Terei de acreditar nas sincronicidades a que Jung sempre deu atenção.
Eu andava a pensar em como mais uma vez a Escada de Jacob podia ser abordada, no seu simbolismo mais profundo.
Uma das minhas netas escreve o sonho que teve há dias, onde existe uma escada que ela não sobe, mas desce, para um poço escuro. Enquanto hesito em pegar na Bíblia para reler o episódio de Jacob com o Anjo, recebo o último livro de Ana Marques Gastão, O Olho e a Mão, em que junto com um seu amigo, poeta brasileiro, Sérgio Nazar David, parte de quadros que escolhem ( o olho) e em conjunto, numa espécie de cadavre-exquis contemporâneo, post-moderno, relativizando as regras de outrora, cada qual se lança na aventura do seu poema, cruzando e descruzando ideias e reacções à imagem escolhida, no Sopro que empurra o seu dizer ( a mão) e resulta por fim na leitura que a nós nos oferece, em gesto duplo. Lemos primeiro um, depois o outro, face aos quadros escolhidos, variados de época e de estilo.
Penso: o que puxa o nosso imaginário, nesta aventura a dois? A Imagem ali disposta na página? Ou o poema do primeiro que escreve e a que o segundo responde, interpela, ou desvia, sendo que logo a seguir o processo se inverte, e o primeiro é depois o segundo, e é ele que terá de co(responder), do mesmo modo. Um como que eco, pelo ritmo, ou talvez antes uma discreta e subtil, quase não declarada, (re)elaboração de arquétipo, de símbolo, ou de silêncio escavado na terra onde ficam os mortos, se evocados.
Não nos enganemos, trata-se de um livro de poesia, de poesia a que a imagem de um quadro serve de pretexto e suporte. Por ali circula o fascínio e a entrega da palavra ( por secretos meandros ) não ao quadro, à representação, mas à essência mesma da imagem poética, coisa bem diferente. O espaço que encerrou o quadro liberta-se e abre-se no tempo do dizer do poema, dos poemas, pois são dois os que falam entre si, são dois poetas, enquanto aparentam falar apenas em relação a este ou aquele pintor que os terá inspirado. Há uma pulsão que atravessa o diálogo de Ana e Sérgio com cada quadro mas os remete também para si mesmos, e de um para o outro, e essa espécie de diálogo, ou confronto, ou atracção mais secreta ( por que não dizê-lo? ) triálogo mais íntimo, é de repente o que o poema desvenda, e nos revela. Também as palavras se buscam, se entregam e se amam...também há nas palavras uma coniunctio que pode ser perfeita.
Não levarão a mal, os amigos leitores, que refira aqui uma leitura minha, recente: de Remo Roth, Holy Wedding, the Inclusion of Synchronicity and Hermetic Principles in the Worldview of the 21st Century (2017).
Na verdade este livro de poesia é em tudo já do século XXI, resulta de uma sincronicidade em que olhar e dizer e entre si comunicar serão novo modelo, para lá do puro experimental já conhecido, desde o Modernismo e as suas várias práticas. Para mim o modelo tem muito a ver com a leitura que Jung fazia do inconsciente colectivo, e das manifestações na arte, como nos sonhos, de forte mensagem mítica, arquetípica ou simbólica. O discurso destes dois poetas em conjunção tem de tudo isto a marca. Será preciso ler mais do que uma vez, sem dúvida. A fruição da palavra pode não revelar desde logo o dizer mais oculto.
Deixo aqui os poemas que foram inspirados por uma obra especial, de Anselm Kiefer, um dos meus preferidos, em que cada tela nos transporta para um imaginário carregado de uma cultura mística, interiorizada, nem sempre decifrável, como a luta de Jacob com o seu Anjo, numa escada que no quadro ascende de uma terra de cinzas tenebrosas a um céu interpelado pela voz de um poeta (Celan) mas que não se abre nunca, não se ilumina, esconde um deus que é silêncio. Na terra, enrolada num oito, aos pés da escada, vê-se uma cobra, Se houvesse ainda dúvidas sobre a dimensão mítica do quadro, a cobra na ausência do Anjo, a cobra rastejando no pó da terra negra (materia negra) ajudaria a dissipá-las. O título do quadro, de 1984, é SERAPHIM.
Eis os poemas, o primeiro, de longa meditação abrindo com uma epígrafe de Paul Celan, e inspirado ainda noutro poema, de Nazar David ("A Arte da Fuga") é o da Ana:
Havia terra neles, / e cavavam.
(Paul Celan).
Nem de dia era, nem de noite, e não se ouvindo,
tudo se ouvia. ávidos de escutar, não cavavam,
não cavavam e a terra salvavam do musgo que,
atolado, se guarda na boca de tanto morrer;
....
Sobe, sobe, a escada deste Serafim que tantos
arcanjos-anjos oculta, sobe-a como a criança que
se esgueira pelos ramos da árvore, pés descalços
e oh, não ser de nenhum, de ninguém, ser livre;
ouve, ouve, o clarinete na mesma pedra-poço,
a escada é eixo, coluna vertebral;
...
olha o teu dedo, já ele próprio anti-arte da fuga
e favo de mel, movimento sem sangue no chão.
sabes, sempre falta alguma coisa, nem homem
nem mulher, só Tu, impetuosamente Tu.
E o seguinte é o de Sérgio, que deu o título de Sob escombros, e de que deixo uns versos, não podendo nem para ele nem para a Ana transcrever a totalidade dos poemas. O leitor terá o cuidado de ler na íntegra o que apenas aponto:
...Somos esta raça intrépida -
que se diga sem orgulho e sem sofisma -
dos que contemplam o horror,
como Kiefer sobre a escada de argila
e palha, e escavam; ou, como Velázquez,
frente ao cavalete, em Las niñas,
dos que fixam o oculto, e igualmente
escavam. O oculto é o nada, ao redor
do qual o artista pinta (ou escreve).
De si mesmo, noutro poema, "O que ela engole" inspirado num quadro de Paula Rego, Snow White Swallows the Poisoned Apple, 1995, concluirá o poeta:
Eu- engulo a rosa do destino.
Ah, essa rosa do nada, rosa de ninguém de novo desfolhada em Paul Celan, hoje em dia uma quase bíblia de pintores e poetas, sete rosas mais tarde (tudo era já tarde quando ele começou a escrever...) e a rosa era o nada de ninguém.
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