Wednesday, June 24, 2020


O Cântico de Cybele

“Tudo em repouso:
  A treva e a luz,
  A flôr e o livro”.
( Rainer Maria Rilke, Sonetos a Orfeu )
 1.
A lua cobriu o rosto
com a sua nuvem lilás:
ouviu-se
dentro da noite
uma raiz
 arrancada
uma flauta
 a soluçar
 2.
Vai o veleiro cortando
as ondas das águas claras
ao leme a criança eterna
aprendendo a navegar
onde irá ter o veleiro:
ao areal desejado
 ou
à profundeza do mar?
 3.
Orfeu demorava-se
 ali,
abraçando a sua Amada
junto às pedras do ribeiro.
Disse à deusa:
quem me verá renascer
quem dirá meu nome
inteiro?
 4.
A deusa disse à Amada:
vem ter comigo
quando quiseres chorar,
guardei Orfeu
no meu peito
vamos num carro
 de luz
não te vou abandonar
 5.
É tempo.
Busquemos aquelas grutas 
onde se formam
as almas:
são elas que nos protegem,
contam os dias
as horas
dizem os nomes inteiros
de quem vai a caminhar

in memoriam... 





Saturday, June 20, 2020

Dois livros no mesmo dia

Chegaram no mesmo dia, pelo nosso carteiro de sempre, antigo e já de há anos amigo. Deve saber mais do que leio do que eu própria.
São dois livros pequenos mas tão grandes, que nos deixam tanto espaço na cabeça, para ler e pensar...
Comecei pelo do Paulo da Costa Domingos: ILÍCITO. Contra o escuro da capa um mandala rasgado. E rasgada é a exclamação ora de desafio, ora de espanto, ora de afirmação contundente no discutir com um Mestre - quem será ele? um Deus que se escondeu? um Deus distraído do mundo e sempre ausente? - Abro ao acaso e leio:
Mau grado o Diabo
ainda não ter tocado
a carne da sabedoria
no pomar sedento,

os ares do negrume, 
a ignorância, em absoluto
cobrem a face da Terra, 

que no escuro encost'a 
a boca ao espelho, ao cardo:
no escuro a víbora toca.
(p.12)
Aqui se poderia evocar o mal, já presente no Éden criado para uma aprazível eternidade, que nunca chegou a existir. Uma víbora, com o seu veneno, chamemos incitamento ao proibido, já ali estava para desafiar o par primordial.
E aquele Deus que pairava, escondido por ali, surge e castiga. Volta o Ser criado às águas perigosas:
É um ribeiro, puro disfarce, uma harpa a música que a víbora tocava, e eis que o poeta confessa então o que o aflige:
Um mar gigante com arca,
uma metrópole flutuante,
quarentena de aventura.

Eu sozinho, mestre, perplexo
ante a ciência que me deste
do compassso, pétala e agulha.
(p.13)

A dimensão bíblica de um Génesis que criou e logo castigou, um mestre de letra pequena - porque na verdade desvia, não conduz, e esse desvio é um rasgão na plenitude da alma, no Todo que dividiu, esse é o pecado da Ilicítude anunciada no título de um livro que a partir de um conceito que a razão consegue definir, se torna tão largo, tão grande e tão indefinível. Não bastará buscar no dicionário. Só no livro da Vida, onde o que é lícito e o que é ilícito se contrapõem, mas não se completam, pois, diz o poeta: "nunca mais à infância regressaremos" (p.14)
Quase que evocando um Hoelderlin que se tornou cada vez mais perdido na Memória que tinha celebrado, Paulo afunda o seu pensamento, ilícito, pois é de poesia que se trata e esta é uma área que não convoca o lícito,  o regulado e autorizado, mas sempre o marginal - eis então o que continua a dar-nos para que o seu (nosso) fio não se perca (atrás já tinha dado uma agulha...):
Troquemos de lendas, mitos, ideais,.
Troquemos de tormento, de pulsação
felina, de borzeguim e gravata. Perdemos

a memória e sinapses na separação
do conhecimento em luz que
decompusemos, mestre, entre teu jardim e os demais.

