Tuesday, December 05, 2017

A Nuno Meireles, Pensador Curioso

A Pensar, com Heidegger
 Será que hoje me sento aqui a sério e discorro um pouco sobre o que é pensar? Seguindo os caminhos de Heidegger nas suas lições?
Na edição francesa dos Penseurs Grecs avant Socrate, Flammarion, 1964, um dos primeros livros que li, quando me interessei por esse pensamento fundador, de Thales de Mileto a Prodicos, o que buscava era o momento em que num deles, ou em vários, se rasgava a consciência de se ter consciência. E consciência era saber pensar, era ter conhecimento.
Na altura meditei em especial sobre questão da Moral, da Ética, na busca de uma consciência superior, conducente a uma conhecimento, superior também ele.
Assim surge, em Chilon, o lacedemónio, a frase em que tudo se enraiza:
“conhece-te a ti mesmo”.
E nos vários filósofos que se lhe seguem, o que encontramos é uma ladaínha de conselhos e virtudes morais, que devem ser respeitdos.
É imediato concluir que todo o verdadeiro filósofo, amante da sabedoria, deve ser um homem de bem, que sirva de referência, pelo seu comportamento em relação aos outros ( o que acontecerá na busca primeira de se conhecer a si mesmo).
Thales de Mileto dá inúmeros conselhos de cautela, não fazer promessas em vão, não ofender, não falar de mais, ser comedido, não provocar invejas sublinhando a felicidade que se tem.
Continuamos, por aqui, com uma espécie de atenção aos comportamentos, demonstrando uma clara desconfiança em relação ao próximo, que também é preciso conhecer...
O mais interessante, para este problema que nos ocupa , do pensar e do pensamento, estará em Heraclito de Éfeso, do qual já há uma tradução mais recente dos Fragmentos em tradução francesa:
 Héraclite, Fragments, puf, 1986.
Vejamos o nº 41:
A sabedoria consiste numa única coisa, conhecer o pensamento que governa tudo e em toda  a parte.
 Afirmação que em relação à alma não se verifica, distinguindo já aqui pensamento, e alma:
nº45:
Não se podem encontrar os limites da alma, sejam quais forem os caminhos seguidos, de tal modo estão profundamente enterrados.
Reflexão que poderíamos desenvolver por via de outros filósofos, entre eles Platão e os neo-platonistas, até chegar às doutrinas de Freud e sobretudo de Jung, no nosso tempo, com as noções de inconsciente, pessoal e colectivo e suas manifestações simbólicas e arquetípicas. Mas fica para depois.
Importante é notar que surge, em relação ao pensamento, a ideia de um “tudo e em toda a parte” que é governado por ele, em primeira e única instância.
 No nº 49 também vale a pena meditar sobre este aforismo que atravessou os tempos:
 Descemos e não descemos pelo mesmo rio; somos e não somos.
Aqui se abre a discussão sobre o ser e não ser, que interessará muito Heidegger, em Sein und Zeit: o Ser e o Tempo.
 Adiante, noutro filósofo, Parménides  de Eleu, a afirmação torna-se mais clara:
Nº4-5
Pensar e ser são a mesma coisa.
E mais perto ainda do caminho de Heidegger, o nº8:
O Ser é.
Nas palavras de Parménides, o Ser é incriado, imortal, pois só ele é completo, imóvel e eterno.
Não se pode dizer que ele foi ou que será, pois está ao mesmo tempo todo inteiro no instante  presente, uno, contínuo. Como poderíamos atribuir-lhe alguma origem? Não se pode dizer nem pensar que foi no Não-Ser. Não se pode dizer nem pensar que o Ser não é. Com efeito, o Ser não tem nascimento, nem princípio. É completamente idêntico a si mesmo. O Ser é, desde sempre (e para sempre).
E adiante chegamos à questão do pensamento:
O acto do pensamento e o objecto do pensamento confundem-se. Sem o Ser, no qual é enunciado, não se pode encontrar o acto do pensamento; pois não há nada e nunca haverá nada fora do Ser, uma vez que o Destino o prendeu de modo a que seja único e imóvel.
Resumindo as palavras do filósofo, o Ser é completo, assemelha-se à massa de uma esfera bem arredondada, equilibrando-se em todos os lados.
Heidegger, que comenta regularmente os filósofos gregos, também a esta afirmação deu importância, pois o Ser é contentor  e tempo e pensamento só dele podem resultar.
Escolho Leucipo, em vez de Demócrito, para este fragmento sobre o espírito, que não podemos ignorar:
Nada se produz em vão, mas tudo se produz a partir de uma razão e em virtude de uma necessidade.
 Ocorre de imediato Schopenhauer, que Heidegger também cita, a par de Nietszche, com o célebre Die Welt als Wille und Vorstellung, O Mundo como Vontade e Representação (1819).
Vontade é a necessidade, o imperativo da Razão, e a Representação remete para o acto de pensar.
 Então o que é pensar? Was Heisst Denken? Como aborda Heidegger este tema?
Trata-se de um conjunto de aulas que Heidegger deu aos seus alunos nos semestres de Inverno e Verão de 1951 a 1952, na Universidade de Freiburg ( de que fora Reitor nos anos do nazismo) reunidas sob este título, de O que é Pensar. Foram as suas últimas intervenções, antes de se reformar. Foram também as primeiras, desde que em 1944 foi recrutado pelos nazis para as milícias (Volkssturm) e posteriormente proibido de leccionar pelos ocupantes franceses.
Sabe-se como a vocação do ensino era forte em Heidegger. Quase tudo o que publicou, desde O Ser e o Tempo, em 1927, resulta de conferências ou sessões de Seminário. Como diz o seu tradutor inglês,  J. Glenn Gray, “ Para ele a palavra falada era muito superior à escrita, como acontecia com Platão. Neste livro refere-se a Sócrates como professor, e não como autor, o mais puro pensador do Ocidente” (Gray, p.vi da Introdução).
Para que os seus alunos não perdessem o fio condutor da exposição, em cada aula, Heidegger fazia um resumo e uma “transição” da matéria dada na aula anterior, permitindo que o seu discurso mantivesse uma continuidade, de semana para semana. Por aqui se revela a sua capacidade pedagógica, como também, na exposição, o cuidado com que faz avançar as suas ideias, demorando o tempo necessário para as clarificar, sem ambiguidades, sobretudo quando aborda Nietzsche a a importância ( o peso) que as suas doutrinas tiveram na revolução do pensamento alemão, e na criação do mito do Homem Alemão como o ser excepcional que dominaria o mundo e o seu futuro, já latente.
 Se é marcante a presença de Nietzsche na sua exposição, não é menos marcante a dos filósofos gregos, dos pré-socráticos a Platão. Porque na verdade é na leitura dos gregos antigos, do século V antes de Cristo que vamos encontrando a busca do pensamento como consciência do Ser e da Existência.
Para Heidegger pensar é uma reacção da nossa parte a um chamamento que nasce da natureza das coisas, do Ser ele mesmo. Ser capaz de pensar não depende apenas da nossa vontade ou desejo, embora muito resulte da nossa disponibilidade para ouvir esse chamamento de pensar quando ele surge, e de lhe corresponder de um modo adequado.
Cito de novo Gray, na sua introdução:
“ O pensar é determinado por aquilo que vai ser pensado tanto como pelo sujeito que pensa. Envolve a receptividade de cada um ao Ser, tanto como a receptividade do Ser a cada um. (...) Pensar não é tanto um acto como um modo de viver, um modo de vida. É recordar quem somos como seres humanos, e onde pertencemos ” (p. xi).
Por outras palavras, quem somos e qual o nosso lugar no mundo (no Universo, na Criação).
A natureza da realidade e do homem é ao mesmo tempo oculta e revelada; aparece e retira-se da nossa vista, em simultâneo.
Há algo do Gato de Alice, aqui escondido com rabo de fora...mas isso ia desviar-me do foco de atenção em Heidegger.
O seu pólo de concentração, e retomo de novo Gray, o fiel tradutor e intérprete do seu pensamento seminal, “reside na célebre afirmação de Parménides sobre o dizer e pensar em relação ao Ser. O que Heidegger sugere é que “pensar é um modo concreto de ver e dizer o que o mundo é”. (..) Pensar define a natureza do ser humano, e quanto menos pensamos menos humanos somos.”
Mas continuando, pensar é inerente ao homem “como um ser-no-mundo. Daí que aprender a pensar seja tanto uma descoberta da nossa própria natureza como uma descoberta da natureza do Ser.
Por outras palavras “ a relação do homem com o Ser é tão integral que a  pesquiza de um envolve necessariamente o outro também” (Gray, xii).
Não haverá nestas lições a resposta ou as respostas que se esperam?
É natural, o que Heidegger propõe são caminhos, a partir dos conceitos gregos com nos defronta, e de pssagem evocar os grandes pensadores como Nietzsche ou Schopenhauer, Mestre deste último, e cuja obra Heidegger percorre igualmente, na relação do Ser, e do pensar o Ser, com a realidade do mundo.
Passemos à lições, na PARTE UM, e à frase de abertura da primeira aula:
“Ficamos a saber o que pensar significa quando nós próprios tentamos pensar.
(..)
“Definir  para os outros o que é pensar é tão inútil como descrever cores a um cego”.
“Cada um tem de aprender a fazê-lo por si próprio”.
Resumindo, pensar é pôr-se a caminho, como ele gostava de dizer, e não pode haver melhor definição para a busca do filósofo, descartando em parte Descartes e o seu gosto pela Razão que identifica, ao contrário do que fará Heidegger, aos fundamentos da Existência (penso logo existo...)
Para Heidegger pensar e questionar são praticamente sinónimos, e por isso o vemos próximo, por vezes, de Parménides ou Heraclito. Será difícil incluí-lo sem mais na tradição do pensamento doutrinário alemão. Ele busca uma raiz mais funda. E só nas origens se pode procurar um novo recomeço.
Só posso concordar, por isso escolhi para abrir estas reflexões o pensamento de alguns dos pré-socráticos que leio recorrentemente.
 Da poesia à filosofia, vai um salto, vai um passo, aquele que Heidegger define como o impulso que motiva a busca do que é pensar. Começa a primeira aula com uma bela citação de Hoelderlin, do poema Mnemosyne, na segunda versão. O poeta escreveu uma terceira versão, bem diferente, que não serviria o propósito do filósofo.
Eis os versos escolhidos para este início do filosofar sobre o pensamento:
Ein Zeichen sind wir, deutungslos,
Schmerzlos sind wir und haben fast
Die Sprache in der Fremde verloren.

