Mariana Viana e o Físico Prodigioso de Jorge de Sena
Pego no que chamo o LIVRO DE
OURO.
É preciso rasgar o papel (que
pena...) e abrir uma caixa, desdobrar um livro que é tanto para ver como para
ler, pois estamos perante uma original concepção que envolve texto e
ilustração, fazendo deste objecto algo surpreendente um livro de Arte, um livro
de Artista, no pleno sentido da palavra.
Um ilustrador não é alguém que se limita a
reproduzir com desenhos, melhor ou pior, o texto que lhe foi dado a ler.
É alguém que o interpreta
dando-nos a ver uma outra realidade, filtrada não apenas pelo sentido da
narrativa, mas sobretudo pelo seu próprio imaginário, que se abre e nos abre a
outras sugestões, novas e inovadoras imagens que a leitura normal, só por si, não
permitiria.
É certo que também a leitura
não deve, nem pode ser, de sentido único. Porque a escrita não o foi. O
imaginário do escritor, e em especial referindo-me a esta obra de Jorge de
Sena, é aberto, é variado e múltiplo e exige um olhar igualmente aberto e
variado. Não terá sido fácil trabalhar sobre uma narrativa tão apoiada em tanta
erudição, prosa arcaizante, ambiente medieval, personagens que são
intermediadas pela lírica de Amor, por trovas da tradição popular, (sublinhando
Sena que são recuperações, mas de sua autoria) e ainda por referências
implícitas que nos é impossível ignorar, ao Fausto
de um Goethe que Jorge de Sena bem conhecia, e do qual recupera o grande tema
central da paixão e entrega ao amor e à vida, embora o enquadre em ambiente
cavalheiresco de aventuras que não serão já lidas no nosso tempo, que perdeu
memória e cultura.
E estará na hora de reler...
O leitor segue aquilo que o
autor propõe. Mas não se diz que uma imagem vale mais que mil palavras? E assim
é. A imagem vai directa à emoção que provoca, de repulsa ou maravilhamento, faz
apelo a outras estruturas do nosso cérebro, Jung falaria de sub- ou de in-consciente, individual ou colectivo.
Explicando melhor, sem querer
impôr a minha opinião, neste caso da obra de Jorge de Sena, ilustrada por
Mariana Viana:
O texto é do domínio da
razão, da consciência racionalizante daquele que escreve, enquanto escreve. A
pintura (neste caso a que agora me refiro) ilustra o sentido emocional da
reacção que o texto provoca, e eleva-o para um outro patamar, de um Belo
não-racional, mas apesar disso fiel à
matéria ali posta por escrito. E recupera mitos e arquétipos que traz à luz do
dia, arrancando-os da sombra em que estavam enterrados.
Lidamos, sem dar por isso, se
calhar, com duas esferas que se completam –mesmo quando aparentemente se
antagonizam: um texto realista, com ilustrações abstractas, modernistas, por
exemplo. Ou desenhos realistas para um texto surrealista. Nada é impossível, a
questão é que se encontre o fio desta
meada que nos conduz de um a outro momento da inspiração de um e outro artista.
A imaginação criadora do escritor é livre, mas livre é igualmente a imaginação
do ilustrador.
A palavra abre a imagem, e a
imagem devolve-nos à palavra. A palavra conduz-nos pelo mundo das ideias, a
imagem conduz-nos por outras formas que mais do que ideias (racionais) serão
puras emoções e quase não precisam de sentido, apenas de empatia, o Belo não
pede respostas, mas adesão emocional.
Jorge de Sena não facilita a
vida ao seu ilustrador. A sua cultura, a sua erudição, enorme, aprisiona, em
vez de libertar.
E a mão de quem pinta, nestas páginas de O Físico Prodigioso, serviu-se
igualmente da sua cultura e do seu imaginário, sem peias, variando de esboços
só aparentemente simplificados, no claro escuro que evoca um Munch e as suas
figuras esquálidas, até à côr forte, de pincelada intensa, evocando Kokoschka,
de um expressionismo que se afirmou quase violento para a sensualidade pedida.