Nunca mais à infância regressaremos.

Troquemos de pontas de fogo,
 troquemos de contas de vidro, 
troquemos de contas de vidro...
(p.15)

E já mais adiante, na leitura, a afirmação da sua vontade ilícita, da negação necessária: quem não renega o mestre não encontra o seu caminho:
Consegues imaginar
a muita incerteza
do teu servo? 
erguendo a cabeça
para te negar.

Na aridez da multidão
houve uma arquitectura,
ora casa que se mura 
ora verbo da libertação,
com um fundo poço 
para o coração da culpa.
(p.16)

Cabe ao leitor, agora acabar a leitura. Fiquemos com a pergunta:
"consegues imaginar /a muita clareza / do teu aluno?"
O que aconteceu entretanto é que a infância, recuperada por meio da negação de um todo já dividido, - crescer não é dividir? não andam por aqui pecado e salvação? -
"a infância lança, então, suas contas de vidro / na boa cova, por um nome novo".
E conclui:
E aqui eu pude, por fim, descalçar-me:
nem idolatria nem religião.
Na fresca escuridão, uno.
(p.20)
Leu Hesse, de certeza, pois o Paulo foi sempre grande leitor, em meio ao  grande amor à poesia. As contas de vidro podem ser berlindes, mas podem ser as do rosário do Jogo das Pérolas (outros traduzem contas) de Vidro, que Hesse publicou, também na ilicitude do seu pensamento heterodoxo, guiado por um Músico, mestre de doutrina e mística taoísta.

II
Last, but not least,
Pequena Lua Cheia de Sol , como já disse noutro lugar, uma Renga ao gosto japonês, escrita a 4 mãos por dois poetas da EUFEME, Francisco Duarte Mangas e Paulo Moreira Lopes. Qual deles comeu uma ou outra, não é para distinguir é para saborear gomo a gomo deixando nas mãos aquele perfume especial, ao mesmo tempo tão fresco e doce.
Perfume que permanece, não lavemos as mãos...Os autores explicam, numa nota prévia: "talvez por ser inverno, a nossa palavra preferida é tangerina. Harmoniosa (traz o tanger dentro de si), juvenil, pequeno sol feito fruto a espreitar a manhã. Também gostamos muito de tangerineira, mãe abundante de tantas meninas de sereníssima doçura"...
Abrem o livro com um poema da infância:
Quando as mãos
cheiravam a tangerina
o inverno começava
 a despir o capote
Os haikai obedecem a normas, que podemos, é certo, não respeitar. Mas aqui foi respeitada a indicação da estação das tangerinas: o inverno.
Passar, como estou a fazer, de um livro conceptual, de conceitos que terei de entender, como o de Paulo Domingos, para um livro de imagens e sensações, o perfume, a côr, o sabor, é extremamente repousante. 
Este acaso que me trouxe os dois livros foi um acaso feliz: preciso de pensar, para existir (e a culpa não será do Descartes), mas preciso de sentir, sem por isso me sentir presa a nenhum sensacionismo teorizado pelos Modernistas. É mais simples, é mesmo quase banal e corriqueiro, o do prazer de descascar uma tangerina, ao ar livre, colhida da sua árvore, a meio da manhã ou da tarde, num das muitas fugas que fazem as crianças, fartas de estar em casa.
Uma tangerina
vale por mil metáforas
Sim, em certa medida. Mas nada me impediria, com Magritte, de escrever "isto não é uma tangerina". Porque na verdade o que ali está, no Haiku, é uma representação da realidade, uma imagem, e não um fruto real que eu possa saborear. Posso imaginar, não mais.
o gomo da tangerina
 desenha um sorriso
 na mão do poeta
Fruto e imagem (representação) dele, o desenho e o som das sílabas que o dizem, no seu todo, transformam a tangerina em momento único de felicidade. Esse é o poder da imagem, na ausência do fruto real que a provocou. 
Há uma toada real, de vez em quando, de canto tradicional popular, nos versos que vamos lendo. Mas a mim interessou-me mais, e mais uma vez, a questão da imagem, neste caso redonda e solar, e trazendo à memória inúmeros prazeres que na vida se perdem, ou de novo se recuperam, com a faculdade de evocar. Revejo na tangerina o redondo da infância, um todo que não se perdeu ainda do todo do seu ser, a árvore maternal que a folhagem protege enquanto o fruto e a criança crescem. A seu tempo irão amadurecer.
tomo a liberdade de retomar aqui uma reflexão de outrora, sobre imagem e representação. Podemos ler ou não ler, ficando apenas pela apetecível tangerina que não nos dão a comer...
Michel Foucault discute no seu estudo de 1973, Ceci N’est Pas Une Pipe, o aparente paradoxo com que o quadro nos confronta.
Falando de imagem/representação podemos discutir se a representação o é de um objecto real (como neste quadro) ou de um objecto imaginário: com este conceito de representação do imaginário, trazendo-o até nós, tornando-o por sua vez real deste modo, alcançamos, ou propomos, um novo patamar de discussão.
Neste patamar teriam lugar de destaque os Surrealistas e as suas criações, vivendo do imprevisível, do surpreendente, do que poderíamos chamar a lógica do inconsciente.
E neste caso já o real em si mesmo pouco nos preocuparia, dado que um outro real – o imaginário – se tinha tornado visível e apetecível.
Este é um patamar onde para além da questão da imagem se coloca uma outra: a do dizer, e em que linguagem: pictórica, literária, musical, etc. (deixando de fora um imaginário não menos interessante, o científico, com as novas capacidades de elaboração tecnológica hoje tornadas possíveis).
O prefixo in, remete desde logo “para dentro”, ou seja para uma íntima visão (representação) emanada / construída a partir das esferas da nossa psique (consciente, sub- e in- consciente). Sendo assim, a Imagem, neste contexto, mais restrito ou mais amplo, terá sempre uma forte marca de subjectividade.

