A Pensar, com Heidegger
Na edição francesa dos Penseurs
Grecs avant Socrate, Flammarion, 1964, um dos primeros livros que li,
quando me interessei por esse pensamento fundador, de Thales de Mileto a
Prodicos, o que buscava era o momento em que num deles, ou em vários, se
rasgava a consciência de se ter consciência. E consciência era saber pensar,
era ter conhecimento.
Na altura meditei em especial sobre questão da Moral, da
Ética, na busca de uma consciência superior, conducente a uma conhecimento,
superior também ele.
Assim surge, em Chilon, o lacedemónio, a frase em que tudo
se enraiza:
“conhece-te a ti mesmo”.
E nos vários filósofos que se lhe seguem, o que encontramos
é uma ladaínha de conselhos e virtudes morais, que devem ser respeitdos.
É imediato concluir que todo o verdadeiro filósofo, amante
da sabedoria, deve ser um homem de bem, que sirva de referência, pelo seu
comportamento em relação aos outros ( o que acontecerá na busca primeira de se
conhecer a si mesmo).
Thales de Mileto dá inúmeros conselhos de cautela, não fazer
promessas em vão, não ofender, não falar de mais, ser comedido, não provocar
invejas sublinhando a felicidade que se tem.
Continuamos, por aqui, com uma espécie de atenção aos
comportamentos, demonstrando uma clara desconfiança em relação ao próximo, que
também é preciso conhecer...
O mais interessante, para este problema que nos ocupa , do
pensar e do pensamento, estará em Heraclito de Éfeso, do qual já há uma
tradução mais recente dos Fragmentos em tradução francesa:
Héraclite, Fragments, puf, 1986.
Vejamos o nº 41:
A sabedoria consiste
numa única coisa, conhecer o pensamento que governa tudo e em toda a parte.
Afirmação que em
relação à alma não se verifica, distinguindo já aqui pensamento, e alma:
nº45:
Não se podem encontrar
os limites da alma, sejam quais forem os caminhos seguidos, de tal modo estão
profundamente enterrados.
Reflexão que poderíamos desenvolver por via de outros
filósofos, entre eles Platão e os neo-platonistas, até chegar às doutrinas de
Freud e sobretudo de Jung, no nosso tempo, com as noções de inconsciente,
pessoal e colectivo e suas manifestações simbólicas e arquetípicas. Mas fica
para depois.
Importante é notar que surge, em relação ao pensamento, a
ideia de um “tudo e em toda a parte” que é governado por ele, em primeira e
única instância.
Descemos e não descemos pelo mesmo rio; somos
e não somos.
Aqui se abre a discussão sobre o ser e não ser, que
interessará muito Heidegger, em Sein und
Zeit: o Ser e o Tempo.
Nº4-5
Pensar e ser são a
mesma coisa.
E mais perto ainda do caminho de Heidegger, o nº8:
O Ser é.
Nas palavras de Parménides, o Ser é incriado, imortal, pois só ele é completo, imóvel e eterno.
Não se pode dizer que ele foi ou que será, pois está ao
mesmo tempo todo inteiro no instante
presente, uno, contínuo. Como poderíamos atribuir-lhe alguma origem? Não
se pode dizer nem pensar que foi no Não-Ser. Não se pode dizer nem pensar que o
Ser não é. Com efeito, o Ser não tem nascimento, nem princípio. É completamente
idêntico a si mesmo. O Ser é, desde
sempre (e para sempre).
E adiante chegamos à questão do pensamento:
O acto do pensamento e
o objecto do pensamento confundem-se. Sem o Ser, no qual é enunciado, não se
pode encontrar o acto do pensamento; pois não há nada e nunca haverá nada fora
do Ser, uma vez que o Destino o prendeu de modo a que seja único e imóvel.
Resumindo as palavras do filósofo, o Ser é completo, assemelha-se à massa de uma esfera bem arredondada,
equilibrando-se em todos os lados.
Heidegger, que comenta regularmente os filósofos gregos,
também a esta afirmação deu importância, pois o Ser é contentor e tempo e
pensamento só dele podem resultar.