Somos um sinal, sem sentido,
Somos indolores e quase
Perdemos a língua na distância.

Esta primeira estrofe termina com uma conclusão, que embora logo questionada na estrofe seguinte merece que a ponderemos:
...Lang ist
 die Zeit, es ereignet sich aber
Das Wahre.

É longo
O tempo, mas alcança-se
A verdade.

 Permitindo-me uma ligeira alteração por causa do ritmo,  que se tornaria menos duro, eu poderia traduzir: É longo / O tempo, mas consegue-se alcançar / A verdade.
 Relendo o primeiro verso, sublinhemos o que somos: um sinal, sem sentido e sem sensibilidade (indolor) e que perdeu a língua na distância: perdeu a capacidade de se exprimir e de comunicar ( a língua perdida na distância).
Esta será então a primeira de todas as necessidades para começar a aprender o que é pensar. Reconhecer o que somos, o que perdemos, o que temos de recuperar.
A indicação vem nos versos finais da estrofe: o caminho do pensamento será longo, mas alcança-se a Verdade.
Hoelderlin ajuda Heidegger na sua exposição, ligando, no seu dizer, a busca do que se é, (SEIN, SER ) o tempo (DIE ZEIT, o TEMPO ) e a verdade DAS WAHRE).
Pois veremos como ao longo das lições, aprender a pensar é chegar à verdade (do Ser, que tudo envolve e abrange).  E quanto ao título do hino, Mnemosyne, MEMÓRIA, também haverá algo a dizer.
Recuando até aos gregos e seus mitos, a Memória é uma titã, filha do Céu e da Terra. Une os opostos. Como mãe das Musas, segundo Heidegger, a memória é o pensar que retroactivamente reúne e faz convergir aquilo que nos atrai como sendo e tendo sido no ser.
É a fonte da poesia. Por isso vemos a poesia como água que por vezes flui em direcção à nascente, em direcção ao pensamento, um pensar que é recordação. É o que leva Hoelderlin a dizer que somos um sinal que não é lido...pois tem de ser pensado retroactivamente, buscando a origem num tempo anterior.
Um desafio, para o pensamento, e a busca do que é Pensar.
Heidegger escolhe Sócrates como o Mestre perfeito: não deixou nada escrito, e se o tivesse feito, teria ficado prisioneiro do escrito e não do pensado. Uma prisão de que veio a sofrer, posteriormente, a filosofia ocidental no seu todo.
Daí a escolha de Heidegger: a palavra poética, um verso de sentido amplo, aberto, como em toda a poesia.

