Monday, February 27, 2017

Ícaros

27 de Fevereiro
Voltou o frio.
Ontem preguicei, mas hoje farei algo de mais útil.
Aqui, no blog de literatura, para escrever sobre os Ícaros das traduções do João Rodrigues, na sua preciosa edição-bibelot, de A lebre que lê...
Começo pelo poema juvenil  de Goethe, Ganymed, porque nele há uma diferença: a morte é imersão na luz, não é queda, é ascensão, respondendo a um apelo do deus apaixonado. Mas essa é uma paixão que queima, que absorve e mata, como acontece nos poemas, na alma dos poetas...
Ganymed é e não é o jovem Goethe, surgirá depois transformado no seu Fausto II de velhice amadurecida, sob a forma de um outro mito mais elaborado, o de Ícaro por sua vez também ele elaborado sob a forma de Euphorion, filho de Helena, a majestosa rainha cuja beleza seduziu Fausto,  que de novo por ela ( a Beleza suprema)  cedeu a Mefistófeles, como já fizera antes na paixão infeliz por Margarida. Paixões que queimam e a que poetas e deuses sucumbem. 
Temos de ler estas  figuras míticas com o que o simbolismo das asas pode representar.
Asas que voam permitem, pelo menos, o sonho de uma acção, uma intervenção, ainda que mal sucedida.
Mas a mera aspiração a ter asas representa um desejo de entrega, uma sublimação que funde, anula, não individualiza, o ser de Ganymed é o da explosão panteísta que recorda um outro jovem, Rimbaud, a dissolver-se, com a sua quilha rebentada, nas ondas de um mar profundo.
 Céu e mar: dois opostos que permitem, ou provocam, o grande desafio de Ser. 
Lendo então, depois deste desvio, o ciclo de traduções dos Ícaros, no livro de João Rodrigues, J'Écris ton Nom... o célebre verso de Éuard, J'écris Ton Nom, Liberté, datado do tempo da guerra. Está na hora de recuperar e gritar bem alto, estes versos.
No livro de traduções, parei especialmente nos Ícaros, e no quadro de Bruegel que os inspira.
No poema de Auden, escrito depois de contemplar  A queda de Ícaro, sobressai a indiferença perante o sofrimento alheio, seja de que natureza fôr, pois a vida rotineira segue o seu curso, calmamente:
....
No Ícaro de Bruegel, por exemplo: como tudo ignora
De forma repousada o desastre; o lavrador talvez
Tenha ouvido o barulho na água, o grito ao longe,
Mas para ele isso não era um acidente marcante; o sol
iluminava
Como devia as pernas brancas que desapareciam no verde
Da água, e a rica e delicada galé que deve ter visto
Qualquer coisa estranha, um rapaz caindo do céu,
Tinha um destino e continuou a navegar calmamente.
(p.58)

Da sabedoria dos "Velhos Mestres" retira Auden o que a experiência de vida a todos ensina: que a vida é maior do que todos eles, do que todos nós...
Do mesmo nos fala W. C. William, em Paisagem com a Queda de Ícaro, escrito também a partir de Bruegel:
Segundo Bruegel
quando Ícaro caiu
era Primavera

Um lavrador arava
o seu campo
e toda a paisagem

desse ano estava
desperta e entusiasmada 
consigo própria
....
um ruído na água que ninguém notou
e era Ícaro que se afogava
(p.59)
A natureza primaveril, a alegria dos campos, sobrepõe-se ao que não passa de mais um acidente, um incidente, que não chega a quebrar o labor da rotina...
Onde fica a atenção ao mito, a compaixão que poderia suscitar se o entendessemos melhor? Figurando a condição humana... Mas em Bruegel o pragmatismo do génio que é o seu não se compadece com desvios do olhar: a cada Estação sua tarefa, a cada passada um outro caminhar.
Já Michael Hamburger, em Linhas sobre o Ícaro de Bruegel (p.61)
amplia de modo quase barroco o que o seu olhar descortina no quadro: cada um na sua tarefa, é certo, lavrador lavrando, pescador pescando, mas a seguir exploram-se os sonhos do marinheiro, sonhos perdidos, nota-se a lentidão do pastor que não entende o bater das asas, até que Ícaro, nomeado como Anjo, falha a sua intenção para sempre. Permanece connosco a imagem do Anjo Derrotado: um Anjo que poderia ser o de Wim Wenders?
Um Anjo feito homem - como poderia ambicionar ser quase-deus?
O cientifismo do Ícaro de Ronald Botrall leva também à mesma conclusão: a presunção de ser parte da "mortal energia", "capturando o segredo da luz e do calor" ainda não é para todos...e Ícaro "não deixará traço nas águas que passam" (p.64).
As águas que passam, as águas do rio Lethes, que tudo apagam, não apagaram contudo o impulso de voar, que mesmo Bruegel fixou, deixando na quase sombra desse rasto a interrogação que permanece, ao contemplar mais uma vez o quadro. 
Bruegel fez-me pensar: em como o grande destaque é dado ao lavrar da terra, ao pastorear o rebanho, ao esperar pelo peixe que será a refeição...ao largo haverá uma queda, um afogamento inesperado, a ousadia desfeita de um Ousado...como quem diz, pouco importa ao mundo o que não é deste mundo.
Como nas gravuras de alguns alquimistas, em primeiro lugar está o labor (labora et invenies...).A humilde e rotineira devoção.
Terei,também eu, de rever este quadro, enigmático, na suspensão em que nos deixa.