Escolho Leucipo, em vez de Demócrito, para este fragmento
sobre o espírito, que não podemos ignorar:
Nada se produz em vão,
mas tudo se produz a partir de uma razão e em virtude de uma necessidade.
Vontade é a necessidade, o imperativo da Razão, e a
Representação remete para o acto de pensar.
Trata-se de um conjunto de aulas que Heidegger deu aos seus
alunos nos semestres de Inverno e Verão de 1951 a 1952, na Universidade de
Freiburg ( de que fora Reitor nos anos do nazismo) reunidas sob este título, de
O que é Pensar. Foram as suas últimas
intervenções, antes de se reformar. Foram também as primeiras, desde que em
1944 foi recrutado pelos nazis para as milícias (Volkssturm) e posteriormente proibido de leccionar pelos ocupantes
franceses.
Sabe-se como a vocação do ensino era forte em Heidegger.
Quase tudo o que publicou, desde O Ser e
o Tempo, em 1927, resulta de conferências ou sessões de Seminário. Como diz
o seu tradutor inglês, J. Glenn Gray, “
Para ele a palavra falada era muito superior à escrita, como acontecia com
Platão. Neste livro refere-se a Sócrates como professor, e não como autor, o
mais puro pensador do Ocidente” (Gray, p.vi da Introdução).
Para que os seus alunos não perdessem o fio condutor da
exposição, em cada aula, Heidegger fazia um resumo e uma “transição” da matéria
dada na aula anterior, permitindo que o seu discurso mantivesse uma
continuidade, de semana para semana. Por aqui se revela a sua capacidade
pedagógica, como também, na exposição, o cuidado com que faz avançar as suas
ideias, demorando o tempo necessário para as clarificar, sem ambiguidades,
sobretudo quando aborda Nietzsche a a importância ( o peso) que as suas
doutrinas tiveram na revolução do pensamento alemão, e na criação do mito do
Homem Alemão como o ser excepcional que dominaria o mundo e o seu futuro, já
latente.
Para Heidegger pensar é uma reacção da nossa parte a um
chamamento que nasce da natureza das coisas, do Ser ele mesmo. Ser capaz de
pensar não depende apenas da nossa vontade ou desejo, embora muito resulte da
nossa disponibilidade para ouvir esse chamamento de pensar quando ele surge, e
de lhe corresponder de um modo adequado.
Cito de novo Gray, na sua introdução:
“ O pensar é determinado por aquilo que vai ser pensado
tanto como pelo sujeito que pensa. Envolve a receptividade de cada um ao Ser,
tanto como a receptividade do Ser a cada um. (...) Pensar não é tanto um acto
como um modo de viver, um modo de vida. É recordar quem somos como seres
humanos, e onde pertencemos ” (p. xi).
Por outras palavras, quem somos e qual o nosso lugar no
mundo (no Universo, na Criação).
A natureza da realidade e do homem é ao mesmo tempo oculta e
revelada; aparece e retira-se da nossa vista, em simultâneo.
Há algo do Gato de Alice, aqui escondido com rabo de
fora...mas isso ia desviar-me do foco de atenção em Heidegger.
O seu pólo de concentração, e retomo de novo Gray, o fiel
tradutor e intérprete do seu pensamento seminal, “reside na célebre afirmação
de Parménides sobre o dizer e pensar em relação ao Ser. O que Heidegger sugere
é que “pensar é um modo concreto de ver e dizer o que o mundo é”. (..) Pensar
define a natureza do ser humano, e quanto menos pensamos menos humanos somos.”
Mas continuando, pensar é inerente ao homem “como um
ser-no-mundo. Daí que aprender a pensar seja tanto uma descoberta da nossa
própria natureza como uma descoberta da natureza do Ser.
Por outras palavras “ a relação do homem com o Ser é tão
integral que a pesquiza de um envolve
necessariamente o outro também” (Gray, xii).
Não haverá nestas lições a resposta ou as respostas que se
esperam?
É natural, o que Heidegger propõe são caminhos, a partir dos
conceitos gregos com nos defronta, e de pssagem evocar os grandes pensadores
como Nietzsche ou Schopenhauer, Mestre deste último, e cuja obra Heidegger
percorre igualmente, na relação do Ser, e do pensar o Ser, com a realidade do
mundo.
