E se tudo fosse, mesmo, água,
como queria Tales, e como
tantas línguas parecem querer
dizer
em seus pronomes aquáticos,
os quais
evocam, quase sempre, a relação
com aquele modo de ser
primordial?
Se fosse assim, o meu e o teu
rio
que levam cursos tão
diferentes,
por serras e países
afastados, seriam
no fundo, e sem se ver, um
mesmo rio.
E os versos que aqui ponho a
flutuar
poderiam chegar à tua margem,
claro que já apagados pelas águas,
mas
com uma música corrente que
ainda ouvisses.
Chegou pelo facebook este poema, oferta generosa do autor aos seus seguidores, que são muitos.
Prendeu-me a relação com o "modo de ser primordial", se tudo fosse mesmo água. Aqui se revela uma das imagens essenciais para a compreensão do poema. A água, no seu modo de ser primordial, é de súbito a água inicial da criação do mundo, onde todo o ser é indistinto e Deus devagar, ao longo de vários dias, irá diferenciar. Com a separação que introduz se modifica o mundo e o seu desejo de ser e de criar.
Não há poesia inocente, não
há imagem, ideia, movimento, que no caso deste poeta não transporte algo mais,
de muito longínquo no pensamento, na cultura de que é herdeiro e nos aponta a
herança. Aqui teremos de deixar Tales de Mileto, o pré-socrático e tentar beber
no Génesis a lição mais escondida da criação do mundo e do primeiro homem:
“Ao princípio, Deus criou o
céu e a terra. A terra era vaga e vazia, as trevas cobriam o abismo, o espírito
de Deus planava sobre as águas”.
Estas
as primeiras referências: já existiam “as águas”, o Todo que cobria céu e terra
criados por Deus, que tal como as águas era também ele antigo e primordial. O
seu Espírito, no momento da criação, planava sobre esse Todo. Talvez daqui
tenha retirado o filósofo a sua ideia de que tudo era água, ideia que João
Paulo desenvolve no correr do poema. Mas na verdade há outra, subjacente, e é
sobre essa que temos de meditar, e que surge no dia dois da criação, depois de
já separadas luz e trevas, no primeiro:
“ Deus
disse: que haja um firmamento no meio das águas e que separe as águas das águas
e assim se fez. Deus fez o firmamento que separou as águas que estão sob o firmamento
das águas que estão sobre o firmamento, e Deus chamou céu ao firmamento”.
Foi o
segundo dia.
As
águas estão ainda presentes no início do dia 3, em que a diferenciação
continua, com a descrição no fim da verdura que cobrirá a terra. Mas falemos das
águas:
“Deus
disse: Que as águas que estão sob o céu se reúnam numa só massa e que apareça o
continente; e assim foi. Deus chamou ‘terra’ ao continente e à massa das águas
‘mares’, e Deus viu que isso era bom.
A
criação foi um acto ordenador de um universo caótico na sua origem, e que
culminará com a criação do homem, Adão, feito à imagem e semelhança de Deus, ao
sexto dia. No sétimo dia Deus repousará.
Mas não há repouso no mundo.
Será por
via do par Adão/Eva que a história do mundo seguirá afinal outro curso.
Deus verifica que uma centelha de si mesmo permanece
em Adão, feito à sua imagem, ele que entretanto também já se dividira de si mesmo e se chama agora Jeová, continuando o seu
diálogo, a sua interferência num mundo que até hoje tem parecido escapar-lhe.
Jeová assume a forma de uma divindade poderosa, arcaica, a quem é necessário
prestar tributo, sacrificar vidas para o honrar.
A
interrogação de João Paulo, no poema, é feita de uma líquida nostalgia de um
outrora em que o absoluto do universo era reconhecido e ao qual o homem (o poeta)
e o seu Verbo se podiam entregar, vogando, confiantes.
A
música das esferas, que o todo da água primordial envolvia, sempre haveria de
chegar ao seu destino.
O
destino era o “outro”, o outro de si mesmo e do deus implacável a quem a
interrogação, como se cada poeta fosse um Job expectante, se dirigia: “e se
tudo fosse, mesmo, água”...
Não
haveria sofrimento, não haveria divisão (a ruptura que os causava) e então sim,
o verso poderia recuperar a inocência que a consciência de si, e a satisfação
com a sua Obra, no velho Jeová, tinha transtornado para sempre.
O
Verso único, o do Som puro, perdido.