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Gosto de rosas.
Sonho com tantas coisas, mas que me lembre nunca sonhei com
rosas, nem escrevi nada em que alguma rosa entrasse, a não ser nas célebres
gravuras alquímicas de que me ocupei outrora.
Mas leio, leio rosas, neste ou naquele autor, geralmente são
poetas, como Rilke ou Pessoa, e há sempre na imagem dessas rosas que leio uma
essência mais forte, que as sustenta, lhes confere uma parte desafiadora de
mistério.
Por um lado tão frágil ( ou será apenas na aparência? ) e por
outro tão forte, tão centrada em si mesma.
Rosas de Verão, rosas de Inverno, rosas de todo o tempo. Será
a sua forma redonda figuração do Tempo, como insinua Rilke?
Eram brancas, as rosas, antes da morte de Adónis, que as
tingiu com o seu sangue.
Daí o vermelho-morte, daí o vermelho-vida...
A rosa sacrificial.
As pétalas que envolvem, os espinhos que ferem e que matam.
Vejo na rua dois velhos, com os seus sacos de compras.
Vão devagar, ela à frente com dois sacos, parecem mais
pesados, ele atrás, só com um e arrastando os pés.
Levam o pão que ninguém lhes daria, como ninguém ajuda com os
sacos...
Está sol, e o calor é benção para aqueles ossos
ressequidos...
Vão de cabeça baixa, olhos fixos no passeio, por causa de
algum buraco. Cair seria terrível, não poderiam levantar-se!
Mas falava eu de rosas.
As vermelhas de Rilke, as fechadas em si mesmas, como se
fecham as vidas.
Num tratado de alquimia li: a rosa dá o mel às abelhas.
As abelhas seriam, no tratado, os alquimistas afanosos em
busca do mel da vida, do ouro que não fenece...
Passa a vida à nossa frente, como os velhos ali, que estou a
ver como passam, e sei que não é verdade. Não há ouro disponível.
Em que momento perdemos a razão, somos e seremos condenados?
Fernando Pessoa que, diante do rio, se interrogava sobre quem
era e o que era ser-se rio e correr, e estar, como ele ali estava, a ver imóvel
essa corrente de consciência e de vida, lera os poemas de Rilke.
E acreditara, se calhar, que a morte daquele poeta se devera
à picada de uma rosa, que lentamente o matara.
Na verdade morreu de lenta leucemia, mas lenda é lenda.
É assim que Ricardo Reis, heterónimo de Pessoa, aristocrata
no distanciamento de tudo o que fosse sentimento - amor ou vida - retoma o mito
de Adónis para evocar o tempo, no poema de Lídia:
As rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas volucres amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
o seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente
Que há noite antes e após
O pouco que duramos
Sabedoria e recusa.
Adiante, noutro poema, dirá, como bom alquimista:
"A obra cansa, o ouro não é nosso".
Podia ser o Mefisto de Goethe, autor que também leu, (como
parece, pela sua biblioteca, ter lido sempre muito, ter lido tudo).
Pessoa sofre do cansaço de um universo que não consegue ou
nem mesmo pretende decifrar, enquanto Rilke, em pura contemplação, se funde com
o mistério da rosa: eterna redonda, e mesmo quando se abre permanecendo
fechada, na sua perfeita circularidade de camadas e camadas de pétalas
perfeitas.
Renúncia, é o que vamos lendo na poesia de Pessoa/ Ricardo
Reis.
Excesso e abundância, nos poemas de Rilke:
Uma só rosa, é todas
as rosas (6)
Ou ainda:
Tenho uma tal consciência
do teu ser, rosa completa,
que o meu consentimento
te confunde
com o meu coração em festa.
(XI)
Não há festa no coração de Ricardo Reis, há bruma, há
nevoeiro, e o apelo a Caronte a quem deseja depressa entregar o custo da
passagem: nem se interessa tanto por chegar, apenas por esquecer, e para isso
lhe serve o rio da memória, o Lethes...
Que posso ver na rosa que outros não tenham visto?
A beleza já foi por demais cantada.
A Unidade? A Multiplicidade, desdobramento de pétalas e
pétalas?
O Efémero que o desfolhar logo prenuncia, como a vida, que
passa tão depressa?
No coração da rosa, o olho do furacão.
O ninho em que se formam estrelas.
É de estrelas, não de rosas, que devemos falar...
Do rodopio que ilude, que tudo arrasta consigo, numa torrente
de negro, com nome por designar.
Dizer apenas rosa não adianta nada:
a rose is a rose is a rose
is a rose...