Passemos à lições, na PARTE UM, e à frase de abertura da
primeira aula:
“Ficamos a saber o que pensar significa quando nós próprios
tentamos pensar.
(..)
“Definir para os
outros o que é pensar é tão inútil como descrever cores a um cego”.
“Cada um tem de aprender a fazê-lo por si próprio”.
Resumindo, pensar é pôr-se
a caminho, como ele gostava de dizer, e não pode haver melhor definição
para a busca do filósofo, descartando em parte Descartes e o seu gosto pela Razão
que identifica, ao contrário do que fará Heidegger, aos fundamentos da
Existência (penso logo existo...)
Para Heidegger pensar e questionar são praticamente
sinónimos, e por isso o vemos próximo, por vezes, de Parménides ou Heraclito.
Será difícil incluí-lo sem mais na tradição do pensamento doutrinário alemão.
Ele busca uma raiz mais funda. E só nas origens se pode procurar um novo
recomeço.
Só posso concordar, por isso escolhi para abrir estas
reflexões o pensamento de alguns dos pré-socráticos que leio recorrentemente.
Eis os versos escolhidos para este início do filosofar sobre
o pensamento:
Ein Zeichen sind wir,
deutungslos,
Schmerzlos sind wir
und haben fast
Die Sprache in der
Fremde verloren.
Somos um sinal, sem
sentido,
Somos indolores e
quase
Perdemos a língua na
distância.
Esta primeira estrofe termina com uma conclusão, que embora
logo questionada na estrofe seguinte merece que a ponderemos:
...Lang ist
die Zeit, es ereignet sich aber
Das Wahre.
É longo
O tempo, mas
alcança-se
A verdade.
Permitindo-me uma
ligeira alteração por causa do ritmo, que
se tornaria menos duro, eu poderia traduzir: É longo / O tempo, mas consegue-se alcançar / A verdade.
Esta será então a primeira de todas as necessidades para
começar a aprender o que é pensar. Reconhecer o que somos, o que perdemos, o
que temos de recuperar.
A indicação vem nos versos finais da estrofe: o caminho do
pensamento será longo, mas alcança-se a Verdade.
Hoelderlin ajuda Heidegger na sua exposição, ligando, no seu
dizer, a busca do que se é, (SEIN,
SER ) o tempo (DIE ZEIT, o TEMPO ) e
a verdade DAS WAHRE).
Pois veremos como ao longo das lições, aprender a pensar é
chegar à verdade (do Ser, que tudo envolve e abrange). E quanto ao título do hino, Mnemosyne, MEMÓRIA, também haverá algo a
dizer.
Recuando até aos gregos e seus mitos, a Memória é uma titã,
filha do Céu e da Terra. Une os opostos. Como mãe das Musas, segundo Heidegger,
a memória é o pensar que retroactivamente reúne e faz convergir aquilo que nos
atrai como sendo e tendo sido no ser.
É a fonte da poesia. Por isso vemos a poesia como água que
por vezes flui em direcção à nascente, em direcção ao pensamento, um pensar que
é recordação. É o que leva Hoelderlin a dizer que somos um sinal que não é
lido...pois tem de ser pensado retroactivamente, buscando a origem num tempo
anterior.
Um desafio, para o pensamento, e a busca do que é Pensar.
Heidegger escolhe Sócrates como o Mestre perfeito: não
deixou nada escrito, e se o tivesse feito, teria ficado prisioneiro do escrito e não do pensado. Uma prisão de que veio a sofrer, posteriormente, a
filosofia ocidental no seu todo.
Daí a escolha de Heidegger: a palavra poética, um verso de
sentido amplo, aberto, como em toda a poesia.
Na Segunda Aula, o filósofo desenvolve a relação entre
pensamento e poesia, reconhecendo que está ainda longe de saber o que é Pensar
e o que apela, ou atrai o Pensamento. Sendo assim, como pensar no que é a
Poesia?
E explica por que razão escolheu o hino de Hoelderlin, não
por mera citação de conveniência, mas porque aquele verso repousa na sua
própria verdade. E esta verdade tem por nome Beleza.