Wednesday, February 01, 2017

A.C.Caeiro, II
(do meu diário)
30 de Janeiro
Acabei o post do livro do António Caeiro.
Deixei em aberto a última parte, em que a reflexão incide sobre "Férias" e naturalmente a infância.
Esta ideia de infância deu-me outra, que  ficará aqui.
Lembrei-me de Proust, de Rilke, da infância evocada nos seus livros, e do poema de Mignon, no Wilhelm Meister de Goethe (Os Anos de Aprendizagem).
Jung e Kérényi, ao escreverem sobre o Puer Eternus não é apenas sobre o deus Hermes que escrevem, é sobre a criança em nós, a nossa pulsão não domada ainda por uma Razão mais forte, um Senex sublimado. Essa pulsão, inconsciente, arquetípica, cria um sentimento de ânsia e de saudade por algo que nos está longe, foi quem sabe outrora vivido, ou conhecido e a que desejaríamos voltar. O país da infância é um desses lugares, mas sendo o tempo um rio que corre, inexorável, para um fim que nos aguarda, embora desconhecido, nada se pode fazer. Fica o apelo, o lamento, o canto da alma exposta a si mesma e aos outros.
É o que lemos no mais célebre dos poemas do ciclo de Mignon:

Conheces o país onde os limões florescem, 
E brilha na folhagem escura o ouro das laranjas,
Do céu azul sopra um vento suave,
A murta silenciosa e o altivo loureiro,
Conheces?
Partir! Partir,
O meu desejo é ir para lá contigo, meu Amado.

Conheces a casa?  Sobre colunas está pousado o tecto,
A sala brilha, refulge o aposento,
As estátuas de mármore fixam-me com o seu olhar :
Pobre criança, que fizeram contigo?
Conheces isso ?
Partir! Partir,
É o que desejo, contigo partir, meu Protector.

Conheces o monte, o carreiro entre as nuvens?
A mula procura o caminho na névoa;
Nas grutas vive a antiga raça dos dragões;
Despenham-se os rochedos e em torrente  as águas,
Conheces?
Partir ! Partir,
Seguir nosso caminho! Ó Pai, vamos embora!