Mas penso em Dante, na Divina
Comédia; que Rilke e Pessoa leram, e que eu deveria ler (reler) no Canto
XXXII, onde no centro está a rosa, que é a Virgem, e se fundem, no brilho, o
sol e as outras tantas estrelas, como pétalas, derramando sobre a Amada o seu
brilho perpétuo.
Não duvido que Rilke tenha lido Dante, e através do seu
percurso mais íntimo e secreto, caminhado para a doutrina que ali se esconde,
entre as referências clássicas e as bíblicas, uma nova doutrina do Amor.
VITA NOVA foi a obra tardiamente
descoberta no século XIX, de tal modo grande fora o impacto da Divina Comédia.
Como sublinha o tradutor francês Louis-Paul Guigues (ed.
Gallimard, 1974) é com esta obra que a "introspecção surge na
poesia": estamos a falar do ano em que Dante a começa, em finais do século
XIII, uma época de grande misticismo, na Europa do norte (recordo Hildegarda de
Bingen) como do sul, (a mística sufi de Ibn Arabi e outros). Mas é também a
época das grandes questões e questionamentos teologais e tentativas de
racionalização das respostas a dar. Dante não podia viver à margem de tais
questões, e também ele procurou sentir e dizer, viver e explicar.
Vita Nova não pode apenas
significar vida nova, sem mais, no sentido de alguma mudança de vida que tenha
acontecido ou venha a ser desejada, esperando que aconteça.
Dante não usa o termo vita , mas etate : idade. Como leremos em Joaquim de
Flora e seus seguidores, a Idade do Espírito Santo como tempo novo (no Liber Figurarum).
Na Vida Nova de Dante encontramos, no capítulo
XXIII, a seguinte referência:
"dama compassiva e de idade nova".
Poderemos ler jovem? jovem de idade?
Beatriz no Canto XXX do Purgatório exclama, referindo--se ao
poeta:
"Eis o que ele era na sua juventude".
Como quem já anuncia as grandes mudanças que hão-de vir e só
o amor consente.
Primeiro pelo sofrimento, com a morte de Beatriz:
"uma inteligência nova que o Amor
chorando lhe concede" (soneto XXV)
Percebe-se que, com Beatriz, e seu amor por ela, uma
tranformação - uma Vida Nova terá em breve lugar. Beatriz virá do céu à terra
revelar o milagre.
Dante escreve os primeiros sonetos cerca de1283, usando os
mesmos modelos da poesia cortês da época. Seguindo esses modelos, que não
inova, pois já na poesia Provençal a nobreza do amor colocava os amados acima
da nobreza de título.
Dante sabe dissertar sobre o amor, como escreve o seu
tradutor francês (p.11).
Por volta de 1170, André le Chapelain, autor de DE amore era lido em Florença e apreciado pelo
seu "doce estilo". Doce estilo pelo sentimentalismo comovido,
abundante em lágrimas e suspiros, que levará o coração do amante a
identificar-se plenamente com a amada. É este o estilo que Dante transformará
em dolce stil nuovo.
Mas o ambiente em que a sua escrita decorre é o conhecido
ambiente "cortês" e "espiritual" da época.
Há um entrecruzar de referências que nos conduzem por via do amor de Beatriz, aqui e na Divina Comédia, a outro
conjunto de interrogações.
Beatriz é descrita com algo de NOVO, um milagre da Santa
Trindade, uma revelação.Temos, no capítulo XII, as falas do AMOR:
É um capítulo carregado de solenidade: Beatriz recusou-lhe a
salvação e Dante retira-se para um quarto e tem a visão de um jovem, de vestes
muito brancas, que olha para ele, o chama e lhe sorri, dizendo: " Meu
filho, chegou a hora de abandonar as nossas ficções".
Quem é este jovem?
Dante julga que é o Amor, que muda muitas vezes de aparência.
Mas o jovem desata a chorar e declara:
"Eu sou como o centro do círculo a que se dirigem,
equidistantes, todos os pontos da circunferência, mas tu não és assim".
Dante, perturbado, quer perceber melhor.
Mas recebe, como resposta: "não peças mais do que te
pode ser útil".
Estranha resposta, que deixa a interrogação do que
fazer:evitar excessos? Respeitar a distância?
Seguir-se-á uma
longa reflexão, sobre o amor e a relação do que ama com o objecto do amor:
terreal, celestial? Operando como, nessa viagem mística, guiado por Beatriz,
tão enorme mudança?
A ponderação da Geometria, de uma possivel Quadratura do
Círculo, não terá deixado o poeta indiferente, pois há uma Geometria da Alma,
no espaço cósmico que culminará no Paraíso, em que a doutrina do Centro, as
rosas e a Rosa Suprema no coração do centro, adquirem, por muito que não se
queira, simbolismo especial. São conjecturas, quem sabe, mas têm algum sentido.
