Cristina Carvalho, de quem já falei no meu blog, e que terá em breve outro livro seu, já com várias edições, a ser editado na Alemanha, na Leipziger Literatur Verlag, dá-nos agora uma prenda de Natal em bela edição, como esta da Relógio d'Água. Ao gosto dos Almanaques de outrora (será que têm resistido?) como o Borda d'Água que eu comprava sempre, num almanaque fala-se de tudo um pouco, dos astros, das colheitas, do que é ou não o momento propício para semear, dos dias fastos e dos nefastos, conforme. De uma escritora de mão feita, que tem na ascendência mãe escritora, pai duplamente dotado, poeta como António Gedeão e Professor como Rómulo de Carvalho, cujos livros o meu pai me comprava, para a minha cultura geral, e com quem o meu marido aprendeu as leis da física, no liceu de Coimbra - a Cristina, estava eu a dizer, cresceu com eles numa casa de cultura e de amor ao saber e ao sabor dos livros. Teve a sorte que os de hoje não têm, alimentados a extractos e não a livros inteiros e íntegros, poetas de pacotilha em vez de poesia grande, que na Revolução de Abril também deixou a sua marca.
Quem deseje deliciar-se neste Natal de pandemia com uma prosa elegante, de leitura simples, como deve ser e atraente por ser simples, não ficará desiludido. Entre o céu e a terra, são muitos os momentos de agradável enlevo, de uma escrita que não se impõe com propósitos de pedagogia sobranceira, forçada, nada disso. Uma escrita que se entrega, e a que se adere pelo prazer das imagens, que podemos guardar na memória, para mais tarde, ou, gostando de ler em voz alta, para os outros ou mesmo para nós, balançar no ritmo que as frases guardam enquanto correm, ali não há cacofonias, não há tropeções, todo o discurso obedece a uma ordem interna que sustenta uma narrativa que é prosa (mas quase diria vestida de poesia).
O olhar de Cristina para o céu e a terra, neste livro, não tem a pretensão de ser o que não é. É o seu olhar, a dado momento, a distrair-se para nos distrair também, pelo meio com uma ou outra informação, como no Borda d'Água.
O livro é escrito com a sua mão livre, e o pensamento mais livre ainda. Previne: não se procure ciência, mas prazer, o êxtase de ser, entre a terra e o céu, entre as nuvens e os mares, criaturas que vivem num planeta que não será eterno, mas que tem na existência momentos de fulgôr que nos interpelam e aos quais respondemos, cada qual à sua maneira, até que chegue a hora de sermos a tal poeira cósmica, o pó de ouro de que se alimentam os astros e os deuses.
Em que nos pode ajudar um livro escrito assim? Em avançar no gosto da leitura, com a tal curiosidade de que falam filósofos e cientistas: sem curiosidade nada somos.