A imagem, tomada no sentido da Psicologia das Profundidades (Jung) é uma forma que se constrói nos sonhos, nas imaginações e  fantasias a partir de um núcleo de relacionamento entre o Sujeito consciente e a esfera profunda do Inconsciente. A alma (die Seele, Jung) projecta nas imagens a psicodinâmica do inconsciente na consciência. A alma cria imagens e símbolos e é ela mesma Imagem (itálico meu).
Imagens e símbolos, diz  ainda Jung, são de origem mais primitiva e mais variada do que a linguagem, e por isso um importante fundamento da comunicação humana.
Podemos avançar um pouco mais pelos conceitos : imagem, representação, projecção de conteúdos do inconsciente. Nos casos de que nos fala Jung, os sonhos, as fantasias, o conceito de Alma- sendo que a Alma é Imagem, é representação de uma Essência que de outro modo não seria inteligível – fomos sendo guiados para a tal visão íntima, subjectiva, da representação.
Mas fomos avançando um pouco mais.
Da Imagem /Representação à Imagem/Comunicação:
- em primeiro lugar do eu consigo mesmo (imagem /representação, do inconsciente à consciência)
- e em segundo lugar do eu com o outro, com o mundo (por via da representação / comunicação)
 E fica uma pergunta: não poderá haver um centro próprio, específico, demarcado no cérebro de forma mais objectiva que seja o criador da imagem, e da representação?
Ao “mapear” um cérebro o que descobre, ou o que poderá vir a descobrir um dia, o neurobiólogo do século XXI? Guardo a ideia de que a imagem é talvez a sinapse de dois neurónios felizes que se entendem, como na definição de Eternidade que Rimbaud nos oferece no seu poema  L’ÉTERNITÉ, de 1872:
“Elle est retrouvée. / Quoi? – L’Éternité. / C’est la mer allée avec le soleil”
Ou, neste caso, a lua fugida com o sol.