Cito Heidegger:
“ A Beleza é um dom da essência da Verdade, e aqui verdade
significa a revelação do que permanece oculto” (Lição 2 , p.19).
“ O Belo não é o que agrada, mas o que pertence ao dom da
verdade, que se manifesta quando aquilo que é eternamente não-aparente, e
portanto invisível, atinge a sua mais radiosa aparente aparência. Somos
obrigados a deixar a palavra poética permanecer na sua verdade, na beleza. E isso não exclui, mas pelo contrário
inclui, que estejamos a pensar a palavra poética (Lição 2 , p.19-20).
Na verdade, pensar é responder
a um desafio, neste caso o verso do poeta citado, que interpela o
pensamento, no sentido de entender o que foi dito.
O dizer resulta também de um pensamento aprofundado.
Na Quarta Aula Heidegger comentará Shopenhauer e Nietzsche,
começando pela obra de grande impacto ao tempo, Die Welt als Wille und Vorstellung, O Mundo como Vontade e
Representação, publicada em 1818.
A reflexão incide sobre o que é ter uma ideia, formar uma
ideia, algo que é acessível a qualquer um: todos temos uma ideia sobre uma
pessoa, um objecto, uma obra de arte, seja o que fôr. Resta saber como se forma
a ideia, e de que modo Schopenhauer justifica que o mundo seja uma ideia sua, a
sua Representação do mundo.
Heidegger responde com uma pergunta: “onde é que temos essas
ideias? Temo-las na nossa cabeça. Temo-las na nossa consciência. Temo-las na
nossa alma. Temos as ideias dentro de nós (as ideias destes ou daqueles
objectos).
Adiante reconhece que a visão (e afirmação) de Schopenhauer
no seu tratado, redefine o que vem a ser a filosofia moderna.
A frase revolucionária é tão provocadora de pensamento, de
reflexão, de reacção, que marcou até hoje, e penso que cada vez mais na
post-Modernidade não só o pensamento como sobretudo os comportamentos, sociais,
culturais e políticos. Eis a frase marcada a fogo no espírito e na alma do
Homem Moderno:
“ O mundo é ideia minha”.
Com tudo o que esta ideia, que se tornou fundadora, implica,
quanto ao Bem e ao Mal, de que Nietzche se fará um arauto (Para Além do Bem e do Mal, 1886),
escrevendo este Prelúdio a uma filosofia do futuro.
Se até este momento se tinha falado do Verdadeiro, do Bom e
do Belo (com Platão) falava-se de agora em diante do fim da civilização
ocidental, e da morte do deus cristão, como na Genalogia de Moral ( zur Genealogie
der Moral, Eine Streitschrift, 1887).
A Vontade de Poder é a força motriz da civilização.
Em Schopenhauer o embrião desta ideia: o Mundo como Vontade,
separando no conceito a Representação, dois braços do mesmo corpo.
Heidegger reage de que modo a estes novos sistemas
filosóficos que alteram por completo a tradicional (platónica, ou socrática)
visão do mundo?
Como retomará, na sua essência, o que vinha dizendo sobre o
que é Pensar, enquanto pensamento emanando do Ser? De um Ser anterior a tudo,
indefinível e eterno e não-relativizável, pois isso seria diminuí-lo na sua
plenitude?
Recordemos Parménides, que ele gostou de citar:
Do não-Ser (uma possibilidade, na relativização dos novos
conceitos) nada pode vir a ser. É do Ser que tudo emana, no desafiar do
pensamento que dá origem ao acto de pensar. Aqui não há negaçã
Penso por que razão estará Boehme, uma figura maior do
pensamento alemão, ausente aqui das reflexões de Heidegger? A este teósofo, tão
influente em Goethe, em Novalis, em Schelling, outros, se deve o ter cunhado um
conceito como o de Urgrund. O Nada primordial, que Celan, por exemplo,
transformará em Ungrund num dos seus
poemas, um Sem-fundo que devora a existência, um buraco de estrelas.
Se há obras que se possam dizer indutoras-de pensamento, são
as dele, de certeza.