Na Segunda Aula, o filósofo desenvolve a relação entre pensamento e poesia, reconhecendo que está ainda longe de saber o que é Pensar e o que apela, ou atrai o Pensamento. Sendo assim, como pensar no que é a Poesia?
E explica por que razão escolheu o hino de Hoelderlin, não por mera citação de conveniência, mas porque aquele verso repousa na sua própria verdade. E esta verdade tem por nome Beleza.
Cito Heidegger:
“ A Beleza é um dom da essência da Verdade, e aqui verdade significa a revelação do que permanece oculto” (Lição 2 , p.19).
“ O Belo não é o que agrada, mas o que pertence ao dom da verdade, que se manifesta quando aquilo que é eternamente não-aparente, e portanto invisível, atinge a sua mais radiosa aparente aparência. Somos obrigados a deixar a palavra poética permanecer na sua verdade, na beleza. E isso não exclui, mas pelo contrário inclui, que estejamos a pensar a palavra poética (Lição 2 , p.19-20).
 O termo usado por Heidegger, em relação ao processo de pensar, é thought-provoking na versão inglesa de Gray, que podemos tentar traduzir por desafiante do pensamento. E é deste modo, de algo desafiante do pensamento que ele deseja que se entenda o verso de Hoelderlin, e em geral a palavra poética na relação com a verdade e a beleza.
Na verdade, pensar é responder a um desafio, neste caso o verso do poeta citado, que interpela o pensamento, no sentido de entender o que foi dito.
O dizer resulta também de um pensamento aprofundado.

Na Quarta Aula Heidegger comentará Shopenhauer e Nietzsche, começando pela obra de grande impacto ao tempo, Die Welt als Wille und Vorstellung, O Mundo como Vontade e Representação, publicada em 1818.
A reflexão incide sobre o que é ter uma ideia, formar uma ideia, algo que é acessível a qualquer um: todos temos uma ideia sobre uma pessoa, um objecto, uma obra de arte, seja o que fôr. Resta saber como se forma a ideia, e de que modo Schopenhauer justifica que o mundo seja uma ideia sua, a sua Representação do mundo.
Heidegger responde com uma pergunta: “onde é que temos essas ideias? Temo-las na nossa cabeça. Temo-las na nossa consciência. Temo-las na nossa alma. Temos as ideias dentro de nós (as ideias destes ou daqueles objectos).
Adiante reconhece que a visão (e afirmação) de Schopenhauer no seu tratado, redefine o que vem a ser a filosofia moderna.
A frase revolucionária é tão provocadora de pensamento, de reflexão, de reacção, que marcou até hoje, e penso que cada vez mais na post-Modernidade não só o pensamento como sobretudo os comportamentos, sociais, culturais e políticos. Eis a frase marcada a fogo no espírito e na alma do Homem Moderno:
“ O mundo é ideia minha”.
Com tudo o que esta ideia, que se tornou fundadora, implica, quanto ao Bem e ao Mal, de que Nietzche se fará um arauto (Para Além do Bem e do Mal, 1886), escrevendo este Prelúdio a uma filosofia do futuro.
 E de facto Heidegger teve a noção de que o futuro já ali estava, em pleno, com o que chamarei de relativização da Ética, da Moral.
Se até este momento se tinha falado do Verdadeiro, do Bom e do Belo (com Platão) falava-se de agora em diante do fim da civilização ocidental, e da morte do deus cristão, como na Genalogia de Moral ( zur Genealogie der Moral, Eine Streitschrift, 1887).
A Vontade de Poder é a força motriz da civilização.
Em Schopenhauer o embrião desta ideia: o Mundo como Vontade, separando no conceito a Representação, dois braços do mesmo corpo.
Heidegger reage de que modo a estes novos sistemas filosóficos que alteram por completo a tradicional (platónica, ou socrática) visão do mundo?
Como retomará, na sua essência, o que vinha dizendo sobre o que é Pensar, enquanto pensamento emanando do Ser? De um Ser anterior a tudo, indefinível e eterno e não-relativizável, pois isso seria diminuí-lo na sua plenitude?
Recordemos Parménides, que ele gostou de citar:
Do não-Ser (uma possibilidade, na relativização dos novos conceitos) nada pode vir a ser. É do Ser que tudo emana, no desafiar do pensamento que dá origem ao acto de pensar. Aqui não há negação, não pode haver negação. Há um Absoluto perene, o do Ser em si mesmo.

