, poetas de pacotilha em vez de poesia grande, que na Revolução de Abril também deixou a sua marca.

Quem deseje deliciar-se neste Natal de pandemia com uma prosa elegante, de leitura simples, como deve ser e atraente por ser simples, não ficará desiludido. Entre o céu e a terra, são muitos os momentos de agradável enlevo, de uma escrita que não se impõe com propósitos de pedagogia sobranceira, forçada, nada disso. Uma escrita que se entrega, e a que se adere pelo prazer das imagens, que podemos guardar na memória, para mais tarde, ou, gostando de ler em voz alta, para os outros ou mesmo para nós, balançar no ritmo que as frases guardam enquanto correm, ali não há cacofonias, não há tropeções, todo o discurso obedece a uma ordem interna que sustenta uma narrativa que é prosa (mas quase diria vestida de poesia).

O olhar de Cristina para o céu e a terra, neste livro, não tem a pretensão de ser o que não é. É o seu olhar, a dado momento, a distrair-se para nos distrair também, pelo meio com uma ou outra informação, como no Borda d'Água.

O livro é escrito com a sua mão livre, e o pensamento mais livre ainda. Previne: não se procure ciência, mas prazer, o êxtase de ser, entre a terra e o céu, entre as nuvens e os mares,  criaturas que vivem num planeta que não será eterno, mas que tem na existência momentos de fulgôr que nos interpelam e aos quais respondemos, cada qual à sua maneira, até que chegue a hora de sermos a tal poeira cósmica, o pó de ouro de que se alimentam os astros e os deuses.

Em que nos pode ajudar um livro escrito assim? Em avançar no gosto da leitura, com a tal curiosidade de que falam filósofos e cientistas: sem curiosidade nada somos.


Sunday, December 06, 2020

Leonor Sá, A Poesia Está Fechada

 Enquanto as grandes editoras têm tido, segundo dizem, com a colocação de alguns dos seus autores - os que não são best-sellers -perdas de lucro por causa da crise de leitores, vão contudo resistindo porque abundam na venda de manuais escolares que as escolas são forçadas a usar por imperativo do Ministério da Educação e seus programas. Erro...o amor ao livro não é assim que se difunde, por manuais, alguns de péssima qualidade, é pela edição de autores que escrevem a sua poesia ou a sua prosa movidos pelo impulso de que falava Rilke , a necessidade absoluta de escrever, como quem luta pela vida (e não pela sobrevivência material...). Sou levada a esta reflexão porque tenho recebido e lido com enorme prazer um conjunto de edições de poetas que escrevem com sentimento genuíno, em pequenas editoras, elegantes, portáteis, o que aumenta o prazer e a elegância (não há espaço para alargamentos nem ampliações gongóricas, despiciendas, mortais para o leitor genuíno...).

E fui assim descobrindo uma nova geração, que não desistiu por não ter espaço aberto, mas abriu e continua a abrir o seu espaço próprio. Pequenas tiragens, mas que são lidas e se esgotam. O grande modelo do editor independente, que publicava os autores que amava, foi, no meu tempo, o Vítor Silva Tavares, com as edições eETC, seguido no seu modelo pelo Paulo da Costa Domingues,  felizmente ainda vivo e continuando a escrever. Já o referi aqui neste blog. Outros lhes sucederam e vamos encontrando um pouco ao acaso, é certo, mas sempre com enorme surpresa e alegria. A Poesia existe, e os editores que amam a poesia estão aí, não a deixam fechada na gaveta.

Neste seu livro Leonor Sá afirma que a poesia está fechada, e assim o abre com um longo poema em que lamenta que quanto mais se edite menos se permita o silêncio, que é o espaço onde a poesia nasce. O que há é informação, propaganda, que se substitui à palavra, ao seu domínio que é o da busca do ser, de que falaram Pessoa e Eduardo Lourenço, agora desaparecido. 

A busca do ser, no espaço e no tempo de cada um. Não se espera de um poeta do milénio o mesmo que se encontrava na geração de sessenta, por exemplo, que foi a minha, mas espera-se que a sua narrativa poética seja pelo menos tão genuína, ou mesmo mais pela liberdade em que já cresceu e lhe permite todos os atrevimentos, todas as efusões, mais realistas, ou mais místicas e contidas ou mesmo desbragadas e libertárias. Às interrogações sobre o ser, do poema Além-Deus de Pessoa, um dos preferidos de Lourenço, encontramos em Leonor, com naturalidade a interrogação, ou o desgosto de não haver um remédio para a barriga que engordou e não gosta de ver ao espelho, como na Cantiga de mal Dizer nº2 :

Olhei o meu pneu e caiu-me a alma. /Aquele reflexo inesperado / de massa gorda na luz do espelho / fez-me em absoluto perder a calma./ Olhei em volta na sapataria / apinhada de gente por todo o lado / p'ra ver se alguém também se afligia / comigo naquele estado./ Desconsolada , olhei a barriga / que sem que eu soubesse como / -estranhamente também me pertencia.

Álvaro de Campos, que achava as cartas de amor ridículas, não desdenharia, apesar de tudo, de um poema assim, escrito no desconforto de uma barriga a crescer (seria de gravidez? de menopausa?, pouco importa) pois ele fora Mestre no vocabulário do quotidiano recuperado em verso, como em Whitman. Por trás de uma aparente situação coloquial, banal, mesmo, Leonor o que nos diz é que tudo pode ser dito, tudo pode ser sentido, "de todas as maneiras", eliminando preciosismos  que roçam o doentio, por desejo de elevar o que não é elevável em situação nenhuma, a saber, o verdadeiro vazio de sentimento e pensamento.

Da sapataria ao IKEA, nenhuma situação é para Leonor indigna de ser relatada. Puré e grelos das compras cabem na sua cesta poética: ela escolhe dar dignidade ao mais trivial dos assuntos, mas escolhe também, noutros poemas, mostrar que nada na vida é trivial, se estamos atentos a ela: Estar distante dos outros / não significa estar mal. / O silêncio é um sítio bom para se estar. / Mas raros são / os que gostam do silêncio, / e menos ainda os que gostam de nele voluntariamente entrar, / nem que seja só de vez em quando / p'ra ver se a alma ainda lá está. 

Entre o Ser e o Estar, por aí correm os versos de Leonor, neste livro de poemas da ed. doudacorreria, de capa linda, em que uma menina dobrada sobre a mesa se esforça por escrever. Não é Alice, não caiu por um poço abaixo, não precisa de chave, a chave tem ela já na mão para abrir a poesia que se julgava fechada. É feita de tudo um pouco, da matéria dos dias. Mostra que a vida existe e na vida se revela um mundo, o nosso, em que podemos viver com mais ou menos conforto. O poeta atento sentirá sempre uma parte de desconforto...