No primeiro tratado que nos deixa, incompleto, mal recebido
no seu tempo, por ser expressão de um pensamento tão heterodoxo, tão
visionário, tão marginal, Aurora, de
1682, anotou uma série de visões e reflexões que não queria esquecer, por
achar que continham lições fundamentais para um melhor entendimento da criação
e do Universo, ideias que serão expostas de modo mais sistemático nos escritos
posteriores. Mas aqui reside a semente, o conceito tão caro a Heidegger de
indução-do-pensamento.
O tradutor francês de Boehme, Louis Claude de Saint-Martin,
traduz como A Aurora Nascente ou A Raiz
da Filosofia, da Astrologia e da
Teologia, sendo que é a primeira parte a mais interessante. No original
lemos AURORA oder Morgenroete im Aufgang
e Gerhard Wehr, que faz uma edição moderna para a Insel Verlag (1992), descreve
o Tratado como sendo a procura de um sistema para a explicação do Cosmos e as
energias divinas que dentro dele se manifestam. Lichtenbergnão se coibiu de
chamar a Boehme “o maior escritor que temos”, sublinhando que neste livro ( a
Aurora) irrompe poderosamente a Manhã pelo tempo dentro”...Schelling é outro
dos grandes filósofos da cultura alemã que se refere ao sapateiro de Goerlitz
como uma “revelação milagrosa da história da humanidade e sobretudo da história
do Espírito alemão”. E Ernst Bloch, mais perto de nós afirma: “Desde Heraclito
que nada de semelhante se conhecia”.
Quando Boehme, no capítulo segundo do Tratado, se refere ao
modo como se deve considerar a essência
divina e a essência natural,
ocorrem-nos os conceitos heideggerianos de Sein
e Dasein, que nos levariam ao célebre Sein
und Zeit , O Ser e O Tempo, sendo
que é no Tempo que o Dasein se
manifesta.
Diz o chamado “filósofo teutónico”, designação pela qual
também era conhecido, que há dois modos de referir o ser divino e o ser natural. Mas, e esta é a
conclusão mais importante, o que se pretende é “entender o que é Deus e como
tudo foi criado no ser de Deus.”
Estávamos na afirmação de Schopenhauer,
“o mundo é uma ideia minha” ( axioma do cap. I, vol. dois da
sua obra monumental).
E segue-se a discussão deste conceito de ideia: o que uma
ideia? Pois não se trata de aceitar sem
mais o que parece evidente, quando se tem uma ideia disto ou daquilo, mas sim
de elaborar o que comporta a formação de uma ideia na nossa consciência,
estabelecendo uma relação do ideal com o real, isto é, seguindo Heideger, “a
relação do mundo na cabeça com o mundo fora da cabeça – isto acrescentado ao
problema da liberdade moral – algo que distingue a filosofia dos modernos”.
Pondo de parte a ciência da psicologia, que aborda
igualmente a questão do que é uma ideia, e de que modo se forma (seja ideia,
seja imagem) na nossa consciência, Heidegger procura um exemplo concreto, para
se explicar melhor:
“Estamos diante de uma árvore em flôr, por exemplo. E a
árvore está diante de nós. A árvore está na nossa frente. (enfrenta-nos). A
árvore e nós encontramo-nos, na medida em que a árvore está ali e nós estamos
face a face com ela. Nesta relação de um com o outro e um diante do outro, a
árvore e nós somos.
Este frente a frente do encontro não é, então, uma das
‘ideias’ que zumbem na nossa cabeça. (...) O que somos agora, pessoas que saíram do reino da ciência e também do
reino da filosofia? Para onde fomos? Caímos num abismo? Não, pelo contrário,
ficámos em terra firme. No solo em que vivemos e morremos, se formos honestos
connosco próprios (...) Quando as ideias se formam desta maneira, uma
multiplicidade de coisas acontecem no que é descrito como a esfera da
consciência e pertencendo à alma. Mas, está a árvore ‘na nossa consciência?’ Ou
está no prado à frente. Está o prado na alma, como experiência, ou está ali na
terra? Está a terra na nossa cabeça? Ou
estamos nós na terra?”