Penso por que razão estará Boehme, uma figura maior do pensamento alemão, ausente aqui das reflexões de Heidegger? A este teósofo, tão influente em Goethe, em Novalis, em Schelling, outros, se deve o ter cunhado um conceito como o de Urgrund. O  Nada primordial, que Celan, por exemplo, transformará em Ungrund num dos seus poemas, um Sem-fundo que devora a existência, um buraco de estrelas.
Se há obras que se possam dizer indutoras-de pensamento, são as dele, de certeza.
No primeiro tratado que nos deixa, incompleto, mal recebido no seu tempo, por ser expressão de um pensamento tão heterodoxo, tão visionário, tão marginal, Aurora, de 1682, anotou uma série de visões e reflexões que não queria esquecer, por achar que continham lições fundamentais para um melhor entendimento da criação e do Universo, ideias que serão expostas de modo mais sistemático nos escritos posteriores. Mas aqui reside a semente, o conceito tão caro a Heidegger de indução-do-pensamento.
O tradutor francês de Boehme, Louis Claude de Saint-Martin, traduz como A Aurora Nascente ou A Raiz da Filosofia, da Astrologia  e da Teologia, sendo que é a primeira parte a mais interessante. No original lemos AURORA oder Morgenroete im Aufgang e Gerhard Wehr, que faz uma edição moderna para a Insel Verlag (1992), descreve o Tratado como sendo a procura de um sistema para a explicação do Cosmos e as energias divinas que dentro dele se manifestam. Lichtenbergnão se coibiu de chamar a Boehme “o maior escritor que temos”, sublinhando que neste livro ( a Aurora) irrompe poderosamente a Manhã pelo tempo dentro”...Schelling é outro dos grandes filósofos da cultura alemã que se refere ao sapateiro de Goerlitz como uma “revelação milagrosa da história da humanidade e sobretudo da história do Espírito alemão”. E Ernst Bloch, mais perto de nós afirma: “Desde Heraclito que nada de semelhante se conhecia”.
Quando Boehme, no capítulo segundo do Tratado, se refere ao modo como se deve considerar a essência divina e a essência natural, ocorrem-nos os conceitos heideggerianos de Sein e Dasein, que nos levariam ao célebre Sein und Zeit , O Ser e O Tempo, sendo que é no Tempo que o Dasein se manifesta.
Diz o chamado “filósofo teutónico”, designação pela qual também era conhecido, que há dois modos de referir  o ser divino e o ser natural. Mas, e esta é a conclusão mais importante, o que se pretende é “entender o que é Deus e como tudo foi criado no ser de Deus.”
 Mas deixemos de lado esta divagação, pois teríamos de investigar melhor se sim ou não Heidegger se interessou pela obra de Boehme, e porquê, e voltemos às suas lições.
Estávamos na afirmação de Schopenhauer,
“o mundo é uma ideia minha” ( axioma do cap. I, vol. dois da sua obra monumental).
E segue-se a discussão deste conceito de ideia: o que uma ideia?  Pois não se trata de aceitar sem mais o que parece evidente, quando se tem uma ideia disto ou daquilo, mas sim de elaborar o que comporta a formação de uma ideia na nossa consciência, estabelecendo uma relação do ideal com o real, isto é, seguindo Heideger, “a relação do mundo na cabeça com o mundo fora da cabeça – isto acrescentado ao problema da liberdade moral – algo que distingue a filosofia dos modernos”.
Pondo de parte a ciência da psicologia, que aborda igualmente a questão do que é uma ideia, e de que modo se forma (seja ideia, seja imagem) na nossa consciência, Heidegger procura um exemplo concreto, para se explicar melhor:
“Estamos diante de uma árvore em flôr, por exemplo. E a árvore está diante de nós. A árvore está na nossa frente. (enfrenta-nos). A árvore e nós encontramo-nos, na medida em que a árvore está ali e nós estamos face a face com ela. Nesta relação de um com o outro e um diante do outro, a árvore e nós somos.
Este frente a frente do encontro não é, então, uma das ‘ideias’ que zumbem na nossa cabeça. (...) O que somos agora, pessoas que saíram do reino da ciência e também do reino da filosofia? Para onde fomos? Caímos num abismo? Não, pelo contrário, ficámos em terra firme. No solo em que vivemos e morremos, se formos honestos connosco próprios (...) Quando as ideias se formam desta maneira, uma multiplicidade de coisas acontecem no que é descrito como a esfera da consciência e pertencendo à alma. Mas, está a árvore ‘na nossa consciência?’ Ou está no prado à frente. Está o prado na alma, como experiência, ou está ali na terra? Está a terra na nossa cabeça? Ou  estamos nós na terra?”
Heidegger não fica por aqui. Sugere que não se aceite de imediato como óbvio o que parece ser, que estamos pisando terra e face a face com uma árvore. Aristóteles, que ele cita, considerado um filósofo realista, nunca negaria a existência do mundo exterior, real. E o mesmo se poderia dizer de Platão, de Heraclito ou Parménides. Contudo nunca se preocuparam em demonstrar a existência do mundo externo, real.
Permanece a interrogação: ” o que é afinal esta coisa de formar uma ideia?”, Uma ideia representacional, melhor dizendo uma ideia que é representação?
(porque não podemos esquecer o que nos trouxe aqui, o axioma de Shopenhauer, o mundo como vontade e representação, e adiante, o mundo é uma ideia, uma representação minha).
Pensar, diz Heidegger, é formar ideias. Mas limita esta definição, quando afirma  que as relações estabelecidas por esta afirmação permanecem “na sombra”, basicamente continuam a ser-nos inacessíveis:
“ A natureza essencial do pensar, a origem essencial do pensamento, as possibilidades essenciais de pensar, abrangidas por essa origem, são-nos todas estranhas (...) mas essa afirmação diz-nos também que estamos a caminho, no pensamento, da essência do pensamento”
Continuando, a natureza real do pensamento pode vir a ser-nos revelada caso permaneçamos no caminho. “Nós estamos a caminho”.

Na Quinta Aula desenvolvem-se, a partir de algumas afirmações de Nietzsche, e do colosso de pensamento que é Assim falou Zarathustra, escrito de 1883 a 1885, para um pequeno círculo de amigos, noções como a do eterno retorno,
 da “terra gasta que cresce” (no sentido medieval de terre gaste, como em The Waste Land de T.S.Eliot – a ideia de que o mundo se está a transformar num deserto (de ideias, de criatividade), pensando no devir da velha Europa.
Zarathustra é o gigante que ao fim de dez anos de isolamento na Montanha desce para anunciar, na aldeia, a sua doutrina de um novo mundo, governado por um Homem novo também ele, trazendo consigo a ideia de poder, como Schopenhauer trouxera a de vontade. Heidegger apenas aflora o que ajuda a avançar na questão do pensamento. Não deseja, ou melhor, evita por completo, as referências ao aproveitamento que os admiradores do filósofo, anti-semitas e nazis, fizeram da sua obra. Nietzsche certamente não adivinhava as consequências do seu discurso, original, inaugurando uma outra época do pensar filosófico.

