Notas de um diário
(para o Sérgio Ninguém)
Escrevi
no blog de simbologia e alquimia sobre o último livro do Sérgio Ninguém, da
Eufeme, uma cuidada e belíssima edição, livro pequeno, como gosto tanto de os
ler, O PESCOÇO NA NAVALHA, poemas de
2016 a 2019.
É o
livro que o salvou, ou o fez atravessar, pela palavra poética, uma funda
depressão. Todo o imaginário é negro, e o seu dizer, puro e seco não se esconde
em formas mais elaboradas e suaves ( o que seria um desastre) tentando envolver
o seu discurso numa elegância fictícia.
Aqui
não há fingimento. Não esconde, não disfarça, não facilita leituras.
Sérgio
Ninguém pertence a esta nova geração de poetas libertos que agora vou
descobrindo, com um prazer enorme. Não se pode ser todo o tempo um repetidor de
Pessoa, ou de outros dos nossos grandes, dos vários movimentos, do Modernismo
ao Surrealismo e ao post-Modernismo que inovou, provocou e também se esgotou na
devoração que se fez de um Herberto Helder, por exemplo.
Não,
com esta geração a que Sérgio pertence, descubro novas linguagens, não estão
presas, nem querem, ismos de qualquer
espécie. E por trás da linguagem o que ela significa: uma nova e por vezes
brutal relação com o mundo, os outros, sejam eles quais forem, e acima de tudo
consigo mesmo. O poeta já não se esconde, expõe-se, como diria Celan ( aquele
que a seguir a Pessoa mais me tem interessado e influenciado : traduzi-lo foi
uma aventura que me ensinou a chegar ao osso
da palavra, a lavar o cadáver do
corpo poético com que nos confrontamos de cada vez que escrevemos. Uma a uma ir
despindo as palavras que cobrem o cadáver.
E
expô-lo assim, na sua nudez tão afrontosa. Que não haja piedade, pois não há
homem nem deus que nos ensine a ter
piedade.
Sérgio
coloca o pescoço na navalha. Imagem cruel, a que não poupa o leitor: a cada
momento poderá dar-se a morte, esse corte suicida, e o sangue por ali se
escorrerá, fazendo poça no chão, o mar da vida assim interrompida. Este
conceito, ou este sentimento – afinal a poesia também é sentimento – da interrupção é importante no discurso
poético. Não fomos feitos para uma edénica eternidade bem-aventurada? Que
crime, que traição, que pecado tremendo nos deu um castigo de que o próprio
deus, depois se arrependeu, dando o seu próprio filho em oferenda?
Vem
logo à memória o célebre poema de Blake nas Songs
of innocence and experience, tão
terrível, de garras que se cravam tão fundo, e o tornam quase intraduzível, TIGER:
Tigre, tigre, fogo ardendo
na escuridão da floresta,
que olhar eterno ou que mão
tão temível simetria desenhou?
Em que céus ou profundezas
arde o fogo dos teus olhos?
E ele, que asas deseja ter?
Que mão ao fogo se atreve?
Qual o ombro, qual a arte,
Que o teu coração torceu?
Ao começar a bater,
mão terrível, pés de horror,
que martelo e que corrente?
O teu cérebro, em que forno?
Que bigorna e que tormento
te prenderam ao temor?
Quando as estrelas suas lanças
depuseram
e o céu com as suas lágrimas
molharam,
sorriu Ele perante a obra?
Ele, que fez o Cordeiro,
também a ti concebeu?
Tigre, tigre, fogo ardendo
na escuridão da floresta
que olhar eterno ou que mão
tão temível simetria em ti
ousou?
A
interrupção tinha sido fatal. O Tigre, mais do que a Serpente, tornou-se dono e
senhor da criação, e agora Sérgio, que está atento, socorre-se do Apocalipse de
São João, que no seu delírio visionário descreve a Besta e o seu número
sagrado, 666, ironizando pelo meio dos números da criação (os seis dias que
durou, descritos no Génesis) com uma canção popular inglesa, a dos ratinhos
cegos, que me dispenso de citar aqui. Porque a imagem com que o poeta nos deixa
é para levar a sério, são ratos, e não ratinhos, e são manifestação dos mortos
que os Mestres deixaram para trás (“ Já não sei se os mestres ouviram os
mortos....”) são ratos cegos “que procuram o tiro na cabeça”. Brutal esta
imagem com que termina o poema.
Não
hesita em gritar que não há salvação, talvez nunca tenha havido.
A
interrupção causada pelo drama que teve lugar no Génesis foi ferida sem cura. A
serpente apontou o caminho de um Conhecimento que estava proibido. E na
verdade, hoje como ontem, continua fora do nosso alcance.
Termino
com um último poema, que pertence já ao ciclo do Epitáfio:
Sou um interior sem vida -
uma pedra sofrida
num poço sem cobras encantadas.