Heidegger não fica por aqui. Sugere que não se aceite de
imediato como óbvio o que parece ser, que estamos pisando terra e face a face
com uma árvore. Aristóteles, que ele cita, considerado um filósofo realista,
nunca negaria a existência do mundo exterior, real. E o mesmo se poderia dizer
de Platão, de Heraclito ou Parménides. Contudo nunca se preocuparam em demonstrar a existência do mundo
externo, real.
Permanece a interrogação: ” o que é afinal esta coisa de
formar uma ideia?”, Uma ideia representacional, melhor dizendo uma ideia que é representação?
(porque não podemos esquecer o que nos trouxe aqui, o axioma
de Shopenhauer, o mundo como vontade e representação, e adiante, o mundo é uma
ideia, uma representação minha).
Pensar, diz Heidegger, é formar ideias. Mas limita esta definição,
quando afirma que as relações
estabelecidas por esta afirmação permanecem “na sombra”, basicamente continuam
a ser-nos inacessíveis:
“ A natureza essencial do pensar, a origem essencial do
pensamento, as possibilidades essenciais de pensar, abrangidas por essa origem,
são-nos todas estranhas (...) mas essa afirmação diz-nos também que estamos a
caminho, no pensamento, da essência do pensamento”
Continuando, a natureza real do pensamento pode vir a
ser-nos revelada caso permaneçamos no caminho. “Nós estamos a caminho”.
Na Quinta Aula desenvolvem-se, a partir de algumas
afirmações de Nietzsche, e do colosso de pensamento que é Assim falou Zarathustra, escrito de 1883 a 1885, para um pequeno
círculo de amigos, noções como a do eterno retorno,
da “terra gasta que
cresce” (no sentido medieval de terre
gaste, como em The Waste Land de T.S.Eliot – a ideia de que
o mundo se está a transformar num deserto (de ideias, de criatividade),
pensando no devir da velha Europa.
Zarathustra é o gigante que ao fim de dez anos de isolamento
na Montanha desce para anunciar, na aldeia, a sua doutrina de um novo mundo,
governado por um Homem novo também ele, trazendo consigo a ideia de poder, como Schopenhauer trouxera a de vontade. Heidegger apenas aflora o que
ajuda a avançar na questão do pensamento. Não deseja, ou melhor, evita por
completo, as referências ao aproveitamento que os admiradores do filósofo,
anti-semitas e nazis, fizeram da sua obra. Nietzsche certamente não adivinhava
as consequências do seu discurso, original, inaugurando uma outra época do
pensar filosófico.
As aulas V a X demoram-se na obra de Nietzsche, com
Heidegger de novo a escolher uma frase, uma firmação, para avançar no caminho
que leva ao pensamento. Neste caso, a seguinte: a terra estéril cresce ( que acima traduzi como terra gasta). A
narrativa de Nietzsche é imagética, colorida, mais sugestiva do que racional, e
por isso Heidegger a descreve como reunindo todos os temas do pensamento
ocidental, ainda que transmutados, e aos quais se responde numa espécie de
diálogo preparador de uma transição.
A frase “a terra estéril cresce; cuidado com o que guarda
dentro de si terras estéreis! ” parece uma ameaça, anuncia algo ( a transição)
que está para vir.
Heideggar não duvida que o ”Crucificado”, como o filósofo se
auto-definiu em carta a um amigo, percebeu que tinha posto em palavras algo que
não mais se poderia perder, deixar cair em esquecimento.
Por isso, sublinha
Heidegger, a frase não se dirige apenas
ao amigo que recebe a carta, mas “ exprime um destino de dimensão universal.
Por isso lemos a frase como se nos fosse dirigida a nós”.
Esta ideia de um “Último Homem” é carregada de significado,
e de sentido, e precisa de ser analisada com especial cuidado, no entender de
Heidegger. Porque este homem é um ser de transição, anuncia o Superhomem que
esse sim, terá o domínio do mundo.