As aulas V a X demoram-se na obra de Nietzsche, com Heidegger de novo a escolher uma frase, uma firmação, para avançar no caminho que leva ao pensamento. Neste caso, a seguinte: a terra estéril cresce ( que acima traduzi como terra gasta). A narrativa de Nietzsche é imagética, colorida, mais sugestiva do que racional, e por isso Heidegger a descreve como reunindo todos os temas do pensamento ocidental, ainda que transmutados, e aos quais se responde numa espécie de diálogo preparador de uma transição.
A frase “a terra estéril cresce; cuidado com o que guarda dentro de si terras estéreis! ” parece uma ameaça, anuncia algo ( a transição) que está para vir.
Heideggar não duvida que o ”Crucificado”, como o filósofo se auto-definiu em carta a um amigo, percebeu que tinha posto em palavras algo que não mais se poderia perder, deixar cair em esquecimento.
 Por isso, sublinha Heidegger,  a frase não se dirige apenas ao amigo que recebe a carta, mas “ exprime um destino de dimensão universal. Por isso lemos a frase como se nos fosse dirigida a nós”. 
 Nietzsche vê com clareza a necessidade de uma mudança no reino do pensamento essencial, num momento em que o homem está à beira de assumir o seu domínio sobre a terra como um todo. E coloca a questão: estará o homem preparado para assumir um tal domínio? E chama ao homem tal como tem sido até agora “o último homem”. Alguém que não é capaz de olhar para além de si mesmo, e seguir um caminho correcto.
Esta ideia de um “Último Homem” é carregada de significado, e de sentido, e precisa de ser analisada com especial cuidado, no entender de Heidegger. Porque este homem é um ser de transição, anuncia o Superhomem que esse sim, terá o domínio do mundo.
Escrevendo depois de passada a Segunda Guerra Mundial, com todo o horror que foi conhecido, o nosso filósofo, regressado ao prazer das suas aulas, em 1952, sente que é necessário ler a obra de Nietzsche não como foi lida por Wagner, ainda menos pelos nazis que fizeram da ideia de um Superhomem nascente ( com Hitler e o nacional-socialismo -  a sua grande utopia), mas como Nietzsche gostaria que o lessem, filósofo de envergadura genial, visionário e poeta, e tal como Hoelderlin, acabando por cair nos delírios da loucura.
Há um apontamento, de 1885 ou 1886, diz Heidegger, com o título de “Recapitulação”, que reúne e resume a doutrina metafísica de Nietzsche tal como foi incluída no n.617 da Vontade de Poder.
Referindo o conceito do eterno retorno, afirma “ que tudo retorne é a mais extrema aproximação de um mundo do Devir (Tornar-se) ao mundo do Ser.
O ponto mais alto da meditação” (Gray, p. 108).
Não era fácil nem para Nietzsche, como mesmo agora para Heidegger, ampliar a meditação sobre o eterno retorno. A ideia de um eterno retorno, do permanente regresso do mesmo que fosse o Ser de tudo, era desviante, o filósofo perdia-se nela. O termo “ eterno retorno do mesmo” estava envolto em escuridão, que assustava.
Nos apontamentos para a Parte IV de Assim falou Zarathustra lemos o que o filósofo foi publicando a seguir, na busca de uma saída para o anterior conceito, tenebroso:
“ Criámos o pensamento mais pesado – criemos então agora o ser que seja luminoso a abençoado...Celebremos o futuro, não o passado. Escrevamos o mito do futuro! Para viver na esperança! Momentos abençoados! E a seguir fechar de novo a cortina, e virar os nossos pensamentos para as firmes finalidades do presente” (XII, p.400).
 Heidegger demora nesta ideia. Sente que precisa de ser explicada. E não admira pois a ideia de um eterno retorno, que sustente a natureza do Ser conduz a uma ideia terrível, a de que o Mal estará contido na natureza do Ser e será recorrente: algo de que já o mundo, com Hitler tinha tido uma experiência bem amarga.
Portanto agora Heidegger deixa-nos com duas opções: “ou dizemos que este pensamento do eterno retorno é uma espécie de misticismo que não pertence ao espaço do pensamento; ou então dizemos que este pensamento é tão antigo como as montanhas e representa uma visão cíclica do mundo que já se encontra em Heraclito e outros”
 E continua: “De que nos serve afirmar que o mesmo pensamento ‘já’ pode ser encontrado em Leibniz, ou mesmo já em Platão – se o pensamento de Leibniz e Platão ficarem na mesma escuridão deste pensamento supostamente clarificado por tais referências” ?
Heidegger fechará esta décima lição, e a Primeira Parte do conjunto, não com uma conclusão, mas com uma interpelação:
“ A tentativa de Nietzsche de pensar o Ser dos seres torna claro para nós, modernos,  que todo o pensamento, isto é, relacionado com o Ser, é ainda difícil. É deste modo que Aristóteles descreve, na sua Metafísica, esta dificuldade ( cp. 1, livro 2, 993 b ):
‘O que acontece com os olhos dos morcegos perante a luz do dia, acontece com a nossa visão mental em relação às coisas que são por natureza mais aparentes’  (ou seja, a presença de tudo o que está presente). O Ser dos seres é o mais aparente; e contudo, nós normalmente não o vemos – e se o vemos, é com dificuldade.” (Gray, p.110).
 PARTE DOIS
Aula I
“ A que se chama pensar? “
E é como se voltássemos ao princípio da razão de ser desta pergunta, que não terá ficado por completo esclarecida, na opinião de Heidegger... Dos clássicos gregos aos modernos alemães, e apesar da demorada análise do pensamento de Nietzsche, o gigante que sobressaía na velha Europa de então, a pergunta permanece, envolta num desafio e num mistério que é necessário decifrar.
 “Penso, logo existo”.
Descartes define aqui a existência, como pensamento ou consciência de ser, pensando e sendo. É uma afirmação que tranquiliza o ser pensante, na sua existência.
Mas não se responde por aqui à interrogação de Heidegger. Afinal o que é pensar?
A leitura das aulas anteriores deixa perceber que Nietzsche não ajudou, antes tornou mais candente a interrogação e a necessidade de resposta.
Conceitos como o do homem de transição, o superhomem e o do eterno retorno, ( este bebido na tradição hindú, e pouco adequado ao racionalismo do ocidente) deram à questão do pensar uma dimensão de utopia visonária, fundada numa intuição mística mais do que num impulso de reflexão comedida, e por isso envolta em escuridão, como diz Heidegger, e assustadora, como de facto se veio a revelar. Porque do Homem Superior, do superhomem, o desígnio era a Vontade de Poder. E esse Poder, se atingido, seria de domínio sobre o mundo todo.
Heidegger tem de voltar a um grego, Aristóteles, e reconhecer com ele que não é fácil, ou será mesmo impossível, ver o que é mais aparente, neste caso o Ser, na sua totalidade. E do Ser faz parte o Pensamento.
Pode o Pensamento pensar-se a si próprio enquanto é o que é? Ou deixa de ser, ao pensar-se, e a pergunta fica de novo sem resposta?
 Ocorrem-me os versos de Pessoa, em Além-Deus:
 I / Abismo
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando –
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco –
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo – eu e  o mundo em redor –
Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, idéia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus.


Adiante, no último conjunto, V /  Braço Sem Corpo Brandindo um Gládio, surge curiosamente um parêntesis (“Entre a árvore e o vê-la”)a que só falta, na minha opinião, colocar como epígrafe o nome de Heidegger...sincronicidades, diria Jung, e muito a propósito. Vejamos:

Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?...E eu fico tristonho
Por não saber se a curva da ponte
É a curva do horizonte...

Entre o que vive e a vida
Pra que lado corre o rio?
Árvore de folhas vestida –
Entre isso e Árvore há fio?
Pombas voando – o pombal
Está-lhes sempre à direita, ou é real?

Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê ?
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me...E o pombal elevado
Está em torno na pomba, ou de lado?
(in Cancioneiro)

Estas interrogações de Pessoa, este intervalo entre o ser e a consciência que se tem do intervalo entre ser e ser, ali onde se está na presença do sonho, - serviriam ao raciocínio de Heidegger, que aparenta agora dificuldades?
Nietzsche anunciara a morte de Deus, o deus dos cristãos, e fizera sair do Vazio (ou melhor da Montanha, lugar de Revelação) um Superhomem de vontade poderosa de domínio do mundo.
Ideia assustadora, que leva o nosso filósofo a deixar de lado, nas outras lições sobre o que é a essência do Pensar, o célebre Zarathustra.
O caminho não seria por ali. Por ali se iria de encontro ao desastre, como veio a suceder.
Ficou-se longe de encontrar o sentido do “sinal que não era lido”, de Hoelderlin, na primeira das primeiras aulas. Quem sabe se é de novo aos poetas que é  preciso recorrer...
 Heidegger responde, nesta segunda parte, na primeira aula, estabelecendo 4 requisitos para melhor responder à questão. A saber:
Em primeiro lugar o que a pergunta faz é distinguir entre o que é o pensamento e o que é o pensar (o acto de pensar).”O que significam estas palavras? A que coisa estamos a dar o nome de “pensar?”.
Em segundo lugar “como define e concebe a doutrina tradicional aquilo a que chamamos ‘pensar’ ? O que é que, durante dois mil e quinhentos anos, foi considerado a característica básica do pensar? Por que razão a doutrina tradicional do pensamento se intitula ‘Lógica’ ?
O que é chamado pensar diz-nos ainda, em terceiro lugar, quais são os “pré-requisitos necessários para se poder pensar correctamente. O que nos é exigido para, pela nossa parte, conseguirmos de cada vez, alcançar o pensamento certo? “
E finalmente, em quarto lugar, “o que é que nos impele, isto é, como que nos força, a pensar ? “ O que é que nos conduz ao pensar ?” (Gray, p. 114).
Estes quatro modos de fazer a pergunta estão intimamente relacionados e o difícil é decidir qual dos quatro é o certo, enquanto os outros não são sustentáveis; ou se todos eles são igualmente necessários por estarem unidos num todo.
Mas – continua Hiedegger, aprofundando a questão – qual a unidade que os unifica? Pode a unidade ser acrescentada, como quinto elemento, à multiplicidade dos quatro, “como um telhado sobre uma casa de quatro paredes?“
 Ou terá precedência algum dos modos de colocar a questão sobre os outros? Heidegger propõe que se avance com cautela neste domínio, de qual dos modos de questionar será o decisivo. Prevê-se, ele assim o vai dizendo, que é o quarto modo de fazer a pergunta, por ser mais abrangente e nascer do impulso que “conduz a pensar”, como que à força.
Assim, eis a pergunta mais correcta: “ o que é que nos dá o impulso de pensar, em cada momento, e em relação a cada assunto? “
Mas não podemos ficar por aqui.
O que nos induz a pensar indica um caminho que primeiro nos torna “capazes de pensar” e nos transforma em pensadores por força dessa indicação primeira. Heidegger repete com insistência a necessidade de explicar (entender) o significado do ímpeto, do impulso, daquilo que nos induz a pensar.
Cunha um novo conceito , o de “indutor de pensamento” (thought-provoking, na tadução de Gray), para chegar a uma nova afrmação, neste contexto, a de que não se trata de pensar àcerca de alguma coisa, num ou noutro momento, mas sim de ter como “destino essencial o de ser levado ao pensar e ao pensamento” fazendo com que sejamos apropriados pelo pensamento, unidos a ele.
Uma revelação do Ser, que é Pensamento, e nós com ele, como seres pensados além de pensantes (pensadores) numa estranha e misteriosa união.
 A resposta de Heidegger contém agora uma dimensão mística que parecia não ter. As três primeiras perguntas afinal todas apontavam para esta quarta, de que se ocupou mais longamente, sobre aquilo que nos impele, nos induz a pensar.

Na Segunda Aula,  já não surpreende que o filósofo vá buscar os exemplos da poesia e do pensar para definir o que ele chama de dizer essencial.
Pensamento e poesia usam a linguagem como meio de expressão, tal como a escultura, a pintura, e a música se exprimem com a matéria, a côr, os sons e os tons.
A linguagem não é apenas a área ou um meio de expressão. Pensamento e poesia não se limitam a usar a linguagem para apenas se exprimire. Pensamento e poesia são antes em si mesmos a linguagem originária, essencial, e também o discurso final que a linguagem exprime pela boca do homem.
“Falar a linguagem é totalmente diferente de usar a linguagem”. A língua comum apenas usa a linguagem. Mas, sublinha Hedeger, porque o pensamento e a poesia não se servem de termos, mas falam palavras, somo impelidos a dar atenção ao que a palavra diz.
Chegámos ao momento de tentar explicar a ligação do pensamento, ou daquilo que nos induz a pensar, ao dizer primordial, o do palavra poética, de onde o sentido a que aludira Hoelderlin, no poema Mnemosyne, parecia ter-se perdido:
“Somos um sinal que não é lido”.
O nosso dizer, o do pensamento e da língua primordial, estava perdido no longe.
E lentamente, “ com tempo”, com todo o tempo que lhe foi necessário, chega agora o filósofo ao centro da questão colocada no início: O QUE É PENSAR?