Monday, June 01, 2020

TELEPATIA, de João Paulo Esteves da Silva


E se tudo fosse, mesmo, água,
como queria Tales, e como
tantas línguas parecem querer dizer
em seus pronomes aquáticos, os quais
evocam, quase sempre, a relação
com aquele modo de ser primordial?
Se fosse assim, o meu e o teu rio
que levam cursos tão diferentes,
por serras e países afastados, seriam
no fundo, e sem se ver, um mesmo rio.
E os versos que aqui ponho a flutuar
poderiam chegar à tua margem,
claro que já apagados pelas águas, mas
com uma música corrente que ainda ouvisses.

Chegou pelo facebook este poema, oferta generosa do autor aos seus seguidores, que são muitos. 
Prendeu-me a relação com o "modo de ser primordial", se tudo fosse mesmo água. Aqui se revela uma das imagens essenciais para a compreensão do poema. A água, no seu modo de ser primordial, é de súbito a água inicial da criação do mundo,  onde todo o ser é indistinto e Deus devagar, ao longo de vários dias, irá diferenciar. Com a separação que introduz se modifica o mundo e o seu desejo de ser e de criar.
Não há poesia inocente, não há imagem, ideia, movimento, que no caso deste poeta não transporte algo mais, de muito longínquo no pensamento, na cultura de que é herdeiro e nos aponta a herança. Aqui teremos de deixar Tales de Mileto, o pré-socrático e tentar beber no Génesis a lição mais escondida da criação do mundo e do primeiro homem:
“Ao princípio, Deus criou o céu e a terra. A terra era vaga e vazia, as trevas cobriam o abismo, o espírito de Deus planava sobre as águas”.
Estas as primeiras referências: já existiam “as águas”, o Todo que cobria céu e terra criados por Deus, que tal como as águas era também ele antigo e primordial. O seu Espírito, no momento da criação, planava sobre esse Todo. Talvez daqui tenha retirado o filósofo a sua ideia de que tudo era água, ideia que João Paulo desenvolve no correr do poema. Mas na verdade há outra, subjacente, e é sobre essa que temos de meditar, e que surge no dia dois da criação, depois de já separadas luz e trevas, no primeiro:
“ Deus disse: que haja um firmamento no meio das águas e que separe as águas das águas e assim se fez. Deus fez o firmamento que separou as águas que estão sob o firmamento das águas que estão sobre o firmamento, e Deus chamou céu ao firmamento”.
Foi o segundo dia.
As águas estão ainda presentes no início do dia 3, em que a diferenciação continua, com a descrição no fim da verdura que cobrirá a terra. Mas falemos das águas:
“Deus disse: Que as águas que estão sob o céu se reúnam numa só massa e que apareça o continente; e assim foi. Deus chamou ‘terra’ ao continente e à massa das águas ‘mares’, e Deus viu que isso era bom.
 A criação foi um acto ordenador de um universo caótico na sua origem, e que culminará com a criação do homem, Adão, feito à imagem e semelhança de Deus, ao sexto dia. No sétimo dia Deus repousará.
 Mas não há repouso no mundo.
Será por via do par Adão/Eva que a história do mundo seguirá afinal outro curso.

 Deus verifica que uma centelha de si mesmo permanece em Adão, feito à sua imagem, ele que entretanto também já se   dividira de si mesmo e se chama agora Jeová, continuando o seu diálogo, a sua interferência num mundo que até hoje tem parecido escapar-lhe. Jeová assume a forma de uma divindade poderosa, arcaica, a quem é necessário prestar tributo, sacrificar vidas para o honrar.
A interrogação de João Paulo, no poema, é feita de uma líquida nostalgia de um outrora em que o absoluto do universo era reconhecido e ao qual o homem (o poeta) e o seu Verbo se podiam entregar, vogando, confiantes.
A música das esferas, que o todo da água primordial envolvia, sempre haveria de chegar ao seu destino.
O destino era o “outro”, o outro de si mesmo e do deus implacável a quem a interrogação, como se cada poeta fosse um Job expectante, se dirigia: “e se tudo fosse, mesmo, água”...
Não haveria sofrimento, não haveria divisão (a ruptura que os causava) e então sim, o verso poderia recuperar a inocência que a consciência de si, e a satisfação com a sua Obra, no velho Jeová, tinha transtornado para sempre.
O Verso único, o do Som puro, perdido.