Deparamos com um par
Andrógino que não tem a riqueza esplendorosa do Beijo de Klimt (mas revela o seu conhecimento), nem tem a ternura
do Casal Vieria-Arpad (mas revela
igualmente o seu conhecimento). E o que demonstra é que no pintor, o
Ilustrador, neste caso, tanto como no Escritor o que temos presente é a
Cultura: será preciso aludir ao mito do Andrógino, de Platão?
Voltemos às Ilustrações, ao
conjunto de pinturas escolhidas:
São pinturas que sublinham,
pelo excesso, por vezes com um toque
surrealista (sim o imaginário à solta, como desejaria Breton) a abordagem feita
por Sena de múltiplos estilos, prosa, canções (uma erudição não contida), de um
realismo arcaizante e belo, ao mesmo tempo. Surpreende, não aborrece. E ajuda a
ampliar a narrativa.
Jorge de Sena escreve, na
Nota Introdutória ao livro, de que retiro extractos:
“Este O Físico Prodigioso teve a sua primeira edição, quando foi incluído
em Novas Andanças do Demónio,
colectânea de contos meus publicada em 1966. Descoberto como “conto fantástico”
poe E.M.de Melo e Castro, foi incluído na reedição, por ele preparada, da Antologia do Conto Fantástico Português,
de 1974. Aquele físico, (ou médico, ou mágico, no sentido medieval e ainda
ulterior ) que eu criei, como símbolo da liberdade e do amor, quando escrevi
dele em 1964, no Brasil, retoma enfim a sua independência, e sai sozinho pelos
caminhos do mundo, tal como aprece na narrativa que é sua. Ocorre-me que lhe
cumpre andar sozinho nas mãos dos leitores, como sucedeu com o ilustre Malhadinhas de Aquilio Ribeiro, saído
também das páginas do livro de contos em que primeiro aparecera”.
O autor compraz-se na
independência que o seu conto adquiriu, em nova edição, porque este físico é,
como ele diz, “ meu muito bem-amado filho entre outros, e que sempre tive por
como que um ‘alter ego’ ”.
Segue defendendo, ao
contrário da elogiosa definição de Melo e Castro de “modelo” para o seu conto,
abrindo o conceito a uma “fusão de invenção própria com o mais profundo da
natureza humana, parte do que é o inconsciente colectivo e comum a várias
civilizações, muito do que é ‘popular’, ou o foi e ainda significa” (p.9). Refere depois uma das suas fontes, o Orto do Esposo, texto anónimo do século XV que, como erudito honesto que é,
nunca deixaria de citar. Mas fá-lo para desde logo para o demonizar e fazer divergir do original, actualizando-o, a seu modo,
e tornando-o universal e arquetípico. Alude ao que já verificámos, mas explica
melhor: “experiemntalismo narrativo, jogando com o espaço, o tempo, repetição
variada do texto, etc.
é uma das bases essenciais
desta novela, como o é a Idade Média ou algo de semelhante, fantástica, em que
a situei. Esta “época” permitia-me uma liberdade de imaginação em que o
fantástico, com todas as implicações eróticas e revolucionárias como eu sentia
ferver em mim na pessoa do físico,
podia ser usado para tudo” (p-11).
E assim temos a mão livre de
Mariana, que aborda a narrativa com as cores e projecções do seu imaginário,
livre também, mas igualmente impregnado de uma cultura visual que faz parte do
século XX , a sua primeira metade, em que imperam liberdade, por vezes
libertária, mas sempre de grande inovação criadora.
Yvette Centeno
2 comments:
Yvette tudo bem?
Eu amei seu rico trabalho de descrição sobre as obras que lê e pelo que pude perceber se aprofunda.
Obrigado.
Um grande abraço
Walter
Coisa linda.
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