Saturday, April 27, 2019

CARMES


Belíssima edição de um belíssimo conjunto que nos oferece a obra poética de Paulo da Costa Domingos, não digo ao longo da vida, é jovem ainda, mais terá para ir publicando até chegar a uma idade venerável.
Desde que o conheci, algures pelos anos oitenta, esteve sempre ligado ao livro, à edição e pelo meio sempre escrevendo.
Nestes Carmes, que evocam as Carmina Burana dos monges medievais, foliões do canto e da música acompanhando o bom vinho que os inspirava também, passa a terra, passa a vida vivida em contraponto com a vida desperdiçada. Nos poemas não se desperdiça nada, tudo é contado ao pormenor, seja a vivência mais realista, seja a emoção mais transfigurada. Não se pode esquecer que a poesia tem a sua própria gramática e que cabe ao leitor atento não cometer erros ao ler. 
Abro o livro e começo com a advertência do autor que nos diz que convém ao lidar com os poemas recuperados na escolha feita (outros poderão ter existido e ficar postos de lado), ter a noção de que aqui se parte não para uma ordem definitiva mas para uma "nova
desordem", que quebra, no entanto, falsas separações que pudessem ter existido. Tudo é Uno, na vivência poética, o antes como o depois, ou o agora, neste momento já de leitura. Convivem, neste percurso de vida o revoltado, o doente terminal, as várias figurações da Mulher, o que é afinal aos olhos de Paulo o Eterno Feminino?, o néscio, o vingativo, o amoroso, e até mesmo o cadáver. Também os Monges Vagantes, como o Paulo, vagante de agora, cantaram tudo, no passear da vida. Não é por acaso que o autor nos deixa entender que afinal é a cidade de Lisboa que ali está, figuração suprema de uma vida e da sua realidade como dizia Pessoa, nas suas "muitas cores", mais claras ou mais obscuras. Lisboa, amante do Tejo, o rio que a corteja e pode ser admirado no Cais eterno das Colunas, como "Voz do Mundo no lugar onde a Terra se refresca".
Paulo conclui a breve nota de introdução afirmando que conquistou, ao longo de 40 anos, "palmo a palmo" a sua vida intelectual. Por isso se revela tão rica de significação esta sua recolha. Matéria de estudo, para os mais novos, que julgam inovar no que já está inovado,  de há muito.
A obra vem dividida em 6 partes:
ORELHA SEM MESTRE
CICATRIZ
ABSIDE
DE REGRESSO AO CAMPO DE HONRA
A ESCRITA

A VAU
 que seguem o seu caminho de descrição ou emoção mais explosiva, numa linguagem sempre, ou quase, experimental, herdeira do grupo dos OULIPOU, dos anos 60 em França, por sua vez marcados pela liberdade da definição surrealista de um Breton, de um Michaux, e entre nós por Cesariny, Cruzeiro Seixas, Ramos Rosa (este na busca sempre transcendental e impossível de marcas heideggerianas do pensar criador) e, continuando, o inultrapassável Herberto Helder, cuja morte recente agora lamentamos. Mas, como se diz, ficou a Obra. Também ficará, do mesmo modo, a Obra de Paulo da Costa Domingos. A sua modernidade é chocante de tão genuína e tão actual e pergunto por onde se escondia ele, que não tem nome regularmente citado na apreciação de críticos e comentadores que estão em todo o lado? Ele não se escondia, lutava, como disse, "palmo a palmo" para fazer vingar o seu território. E aqui o temos: o seu território é o da palavra, escavada, como em Paul Celan, mas sobretudo liberta, em vida escancarada.
Começa, como um Herberto poderia ter começado, em ORELHA SEM MESTRE:

era um homem com um jaguar de cobalto no sangue
uma melodia um homem: lia o seu livro, carmes de cobalto
em fuga / sem fala
era um suicídio roxo / aliança última: anel
falava-se muito de meia dezena de cifras perturbadoras da ordem:
liberdade ou morte - velho preceito de temperatura lisérgica
jaguar vegetal amianto na cabeça, entre as órbitas
pararia - por falta de combustível?aquela máquina propulsora de selva
num suicídio de primeira página?
de avaria?
dor feminina de metrónomo, ovos plenos, primeira grandeza

outro homem vinha à rua à rede acender o cigarro e um disco obsessivo, ler talvez
o seu livro
no império dos reclamos inúteis

Um homem, o sangue, o canto e o livro - eis as linhas de força do momento. Ténue, a alusão feminina, a não ser para sublinhar o tempo (o metrónomo). Contudo o tempo é vital, mesmo para a leitura do livro, ou seja, para entre as palavras erguer uma catedral.
Não se estranhe o contraste entra uma escrita cuidadosa e até rebuscada, na gramática, na semântica, e a mão livre na utilização de imagens, que se fundem, se separam, se atropelam, num processo intuitivo de associação livre que Freud aprovaria, ou o velho Breton, e deixa entrever a espaços o fio condutor,  a linha de alma inteira ou quebrada. Cabe ao leitor preencher esses espaços, ir seguindo esse fio, que Paulo ata, mas nem sempre desata, para nós. Temos de possuir a sua imensa cultura, entender as referências, que são muitas, da pintura à música pop (um Turner, um Bob Dylan, para dar ao acaso estes exemplos, no meio de outros, passando até pela alquimia chinesa de um trigrama) e entender acima de tudo a vida quotidiana, também de amor, ruas escuras, drogas e putas numa Lisboa eterna.
Pessoa foi múltiplo? Paulo em si mesmo é único.