Escrevendo depois de passada a Segunda Guerra Mundial, com
todo o horror que foi conhecido, o nosso filósofo, regressado ao prazer das
suas aulas, em 1952, sente que é necessário ler a obra de Nietzsche não como
foi lida por Wagner, ainda menos pelos nazis que fizeram da ideia de um
Superhomem nascente ( com Hitler e o nacional-socialismo - a sua grande utopia), mas como Nietzsche
gostaria que o lessem, filósofo de envergadura genial, visionário e poeta, e
tal como Hoelderlin, acabando por cair nos delírios da loucura.
Há um apontamento, de 1885 ou 1886, diz Heidegger, com o
título de “Recapitulação”, que reúne e resume a doutrina metafísica de
Nietzsche tal como foi incluída no n.617 da Vontade
de Poder.
Referindo o conceito do eterno retorno, afirma “ que tudo
retorne é a mais extrema aproximação de um mundo do Devir (Tornar-se) ao mundo
do Ser.
O ponto mais alto da meditação” (Gray, p. 108).
Não era fácil nem para Nietzsche, como mesmo agora para
Heidegger, ampliar a meditação sobre o eterno retorno. A ideia de um eterno
retorno, do permanente regresso do mesmo que fosse o Ser de tudo, era
desviante, o filósofo perdia-se nela. O termo “ eterno retorno do mesmo” estava
envolto em escuridão, que assustava.
Nos apontamentos para a Parte IV de Assim falou Zarathustra lemos o que o filósofo foi publicando a
seguir, na busca de uma saída para o anterior conceito, tenebroso:
“ Criámos o pensamento mais pesado – criemos então agora o
ser que seja luminoso a abençoado...Celebremos o futuro, não o passado.
Escrevamos o mito do futuro! Para viver na esperança! Momentos abençoados! E a
seguir fechar de novo a cortina, e virar os
nossos pensamentos para as firmes finalidades do presente” (XII, p.400).
Portanto agora Heidegger deixa-nos com duas opções: “ou
dizemos que este pensamento do eterno retorno é uma espécie de misticismo que
não pertence ao espaço do pensamento; ou então dizemos que este pensamento é
tão antigo como as montanhas e representa uma visão cíclica do mundo que já se
encontra em Heraclito e outros”
E continua: “De que
nos serve afirmar que o mesmo pensamento ‘já’ pode ser encontrado em Leibniz,
ou mesmo já em Platão – se o pensamento de Leibniz e Platão ficarem na mesma
escuridão deste pensamento supostamente clarificado por tais referências” ?
Heidegger fechará esta décima lição, e a Primeira Parte do
conjunto, não com uma conclusão, mas com uma interpelação:
“ A tentativa de Nietzsche de pensar o Ser dos seres torna
claro para nós, modernos, que todo o pensamento,
isto é, relacionado com o Ser, é ainda difícil. É deste modo que Aristóteles
descreve, na sua Metafísica, esta
dificuldade ( cp. 1, livro 2, 993 b ):
‘O que acontece com os olhos dos morcegos perante a luz do
dia, acontece com a nossa visão mental em relação às coisas que são por
natureza mais aparentes’ (ou seja, a
presença de tudo o que está presente). O Ser dos seres é o mais aparente; e
contudo, nós normalmente não o vemos – e se o vemos, é com dificuldade.” (Gray,
p.110).
Aula I
“ A que se chama
pensar? “
E é como se voltássemos ao princípio da razão de ser desta
pergunta, que não terá ficado por completo esclarecida, na opinião de
Heidegger... Dos clássicos gregos aos modernos alemães, e apesar da demorada
análise do pensamento de Nietzsche, o gigante que sobressaía na velha Europa de
então, a pergunta permanece, envolta num desafio e num mistério que é
necessário decifrar.
Descartes define aqui a existência, como pensamento ou
consciência de ser, pensando e sendo. É uma afirmação que tranquiliza o ser
pensante, na sua existência.
Mas não se responde por aqui à interrogação de Heidegger.
Afinal o que é pensar?
A leitura das aulas anteriores deixa perceber que Nietzsche
não ajudou, antes tornou mais candente a interrogação e a necessidade de
resposta.