Outros, além de Goethe, exprimiram uma mesma nostalgia. Penso em Baudelaire, penso em Rimbaud e Verlaine.
De Baudelaire o conhecido poema L'Invitation au Voyage (O Convite à Viagem) tem o mesmo apelo de ir viver para longe ( o além, o mais ali, no longe), onde seria possível viver juntos, felizes, num país que é feito à sua imagem: "Aí tudo é ordem e beleza / luxo,  calma, volúpia".
Objectos requintados, suaves perfumes, esplendôr oriental "tudo falaria / à alma em segredo / na doce língua natal".
A língua natal é-o também por ser a língua da infância - o tempo perdido, lá longe, sonhando que é possível voltar atrás para o recuperar. Poeta feliz é o que não cresceu, é o que não precisará de se lembrar. Mas há poetas felizes?
Fernando Pessoa evoca a sua ama, sonha com ser princesa, para poder ser feliz.
Mas falemos de Proust, na sua Busca do Tempo Perdido. Começa por contar como em criança se deitava muito cedo, era uma criança doente, que a mãe protegia do frio e da humidade do cair da noite: Pendant longtemps je me suis couché de bonheur.
Sofria de asma, e mesmo já em adulto continuou, quando se sentia pior, a ficar de cama, recostado, a ler ou a escrever este seu passado, de uma infância de mimo, de uma juventude e maturidade em que um certo isolamento, um olhar mais distanciado e quem sabe por isso mesmo mais curioso e atento, ajudaram a fazer dele o melhor cronista do seu tempo.
Pensando noutra infância, a de Rilke, nos Cadernos de Malte Laurids Brigge, a luz e os jardins felizes de um Proust transformam-se em corredores sombrios de mansão antiga, povoada de fantasmas, de vozes e lamentos, da morte poderosa do Camareiro Brigge , morte única, inenarrável, arrepiante, que punha os seus dogues a uivar. Uma infância que Rilke evoca, mas não é um Longe de que se tenha saudades.É antes um Aqui e Agora que mete medo, pois quem sabe se volta a repetir-se?
Tento às vezes recordar a minha infância: em Lisboa, em Tavira ou em Lagos, antes e depois da Argentina. Ficam-me poucas coisas. Já da adolescência e da juventude - grande parte em Paris - teria muito a dizer. Foi por lá que cresci, lendo autores que me eram totalmente novos, e inovadores, como Henri Michaux, amando a pintura que a Guenia expunha na sua Galeria de Arte, ou simplesmente passeando a pé nas ruas até parar numa livraria, ou numa esplanada onde tudo à volta chamava por mim. Foi desde aí que comecei a gostar de esplanadas. Sentar-me, ficar a perder-me do tempo, o que me parecia o mundo inteiro desfilando diante dos meus olhos.
Paris foi o meu "là-bas".
Se estava doente, como aconteceu por vezes, chegava a Paris e já ia curada.
Mas também eu, como Proust, durante muito tempo me deitava bem cedo: Buenos Aires, para onde fomos com o exílio do meu pai, em 1946, tinha um clima húmido, e eu sofria de anginas. Chegava do colégio e o ritual foi sempre o mesmo: lanche leve, porque ia jantar cedo, banho, cama, ler um pouco (lia uma enciclopédia infantil)jantar na cama e dormir. Às vezes, antes de adormecer, o meu pai contava-me a história da Princesa Magalona.
Rilke também fala da sua infância e da questão da leitura:
"Quando era criança, considerava a leitura como profissão que se deveria assumir, mais tarde, um dia, quando chegasse a hora das profissões. Para dizer a verdade não tinha ideia de quando isso aconteceria ao certo. Pensava que haveria uma época em que a vida se fecharia, de algum modo, e não chegaria a não ser de fora, como antes fora chegando a partir de dentro. Imaginava que então se tornaria inteligível, fácil de interpretar, e não deixando margem para equívocos (...). Este ilimitado tão singular da infância, este não-relativo, que nunca o olhar dominara, seria então pelo menos ultrapassado (...) Mas na verdade quanto mais se olhasse para fora mais se remexia em coisas dentro de nós: quem sabe de onde viriam! " E continua:
" É na época destas transformações que também situava a leitura.  Então os livros seriam tratados como amigos, haveria um tempo para lhes ser dedicado, um certo tempo que passaria de modo regular, dòcilmente, tão demorado quanto nos apetecesse consagrar-lhe".
Claro, observa ainda, haveria livros que prenderiam a atenção a ponto de se adiar um passeio, um encontro, a resposta a uma carta urgente.
Todos nos podemos reconhecer nesta experiência, de criança e até mesmo de adulto.
Rilke refere então que foi em Ulsgaard, nas férias que "entrou subitamente em leitura" - como quem entra numa outra fase da vida. Um salto na passagem da infância ao estado de adulto. Conclui que  "não temos o direito de abrir um livro se não nos comprometemos a ler todos. Em cada linha se abria o mundo".
Antes de se abrirem os livros o mundo estava intacto, afirmação que muito nos interpela: pois antes das leituras de descoberta, deste ou daquele autor, diante de nós oferecidos, o mundo não existia? Não existia para nós, mas onde estava, aberto e disponível, para todos os outros que já tinham lido? Era o fantasma de Abelone que acompanhava as leituras nocturnas de Rilke. A jovem que o desafiava, brincava e fazia troça, parecendo nunca o levar a sério.
