O Caminho contra o Vento.
O livro de Cristina Carvalho
sobre Ingmar Bergman é para ler devagar,
sobretudo por quem conheça a imensa filmografia deste génio. Não é como os
anteriores romances biográficos que já fez, sobretudo aqueles em que entra
pelas páginas dentro como voz directa do biografado. Assume a sua voz,
anuncia-se como sendo ele mesmo a tomar a palavra, a fazer a confissão de
amores, escolhas e maldições. Contudo quem conhece a sua filmografia sente que
ali nada destoa: a infância torturada, o ódio a um pai, Cónego Protestante, que
não hesitava em deixar os filhos de castigo a
pão e água, a bater-lhes e até chicoteá-los, se possível fosse.”O meu
querido pai era uma besta...
Para nós, miúdos, era uma besta
desumana e estúpida, digo eu já muito longe e sem conseguir vê-lo. Com a minha
mãe também tinha comportamentos idiotas. Fazia-a chorar ou choramingar quase
todos os dias...Ou porque a casa não estava arrumada como devia estar, ou
porque os miúdos, nós, éramos muito mal educados, ou porque o pão estava frio,
ou por isto ou por aquilo...Ela sofria bastante com aquela figura irascível e
rígida”.
A descrição da tirania continua: de
repente todos à mesa, à espera de jantar, a sopa quente e o pai desata primeiro
a ver as orelhas de cada um, se estavam limpas. E não ficava por aqui, no medo
que incutia às crianças: que os ciganos as roubavam, ou compravam para o circo,
e quem gostaria de ser o primeiro”.
“O
meu pai era padre.Parecia-me quase impossível ele ser tão bonito e tão mau”.
Assim
surgem as primeiras memórias, de um princípio de vida que não parecia
auspicioso, para um futuro génio como Bergman. Mas ele saiu de casa aos 19 anos,
para fazer teatro, daí para o cinema, e só agora tudo isto, aos 85 anos, na sua
ilha fechada, lhe ocorre contar. Já tinha feito os filmes por onde toda a sua
vida, ou o seu pensamento interpelador do Bem e do Mal tinham passado. A
difícil, mesmo impossível relação de amor entre os seres, filhos e pais.
Bergman, um pensador do incomunicável, excepto num ou noutro caso. Mas até no
milagre da Fonte daVirgem, DEUS parece esconder-se, assiste sem interferir ao
sacrifício brutal, antes que nasça a fonte...
Só a
velhice permite, como ele diz, regressar tão profundamente a um passado
longínquo, que devia estar completamente afundado na treva da memória. Porque
foi infeliz, frequentemente, entre os intervalos da casa da sua avó, as
filmagens que corriam a seu gosto, o enorme prazer de comer bolachas Maria todo
o tempo. Sofria do estômago, um mal que atribuía ao pavor das maldades do pai.
E as bolachas eram um lenitivo.
Pessoas
como eu, a chegar à velhice, como ele chegou, serão mais sensíveis a estas
outras páginas que Cristina dá a ler. Contudo, sendo ambos criadores, de
verdades e ficções, o que será que melhor me vai atrair, ou desafiar para ir
ampliando a minha própria narrativa (pois tendo visto todos os seus filmes, e
lido alguns excertos dos seus diários em inglês) que fios me vão conduzir por
aqui, no sentido de entender melhor a sua obra, aprofundar a complexidade de um
pensamento ao mesmo tempo tão crítico e tão sensível à Beleza e às situações em
que se expõe?
Conta
como sempre foi independente de espírito, nunca gostava que lhe dessem ordens
ou fizessem reparos. Com o pai já tinha sofrido demais...e agora gozava
plenamente do seu direito de ser, diferente, e não puro espelho de outros. Professores
que não seguia, e sem eles aprendeu tudo o que lhe fazia falta para a sua arte
do cinema:”luzes, câmaras, fotografia, sistemas de sons, etc.” Para que depressa e sem
outras opiniões, quando lhe surgia uma ideia, poder rapidamente pô-la em prática.
Assim, nessa pressa, nasceram os seus guiões. Um artista completo, e reconhecido
como tal.
Mas
dá-se, na narrativa, agora um salto para
a velhice:
“Agora
sinto a velhice. Conheço pessoas assim, a sentir a velhice. Enfim um tanto
amalucadas. Vestem-se como se tivessem menos cinquenta anos, querem saltitar,
mas são ridículas; pretendem poder comer de tudo e vão dizendo que nada lhes
faz mal, mas é tudo mentira: os seus velhos
órgãos vitais já não respondem, não são os mesmos, estão mirrados, os seus
sonos são curtos e cheios de pesadelos.
Eu sou velho e sinto a velhice a pisar, a calcar, a tentar esmagar-me, mas
ainda não me dei por vencido. (...) E o pior de tudo é a ideia da morte, essa
ideia instalada em mim há tanto tempo e que agora acorda e passa todo o dia
comigo”.