Será na Quinta Aula, e até ao fim dos Seminários,  que nos iremos  aproximando do mistério, recuperando Parménides, o filósofo do século VI-V a. C. , com a seguinta reflexão: “Devíamos ao mesmo tempo dizer e pensar que o Ser é”.
Para Parménides é a mesma coisa pensar e ser.
Poderemos concluir que aquilo que nos conduz ao pensamento nos conduz ao Ser? O Ser que, sendo, contém todos os seres?
Aqui estamos nós a dar resposta com outra pergunta, e para esta pergunta teríamos de nos debruçar sobre a obra máxima de Heideger, O SER E O TEMPO, para abrir uma outra discussão, a do presente, pois já Parménides tinha dito que é no presente, convocados pela Memória, que se podem conceber os seres que o Ser contém.
 Em resumo:
Havendo no acto de Pensar uma vontade – é-se impelido a pensar – essa vontade tem de residir no Ser, na essência que tudo abarca e abrange, e na consciência que no Tempo se manifesta.
Mas há mais, e esse mais não pode ser descurado, embora Heidegger declarasse que não faria entrar no seu raciocínio a nova ciência da Psicologia.
Ele repete página a página, ou quase, a mesma interrogação. E nós sentimos que não haverá verdadeiramente uma resposta, mas talvez antes mais uma interrogação.
Quando insiste no ponto fulcral de “o que nos impele a pensar? - O que despoleta em nós essa necessidade? –
Ocorreu-me que é na Psicologia de hoje em dia que se encontra a resposta, e não na doutrina filosófica do seu tempo.
No início das Aulas declara que põe de parte, para a sua elaboração, a Ciência e a Psicologia ( que nos anos 50 já muito tinham avançado no conhecimento da psique humana e do estudo das Religiões Comparadas).
Para finalizar e sair do impasse em Heidegger nos deixou, tenho esta resposta: o que nos induz a colocar a questão do Que é Pensar, é a Curiosidade.
A curiosidade que no Génesis leva Adão e Eva, mas sobretudo Eva, instigada pela Serpente, a comer do fruto da Árvore proibida, a do Conhecimento do Bem e do Mal.
A Serpente diz que se comerem do fruto dessa Árvore não morrerão, como ameaçou Yahvé-Deus, mas antes os seus olhos se abrirão e serão como os dos deuses, “que conhecem o bem e o mal” . A mulher “viu que a Árvore era boa para comer, sedutora aos olhos de quem a via, e que era, essa Árvore, desejável para adquirir o Conhecimento. Pegou no seu fruto e comeu-o. ( La Sainte Bible, traduite en français sous la direction de L’ÉCOLE BIBLIQUE DE JERUSALEM, 1955.
 Deus amaldiçoa a serpente e expulsa Adão e Eva do Paraíso, não fossem comer também de da Vida e ganharem a Eternidade, apanágio exclusivo dos deuses.
Podemos agora relembrar Hoelderlin, que antes de se decidir por chamar Mnemosyne (Memória) ao seu hino, teve outros títulos em mente, entre eles bem significativo, A Serpente.Ora sabemos, com Freud e Jung, que não há acasos, há coincidências significativas, e este título da Serpente, para acabar com Memória e um primeiro verso que nos diz que “somos um sinal que não é lido”, por termos perdido a nossa língua ( que língua? A primordial, do Antigo Testamento? ) em terras longínquas (quais? As do Éden perdido para sempre? )- tem afinal mais importância do que parece à primeira vista, e pareceu a Heidegger.
A resposta à sua pergunta Was Heisst Denken, o Que é Pensar e o que nos induz a esse esforço, a esse movimento, está contido na linguagem mítica, perdida, do Génesis e do par primordial, movido por uma Curiosidade que tem a ver com o querer saber, querer conhecer, o que fora proibido.
Esta é a resposta – quem sabe se com ela virão outras – um dia? A Curiosidade.
Não podemos  pôr de parte, como fez Heidegger, a Psicologia, em matéria de conhecimento filosófico. A Memória é parte integrante do Ser que ele interroga, e lhe deu ao fim e ao cabo uma resposta parcial.
É preciso ir mais fundo...
 De modo que o título ideal para este apontamento sobre uma questão difícil, mas inspiradora, e que envolve tanto o pensamento como a poesia, poderia ser: A Árvore e o Rio, Heidegger e Pessoa.
 Y.K.Centeno
(Lisboa, 2017)























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Friday, September 29, 2017

Europa : la terre gaste

Foi uma estranha associação de ideias.
A partir de uma paisagem desolada, parecendo anunciar um futuro próximo, ou pior, um presente cuja realidade chocava, por deixar à vista tanta miséria, tanta doença, tanto abandono indiferente, surge de súbito a imagem da terre gaste,  no Perceval de Chrétien de Troyes.
Fui reler o conto do Graal, e ao mesmo tempo a obra fundadora do Modernismo europeu The Waste Land, de T.S.Eliot, lida e esquecida há anos na minha velha estante. Também nesta longa e poética exposição encontrei a terre gaste da lenda e uma visão do mundo em que talvez o horror da Primeira Guerra Mundial tivesse deixado as suas marcas perenes. Porque o horror nunca deixou o mundo, e nunca deixou a Europa que discutimos agora, já no século XXI.
Perceval, na Idade-Média, personifica o herói de alma pura, intocada a ponto de nem saber a sua origem (cavalheiresca) e escondido pela mãe na floresta protectora vir a julgar que uns cavaleiros com que se depara um dia são verdadeiros Anjos do céu. A sua aventura começará então, como percurso de vida entregue a uma sede de perfeição de que o Graal, o Vaso em que fora recolhido o sangue de Cristo, é a imagem e a utopia condutora.
A importância do tema do Graal, que Chrétien de Troyes introduz, e a sua função arquetípica, atravessam os séculos, e as obras de uma cultura europeia que vem até aos nosso dias, com Wagner e Eliot, passando por um Eschenbach alemão, contemporâneo do criador francês.
Os heróis, na narrativa, têm o seu encontro decisivo - pois marcará para sempre o seu futuro, e o seu olhar sobre o mundo, (o eu e o outro) ao chegarem ao Reino do Graal.
Deste reino, do qual Gurnemanz, ( o sábio mentor de Parsifal, na ópera de Wagner ) dirá que é um reino onde o Tempo se torna Espaço
Du siehst, mein Sohn,
zum Raum wird hier die Zeit.
o que podemos é fixar que recupera, no grande cortejo do Graal, de distribuição de ricos alimentos e abundantes bebidas, vestígios da memória das descrições de Joaquim de Flora, o monge do século XII que tinha anunciado para breve a chegada do Reino do Espírito Santo (no Liber Figurarum, inspirado no Apocalipse de São João) em que predominaria a igualdade entre todos, sem distinção de nenhuma espécie, e a abundância de alimento, material e espiritual. Memória de uma Idade de fomes, de guerras, de pestes, de grande miséria social e moral.
No livro de Chrétien não se encontra, para lá desta visão da lenda, mais nenhuma indicação de processo místico de iniciação, como acontecerá com Wagner, séculos mais tarde.
Importante é a referência ao olhar que se deve ter sobre o outro ( no caso o Rei Pescador, que é Rei do Graal, sofrendo as dores da sua mutilação, mas sobre esta mutilação falaremos noutra altura) perante uma situação que ninguém explica, e o dever de colocar a pergunta certa, levado por um sentimento de compaixão e piedade.
O jovem Perceval não faz pergunta nenhuma, toma tudo por adquirido, com alguma inocência, e o mesmo acontece com o Parsifal  wagneriano (por essa razão será adiada a sua coroação como futuro e predestinado Rei).
Mas importante, como disse, é que se chame a atenção para um momento especialmente dramático: alguém sofre, e quem podia ajudar, não ajuda, não entende a dimensão do gesto caridoso que se devia impôr, e assim como veio, vai, fechado em si, a sua individuação prevista (diria um junguiano) ficará adiada mais um tempo.
A imagem da terre gaste, como logo de início a da Gaste Forêt solitária, onde o jovem vive com a mãe que deseja protegê-lo do mundo a que pertenceria, é uma imagem forte, e muito actual.
Vivemos hoje em dia numa Europa que alguma Mãe (Viúva, como no Conto) deseja proteger, isolando os heróis possíveis em recantos que são feitos de olhares indiferentes, distanciados, sem noção dos valores que se impõem.: sendo o primeiro de todos o da solidariedade, no amor, na compaixão pelo outro.
De pouco serve a abundância das utopias do Graal, dos seus cortejos sumptuosos, se o espaço à volta, o Espaço em que se transformou o Tempo é afinal um espaço de abandono, de solidão, doença da alma e condenação à  morte.
Chegou a hora de ver a Europa fazer as perguntas certas. Ou não será mais que terre gaste no momento supremo da interrogação e da verdade.