Um ponto que é o centro cuja luz irradia com tanta
intensidade, - era revelação suprema. Do Templarismo da época? O símbolo do
centro, do coração como era lido enquanto fonte de vida e luz suprema, era um
dos símbolos dos Templários.
Nas Ordens iniciáticas, como as do Santo-Graal, fazia-se
coincidir o punctum mundi com o coração de Cristo e daí, como refere Louis-Paul Guigues
(p.19) a veneração posterior do Sagrado-Coração de Jesus. Nas palavras de
Cristo: "O meu Pai e Eu somos Um".
Voltando à situação de Dante, perante o Jovem de luz: ele
diz-lhe que é o ponto centro do mundo, mas Dante ainda não é nada e está longe
de se ter unido a ele.
Não falemos mais, a partir daqui, de amor cortês, mas sim e
apenas de via mística para uma União com o Divino de que Beatriz será a
mediadora.
A dado momento Dante faz a identificação de Beatriz, luz de
vida, com Cristo, luz de renovação.
Beatriz já dissera que estava no coração da GRANDE ROSA,
quando lhe lembra que ele andava ainda perdido nos assuntos do mundo...
O que aqui se faz é um apelo à vida contemplativa, retiro que
se abre ao desejo de união mística com um Sobrenatural que os afazeres (ainda
que de paixão) na vida normal não permitiriam. Fechando de novo com uma citação
de Louis-Paul, Dante ascende à mutação de uma VITA
NOVA para uma Vista nova, no deslumbramento
da rosa, do centro, do coração do Paraíso que se lhe abre e pode finalmente
contemplar.
II
Em Le Roman de la Rose encontramos asúmula
das práticas místicas e simbólicas do amor cortês, na França do século XIII.
Guillaume de Lorris (c.1230) e Jean de Meung (c.1275) são os
autores, descrevendo em sucessivas alegorias o percurso aventuroso de um
cavaleiro que é conduzido em sonhos a um Jardim paradisíaco e aí se deixa
enebriar pelo perfume dos roseirais e de uma rosa em especial. Guillaume
começa, escrevendo entre 1225 e 1230, e Jean continua e termina, entre 1269 e
1278. A este último se deve a amplificação do sentido das alegorias a uma
reflexão mais profunda sobre a Natureza e a Condição Humana (aperfeiçoamento
constante para atingir uma Plenitude de que a Rosa vermelha será o arquétipo
central).
Por ela, por não desistir de colher esse precioso botão,
será o coração do herói perfurado pelas flechas que Amor, ciumento, lhe crava
no coração, até que obtém da sua parte uma jura de fidelidade eterna.
Considerado a par da Divina Comédia de
Dante, numa Paris que no século seguinte já é centro de doutrinas e disputas
teologoais, filosóficas, científicas e literárias - chama-se a Paris rosa
mundi - rosa do mundo, com tudo o que isso implica de beleza, de certeza,
de paixão, o Romance da Rosa adquire um estatuto
que ainda no século XVII persiste entre os estudiosos, apesar de Boileau e
Descartes introduzirem um pensamento novo, no tocante à filosofia e à escrita (ce
que l'on conçoit bien s'ennonce clairement, regra que colide frontalmente
com o exercício prazenteiro de uma narrativa mítica e simbólica, por vezes
obscura, como na meia-luz dos sonhos).
Lorris e Meung antecipam Freud e Jung, ou alguns dos
românticos alemães, ao valorizar a mensagem contida nos sonhos, de que dizem
que, se não é logo entendida, mais tarde se verifica quão verdadeira se torna.
Muito do simbolismo do Romance pode ser
colocado a par dos mistérios antigos, como o do Burro de
Ouro, que Marie-Louise von Franz tão bem nos descreveu.
Nesta obra de Apuleio, do século II da era cristã,
acompanhamos as vicissitudes de um herói, Lucius, que uma vez iniciado nos
ritos de Isis será redimido da sua forma de Burro ( com que foi castigado por
tentar práticas de magia). É num sonho que a rainha dos céus (Isis) lhe aparece
e lhe diz que terá de comer uma coroa de rosas que no dia seguinte, num
determinado cortejo ritual, lhe será oferecida. Assim acontece, e ei-lo feito
sacerdote de Isis e Osiris, para sua redenção.
Temos ainda de nos lembrar que os século XIV e XV são na
Europa os expoentes das Novelas de Cavalaria, e que as normas do
"Serviço" à Dama são as mesmas, ou quase sempre, as que se foram
buscar ao Romance da Rosa e aos seus códigos de virtude e
moral.