Evoca
então, depois de se comover com essa ideia, a morte que se aproxima, a casa da
sua avó. E nesse espaço, que agora parece de magia, o seu crescimento de jovem adolescente, a natureza à volta, a água, os barcos, os peixes, um mundo que o
vento leva consigo, enquanto ele, ainda vivo caminha contra o vento.
Escrevi
algures ( e muito do que Cristina me dá a qui a ler, por via de um Bergman que
foi de paixão, no meu tempo ) que o vento é o Pensamento.
Imagem
que bebi numa gravura alquímica de Michal Maier, o médico e hermetista do
século XVII, que conviveu com todos os grandes do seu tempo.
Na
verdade, ver os filmes de Bergman (sou eu a falar) é ver um pensamento em
movimento, o tal vento que o leva.
E é
pena que se limitasse apenas a jogar o Xadrez da morte, em vez de antecipar,
com o seu olhar severo, o que viria a ser o xadrez do envelhecimento.
Mas surge finalmente nas páginas em que se ocupa precisamente do envelhecer, pela
mão de Cristina Carvalho.
Envelhecer
é muito aborrecido, dá trabalho. Colide com as rotinas antigas, obriga a
rotinas novas, como esta, aparentemente tão simples mas tão irritante de acordar
cedo e não poder ficar na cama, porque “ se começa com pensamentos sinistros a
propósito de tudo e de nada”.
Outrora,
quando se era mais novo, o pensamento era ideia criadora, novo argumento, novo
guião, novo filme. Agora podendo gozar de um tempo imenso, o tempo todo,
prefere não falar de si, nem da sua obra, nem desta sua velhice, com ninguém,
nem sequer com o seu melhor amigo ainda vivo, Erland Josephson, cinco anos mais
novo.
“
Sabe-me bem o paladar do silêncio”.
Com
um mundo envelhecido, sobretudo na Europa, que deixou de ter filhos, não me
espanta que um Hermann Hesse escreva os seus ensaios sobre a arte de
envelhecer, ou o Cardeal Ratzinger as suas meditações sobre a morte.
Mas
Bergman, o criador da imagem, não propriamente da meditação sobre ela, que aqui
nos é descrito, também tem os seus momentos: “ Assim aguardo a minha morte,
entretido a construir um caos organizado, a expulsar da minha alma todos os
monstros que lá abriguei por tantos e tantos anos”.
E
adiante, pela mão de Cristina, cuja escrita esmerada não se perde em floreados:
"Aqui há tempos, numa entrevista, perguntavam-me se eu tinha ou não tinha medo
de morrer. (...) Disse-lhe que não tinha medo nenhum e, por outro lado, sentia
muita curiosidade e pensava poder ser até, uma situação interessante. (...)
Acredito, na verdade, numa outra vida, sempre acreditei.É impossível? Como
saber? Quem sabe? Ninguém.(...) Sempre considerei essa situação da morte como
uma passagem para um qualquer outro estágio”.
Sendo
o universo tão vasto, por que razão há-de ser a morte uma aniquilação total em
vez de uma dispersão, como folhas ao vento, uma explosão de energia, a que a
alma continha aprisionada num corpo, numa matéria densa, despida já de si
mesma?
Bergman
volta à questão do Envelhecimento, já a caminho do fim do livro ( e tal como
eu, que escrevo desde 2013 para combater, sem mais, esse envelhecimento e os
seus cruéis tropeços) pede que lhe perdoem, se já disse o que vai dizer. “Volto
a falar”. E para dizer o que já dissera, que não o assusta. Não tem medo, o que
tem é saudades:
“Sinto
saudades, é isso. E sentir saudades, isso sim, é um sentimento terrível (...)
sinto saudades de ontem, de hoje, sinto saudades de amanhã”.
Foram
sentimentos destes, deste género, sentimentos e verdades desgraçadas,
impositivas, que tentei transmitir em toda a minha obra cinematográfica”.
Saudades
de amanhã. Para mim tem uma leitura simples, ou simplista, se quiserem apreciar
menos do que eu o que ele diz: deseja que o amanhã traga consigo não o temor da
morte, adiada, mas o sorriso feliz de um presente que continua actuante
enquanto a hora não chega.
Afirma que não há salvação (da morte? ) para
ninguém. Mas não é preciso invocá-la, basta sentir o vento suave no rosto, se
acaso se foi à janela, ou se se ficou deitado na cama mais tempo do que o
habitual, o sopro leve chegará na mesma, à hora certa, levando para um Longe
infinito (seria esse o nome de um Deus real, numa outra esfera? ) a etérea
substância do corpo que já se abandonou.
Não
falarei da imensa lista de mulheres amadas, das situações de prazer ou de dôr,
de separação, de reencontro, o leitor poderá seguir até ao fim os pormenores de
uma vida que Cristina Carvalho visitou como deve ser, antes de ficcionar: ou
seja, com o respeito e o cuidado que toda a vida, mesmo a dos génios mais difíceis,
nos merece.
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