Wednesday, August 16, 2017

Rimbaud, o mar e o sol, a Eternidade

Falarei do que é pequeno, simples, e ainda assim inspirado. Como o Rimbaud em êxtase alquímico, de fusão plena, nos versos da Eternidade. Quem gostará, como eu, de os dizer tão repetidamente?
O que é a Eternidade?
É o mar
Dissolvido no sol

 C’est quoi l’éternité?
 C’est la mer
Mêlée au soleil

Das três versões conhecidas,  a última é a que prefiro, já direi porquê, pela alteração do último verso:
Version 3
Manuscrit inconnu.
Reproduit d'après l'édition originale de la 
Saison en Enfer (1873).
Elle est retrouvée !
Quoi ? l'éternité.
C'est la mer mêlée
     Au soleil.

Mon âme éternelle,
Observe ton vœu
Malgré la nuit seule
Et le jour en feu.

Donc tu te dégages
Des humains suffrages,
Des communs élans !
Tu voles selon...

— Jamais l'espérance.
     Pas d'orietur.
Science et patience,
Le supplice est sûr.

Plus de lendemain,
Braises de satin,
     Votre ardeur
     Est le devoir.

Elle est retrouvée !
— Quoi ? — l'Éternité.
C'est la mer mêlée
     Au soleil.
Não é a mesma coisa o mar fugido com o sol (como nas  duas anteriores versões conhecidas) como se o mar (feminino, na língua francesa, como a água) ao fugir com o sol, masculino em ambas as línguas, no original e na tradução portuguesa que gostei de fazer, permitisse imaginar o arquétipo do rapto de feminino por uma energia masculina, solar, mais forte e dominadora, como um Zeus dos antigos agora revivido pelo imaginário  do poeta.
Mas Rimbaud é um inquieto, e nesta descida que nos oferece às trevas mais profundas, da revolta de uma vida que ora nega ora renega, descobre, em iluminação (outro título para outra emoção sedutora) a via alquímica, que soube também, transformar em vivência poética. E a via alquímica não é de fuga, não é de rapto por um elemento mais forte e poderoso, é a via de uma fusão de Pares de Opostos, ambos poderosos, porque ambos transformadores (redentores), numa Conjunção perfeita.
O último verso é o que permite a verdadeira revelação, a verdadeira Iluminação, tão procurada, por tantos desvios e caminhos: mar e sol, ou água (lua) e sol dissolvidos um no outro. Assim os revemos nos mais antigos tratados, assim se redescobre o poeta no mais fundo de si mesmo, alquimista do Verbo, o Verbo que é o sopro original de que tudo provém, pela palavra proferida, ordenando o caos: do universo grande e do pequeno, do turbilhão da alma.
Quando escreve:

 Ô saisons, ô chateaux!
 Quelle âme est sans défauts?

J’ai fait la magique étude
Du bonheur, qu’aucun n’élude.
....
E anota no fim do poema que tudo aquilo se passou e pode então concluir: “ Je sais aujourd’hui saluer la beauté”. Pois sem ter vivido o mal não se descobre o bem, sem o feio dos defeitos da vida, assumidos, entendidos no seu sentido profundo (integrados, diria um junguiano) não se descortinará nunca o belo, a tal Beleza que reina, sentada à direita do Pai, como a Shekina generosa e abundante da mística da Kabala.

Tempos

pequeno pensamento:
tento, procuro, não encontro
não é o espaço,
é o tempo

Thursday, July 20, 2017

SINAIS

Se o meu antigo livro, Irreflexões, publicado na editora Ática há anos, tivesse tido uma segunda edição revista e ampliada, seriam estes os poemas acrescentados. Não aconteceu.
Foram reunidos mais tarde para a colecção O Oiro do Dia, com um desenho de Vítor Simões, e pela mão de José da Cruz Santos, editor da INOVA, do Porto, em 1977. 
Por uma estranha razão, foi sempre do Porto, onde vivi em criança, que me vieram convites. Neste caso para uma plaquette com 13 poemas.
Por isso é-me fácil agora recuperar para alguns amigos uma parte do pequeno conjunto. Aqui ficam com  meu abraço fiel.
SINAIS
O que é o corpo
é um barco?

O que é um barco
é um porto?

O que é um porto
é o mar?

SYMBOLE
Au bout de mes détours
y-aura-t-il un chemin

Au bout de mon chemin
y-aura-t-il de l'aide

Le signe qui m'attend
attendra-t-il toujours

L'ATELIER DU BONHEUR
Il s'agit d'être ensemble
il s'agit de créer
il s'agit d'être heureux

SOLEIL
Le soleil brille à midi.
Mais l'ombre déjà le guette
l'ombre est toujours derrière lui

A transgressão:
é esse o meu limite

A MORTE
A cabeça voltada
para que lado.
Onde encontrar o Oriente
o seu significado

ANJOS
I
É quando o Anjo terrível
se descobre
que a sua luz nos mata.

É a luz
ou a espada?

Ou é o fogo
que dentro dele
se ata
e se desata?

II
Depois da morte
quem indica a morada?

Não é o Anjo.

O Anjo não sabe nada

SINAIS
Sou apenas um sinal
sou apenas um caminho

(quantas vezes percorrido
até chegar ao destino? )
















Tuesday, July 18, 2017

Uma Ilha Flutuante

Agradeço por aqui ao Rodrigo Francisco, e ao seu Festival de Almada, neste Verão de incêndios, um bálsamo risonho para a nossa alma de amantes do bom teatro…
Um banho de arte genial, cheio de humor, subtil, culto como gosto de ver, - sem as facilidades grosseiras e simplórias que agora surgem por todo o lado e claro, não me fazem sair de casa, nunca.
Título: Une Île Flottante, Uma Ilha Flutuante - produção do Theater Basel e Théatre Vidy-Lausanne, textos de Labiche com encenação de Christoph Marthaler, um dos grandes como dizia o Rodrigo, junto com outros geniais colaboradores.
Na realidade por ali flutuamos mesmo, levados por uma onda surrealista de situações delirantes, entre jogos de línguas, o francês e o alemão, entre jogos de corpos e de des-comunicações de um humor subtil e  ao mesmo tempo cruel de tão real, tão verosímil, que tanto nos coloca em situação...
Parabéns e que haja mais para o ano...