Temos em Dante o exemplo de Beatriz dizendo ao amado que se
afaste, pois não está ainda devidamente "purificado". Só mesmo diante
da Rosa Centro do mundo e termo da viagem, poderão unir-se. Não um ao outro,
mas ambos a ela, na Rosa que contemplam.
Recordo aqui que já existiam na França do século XII, como
até em Portugal, nos cancioneiros primitivos, obras como Le Coeur Mangé,
dos séc. XII e XIII, contendo narrativas de tom erótico e cortêz, em que o
olhar duro e directo sobre os costumes (bons e maus) da sociedade são
apresentados em textos de lendas, fantasias, mistérios e monstruosidades que
projectam, como diz Claude Gaignebet no seu prefácio (ver edição em francês
moderno por Danielle Régnier-Bohler, Stock+plus,1979), o imaginário sexual e
amoroso do tempo.
Mas tal não impediu que outros autores se esmerassem na
sublimação dos seus desejos e emoções.
Temos pois a Rosa, temos o Coração, - a Alma, na verdade,
termo que ainda não utilizei, a Psique e as suas pulsões mais fundas: o desejo
de ser, o desejo de ser-para-o-outro (para poder ser para si mesmo) como
justificação plena e matriz da existência.
Quando li pela primeira vez o Romance da Rosa,
há muitos anos, achei-o confuso e difícil de entender. Nem me lembro se cheguei
ou não fim, o que me teria feito perder um dos momentos mais significativos, no
tocante ao conhecimento dos processos e dos símbolos alquímicos, pelos quais eu
já me interessava.
Na verdade este Romance é uma obra complexa, estruturada em
vários níveis e tem de ser lida de um modo que os separe e distinga, para que
se entendam em cada momento.
A lógica da narração não é a da coerência, da evidência, nos
processos usados. A lógica é a do sonho, que funciona por acumulação inesperada
de situações, conforme cada qual vai surgindo.Uma vez aceite este princípio,
poderemos, na nossa leitura, entender melhor e desfiar os acontecimentos. Num
primeiro nível temos uma espécie de iniciação(daí que o autor se demore na
existência e descrição da importância do seu sonho); a revelação que o sonho
iniciático permite é da descoberta de um jardim paradisíaco, onde flores,
pássaros, animais vários recriam um ambiente de quase lirismo pastoril. A
diferença, em relação ao que poderia ser mera descrição, como tantas, é que o
autor entretece, pelo meio, um conjunto de alegorias, de vícios e virtudes, com
os nomes adequados a cada uma dessas personagens que se tornam intervenientes e
construtoras da trama da narrativa. Desse modo define um código de
comportamento que é o do cavaleiro cortês.
E segue a aventura, e seguem as peripécias, sem que ele perca
de vista o supremo objecto do seu amor e da sua Quête, a rosa
perfeita vislumbrada no jardim.
Temos pois, num primeiro nível de leitura, a importância do
(desregramento) da lógica do sonho, imperativa a seu modo e profética na sua
consequência, imediata ou tardia.
Temos, de seguida, a apresentação, pela via alegórica das
normas e procedimentos de códigos de conduta de uma aristocracia cavalheiresca.
E sempre a perseguição dessa rosa imutável e cada vez mais
distante. No capítulo XIV, já da autoria de Jean de Meung, fala-se então da
alquimia, como arte da transmutação.
Descreve-se a Fénix, a ave que renasce das próprias cinzas,
como exemplo da perenidade das espécies, de que a NATUREZA se ocupa, na su
forja da Vida; referem-se o enxofre e o mercúrio - para o trabalho dos metais
(a sua transmutação); no capítulo XV transita-se para a visão do cosmos, que é,
como a de Dante, o cosmos ptolomaico, mas com outra inovação trazida ao
pensamento: a do livre-arbítrio, que na astrologia podia ser contrariado, contrariando
a doutrina cristã.
A questão ou os vários questionamentos de doutrinas
teológicas ou filosóficas abundam, fornecendo mais um último nível de leitura e
reflexão.
É sempre, nestes últimos capítulos, a Natureza que expõe o
seu pensamento, introduz lendas e mitos, considerações sobre os diferentes
estratos sociais e suas obrigações (como no capítulo XVII) -distinguindo
nobreza de nascimento e nobreza de coração, ou no cap. XVIII a descrição da
Fonte de Vida (sabemos que é, na Arte da alquimia, a fonte do Saber Supremo).