Mas lá o ia levando pela leitura dentro...desenhando-lhe, sem que ele se apercebesse logo, a sua alma de sombra, a de uma Amada sonhada e logo a seguir perdida.
Mas este é Rilke.
Há tantas outras infâncias, repletas de memórias, chamamentos, hesitações, zangas, escapadelas, que só esse tempo permite. Eu já adolescente, em Tavira, ia fazer vela com um amigo. Barco pequeno, da Associação Naval, apontávamos à Barra para chegar à ilha. Era difícil, e o inevitável aconteceu: ficámos encalhados na lama da Armação do antigo arraial Ferreira Neto, onde o Rogério trabalhava na pesca do atum (era um amigo do meu pai, que ajudara a criar, porque também trabalhava às vezes para a minha avó Rosa na herdade do Roxo). Enfim: foi um escândalo na cidade: a neta da Dona Rosa com um amigo, naufragados, deixando o barco na Armação e voltando a pé pelo rio acima.
Pensando em leituras de Verão: foi nesse Verão, já sem licença para velejar, fosse com quem fosse, que li os primeiros romances de Agustina Bessa Luís: Os Incuráveis, e Ternos Guerreiros. A prosa intensa, densa, de que nunca mais me curei, até hoje. Li tudo.
Hoje leio de outros autores, outras praias.
Como é o caso do livro de António de Castro Caeiro, de que me ocupei de início, e me levou até aqui, na onda dos seus tempos recuperados, alguns, de modo minucioso, como os de Proust, ou deixando antever um lá longe que permaneceu inatingível, apesar de evocado. Eis um momento das suas praias:
"A praia ao entardecer tem a luz mortiça. Na infância, as tardes de praia são estranhas. Na juventude, é a hora de normal de ir dar um mergulho à praia depois de pequenos-almoços.
Sagres, de véspera, continua ao sol escaldante.
Há tempo para se perder. Perder-se competentemente. Corpos e corpos e corpos sem nunca nos determos no tempo daquela noite com vésperas de corpos e antecipação de corpos. E romances sem romance.
Ao longe, ficamos sempre ao longe. É para mais tarde.
(...) Mas adora-se o regresso, quando se está de novo a sós consigo."
Na solidão do regresso, da recuperação de rotinas - as rotinas são afinal mais repousantes do que pareciam, antes das férias - o autor recupera-se, reencontra-se, redefine-se de novo, e apesar de tudo renovado: sente que afinal é ele mesmo, em si mesmo, apesar de dizer, como Rilke, " tudo acontece no espaço exterior".
Foi o mundo que se abriu, nesse tempo de férias, e no regresso delas: "Começo a ver do lado de lá das lentes e não atrás delas. Aos ouvidos. ouço através das paredes. No lado de lá do pé. Só toco na areia com a sola do pé e digo que a areia (toda daquela praia) está a ferver. No lado de fora da pele. (...) Nem de olhos fechados há um interior. Fecho os olhos. Vejo montanhas cobertas de neve, o fundo do mar em mergulho. Acompanho-me no colégio, menino. Eu, adulto, a ver-me. Ressuscito mortos.Visito quem vive à distância.Todo o interior ficção é também sempre fora.(...) Durmo espaços vastos e estreitos, com cima e baixo, direita e esquerda, longe e perto, fundo e forma. Entre mim de olhos abertos e o que eu "vejo" não está a realidade da percepção". 
Fomos deslizando por várias esferas, de evocação e Iluminação, ao modo de Rimbaud, culminado na contraposição de opostos: vasto e estreito, cima e baixo, longe e perto, fundo e forma. Antecedidos por uma imagem de fusão, um dos arquétipos mais interessantes,  de que Musil também se serviu e com ele Hesse, ao afirmarem que a montanha e o mar são as grandes provações da alma.
(Já Goethe nos falara também de montes, de mares, de lagos, nas suas poesias).
Do olhar exterior, na sua quase vidência, levou-nos o autor  à sublimação da Alma contemplada em união. Dir-se-á, não passa de um momento. Pois talvez não, mas esses são os momentos que nos interpelam, e ao mundo e aos outros. Não escreveu Fernando Pessoa, o nosso eterno Mentor, no poema Além-Deus I /Abismo:


" Olho o Tejo , e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando -
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco -
Mesmo o eu estar a pensar.
Tudo - eu e o mundo em redor -
Fica mais que exterior.

....

É um poema longo, que continua.
Mas por alguma razão, Eduardo Lourenço, num dos seus primeiros Seminários sobre Fernando Pessoa, que nos deu na Universidade Nova, em 1976, gostava de ficar a reler e a fazer-nos pensar sobre a interpelação dos versos iniciais, em que o poeta se interroga sobre o significado de estar ali a ver correr um rio: o que é ser rio, e correr; e o que é ele estar ali a vê-lo. No Tempo, que corre, e na imagem do rio que ajuda a fixar a temporalidade do ser humano que o contempla.
Pode não parecer, mas desde o início que a obra de António Castro Caeiro é para uma interrogação da temporalidade no Tempo que nos deseja levar. No todo da sua escrita, por vezes com laivos de mão corrida, da escrita automática dos surrealistas, ou da corrente de consciência de William James, e por vezes, não menos importante, com uma recuperação da infância perdida, o país onde as laranjas brilham e com o qual vamos sonhando.
Porque há sem dúvida, para cada poeta, chegado o seu momento, um país semelhante...