A caminho do sucesso final, Vénus reaparece, o Amor, a chama
da Natureza, que a alimenta e perpetua, permitirá que o Amante lutador e
fidelíssimo colha então a sua Rosa. Nasce o dia e o narrador desperta do seu
sonho.
Veja-se: o Romance começa com a narrativa
de um sonho, por Guillaume de Lorris, aos seus vinte anos, e que ele se
"obriga" a contar, por imposição do AMOR:
"c'est Amour qui m'en prie et me l'ordonne. Et
si quelqu'un me demande comment je veux que ce récit soit intitulé, je répondrai
que c'est le Roman de la Rose qui renferme tout l'Art d'amour".
E o mesmo Romance termina pela mão de Jean
de Meung quando, colhida a rosa da maturidade que se adquiriu (j'eus la rose
vermeille) o dia nasce e o herói acorda, “Iluminado”.
III
A rosa foi a flôr mais
escolhida para símbolo de todas as deusas do Amor, desde a Isis egípcia à
Afrodite grega ou à Vénus romana,
chegando à Virgem Maria, que o cristianismo celebra.
Mesmo na Índia encontramos um
mandala em forma de rosácea cósmica, simbolizando a perfeição do cosmos, sua
origem primordial e divina.
A deusa Lakshmi, da tradição
hindú, deusa do amor, nasceu de uma rosa.
A rosa é símbolo do amor,
pois vemos que as deusas, como Afrodite, ou Vénus, nascem da espuma do mar, as
águas da criação primordial, que tomam nesse momento a forma de uma rosa branca formada pela espuma que se
espalha sobre as areias.
Nos cultos antigos, é no mês
de Maio que se colocam rosas, brancas ou vermelhas, nos túmulos que se visitam.
E na tradição cristã, os
primeiros rosários, dedicados à Virgem Maria, eram feitos com pétalas de rosas.
A palavra rosarium, latina, significa roseiral.
Podemos encontrar, ao longo
dos séculos, todo um conjunto de obras, na arte, na literatura, na mística e na
alquimia em que a imagem da rosa adquire significado especial, simbólico,
transcendente, indicando pureza, perfeição, acabamento espiritual.
Seriam inúmeros os exemplos a
escolher, desde os tempos mais antigos até aos dias de hoje.
Mas este será o momento de
falar de Rilke, das suas rosas, da perfeição que na verdade será causa da sua
morte, que ele tanto desejou sublimada e diferente (como a morte do Camareiro
Brigge, nos célebres Cadernos de Malte
Laurids Brigge,publicados em 1912).
Rainer-Maria Rilke é descrito
pelos seus biógrafos como sendo alguém de extrema sensibilidade, a poesia
sempre à flôr da pele, uma delicadeza genuína que se revelava em cada gesto, em
cada pormenor do seu relacionamento com os outros. Dão um exemplo que o define
como sendo também generoso e atento a quem menos se espera ( e na verdade evoca
a Paris dos pobres, dos despojados de tudo e que ele também descreve nos Cadernos, como se nesta espécie de
diário da alma já a substância do que viria a ser a sua vida se tivesse fixado
para sempre).
Está o poeta, acompanhado por
uma amiga, a passear nos jardins do Luxemburgo e vê uma mendiga já habitual
naquele espaço, de quem se aproxima, curva-se diante dela, respeitosamente e
coloca no seu colo uma rosa que trazia na mão. A cena é descrita pela amiga
numa carta a Edmond Rostand: " a velha ergueu para Rainer Maria as
verónicas dos seus olhos (verónicas tão azuis e frescas nas pálpebras vermelhas
e remelosas) num gesto tão rápido e tão adequado a tudo, agarrou na mão de
Rilke, beijou-a e afastou-se em passos miúdos e gastos e não mendigou mais
nesse dia". Outro amigo refere, do seu tempo na Suiça, a sua
"excessiva, arcaica, boa educação...perante a louca da aldeia, a mulher
que reza o terço, a criança que leva o gado a beber, tudo deliciosamente
educado e distante, simples e misterioso..."As descrições são, desde o
traçado da sua juventude até à estadia de apropriação de uma outra realidade em
Paris todas do mesmo género. Ele era, diz Gide, "para com tudo e todos, de
uma perfeita naturalidade", não havia afectação, neste seu comportamento,
algo desfasado, e Paul Valéry, tão diferente dele, reconhece também: " os
seus olhos, tão belos, viam o que eu não conseguia ver".
Por outras palavras, ele já
era, naquela altura, o "poeta do invisível".
Y.K.Centeno
Lisboa, 2017
Aos leitores: o livro com as traduções está já à venda no createspace da amazon.
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