Conceitos como o do homem
de transição, o superhomem e o do
eterno retorno, ( este bebido na
tradição hindú, e pouco adequado ao racionalismo do ocidente) deram à questão
do pensar uma dimensão de utopia visonária, fundada numa intuição mística mais
do que num impulso de reflexão comedida, e por isso envolta em escuridão, como
diz Heidegger, e assustadora, como de facto se veio a revelar. Porque do Homem
Superior, do superhomem, o desígnio era a Vontade
de Poder. E esse Poder, se atingido, seria de domínio sobre o mundo todo.
Heidegger tem de voltar a um grego, Aristóteles, e
reconhecer com ele que não é fácil, ou será mesmo impossível, ver o que é mais
aparente, neste caso o Ser, na sua totalidade. E do Ser faz parte o Pensamento.
Pode o Pensamento pensar-se a si próprio enquanto é o que é?
Ou deixa de ser, ao pensar-se, e a pergunta fica de novo sem resposta?
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando –
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco –
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo – eu e o mundo
em redor –
Fica mais que exterior.
Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, idéia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...
E súbito encontro Deus.
Adiante, no último conjunto, V / Braço Sem Corpo Brandindo um Gládio, surge
curiosamente um parêntesis (“Entre a árvore e o vê-la”)a que só falta, na minha
opinião, colocar como epígrafe o nome de Heidegger...sincronicidades, diria
Jung, e muito a propósito. Vejamos:
Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?...E eu fico tristonho
Por não saber se a curva da ponte
É a curva do horizonte...
Entre o que vive e a vida
Pra que lado corre o rio?
Árvore de folhas vestida –
Entre isso e Árvore há fio?
Pombas voando – o pombal
Está-lhes sempre à direita, ou é real?
Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê ?
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me...E o pombal elevado
Está em torno na pomba, ou de lado?
(in Cancioneiro)
Estas interrogações de Pessoa, este intervalo entre o ser e
a consciência que se tem do intervalo entre ser e ser, ali onde se está na
presença do sonho, - serviriam ao raciocínio de Heidegger, que aparenta agora
dificuldades?
Nietzsche anunciara a morte de Deus, o deus dos cristãos, e
fizera sair do Vazio (ou melhor da Montanha, lugar de Revelação) um Superhomem
de vontade poderosa de domínio do mundo.
Ideia assustadora, que leva o nosso filósofo a deixar de
lado, nas outras lições sobre o que é a essência do Pensar, o célebre
Zarathustra.
O caminho não seria por ali. Por ali se iria de encontro ao
desastre, como veio a suceder.
Ficou-se longe de encontrar o sentido do “sinal que não era
lido”, de Hoelderlin, na primeira das primeiras aulas. Quem sabe se é de novo
aos poetas que é preciso recorrer...
Em primeiro lugar o que a pergunta faz é distinguir entre o
que é o pensamento e o que é o pensar (o acto de pensar).”O que significam
estas palavras? A que coisa estamos a dar o nome de “pensar?”.
Em segundo lugar “como define e concebe a doutrina
tradicional aquilo a que chamamos ‘pensar’ ? O que é que, durante dois mil e
quinhentos anos, foi considerado a característica básica do pensar? Por que
razão a doutrina tradicional do pensamento se intitula ‘Lógica’ ?
O que é chamado pensar diz-nos ainda, em terceiro lugar,
quais são os “pré-requisitos necessários para se poder pensar correctamente. O
que nos é exigido para, pela nossa parte, conseguirmos de cada vez, alcançar o
pensamento certo? “
E finalmente, em quarto lugar, “o que é que nos impele, isto
é, como que nos força, a pensar ? “ O que é que nos conduz ao pensar ?” (Gray,
p. 114).
Estes quatro modos de fazer a pergunta estão intimamente
relacionados e o difícil é decidir qual dos quatro é o certo, enquanto os
outros não são sustentáveis; ou se todos eles são igualmente necessários por
estarem unidos num todo.
Mas – continua Hiedegger, aprofundando a questão – qual a
unidade que os unifica? Pode a unidade ser acrescentada, como quinto elemento,
à multiplicidade dos quatro, “como um telhado sobre uma casa de quatro
paredes?“
Ou terá precedência
algum dos modos de colocar a questão sobre os outros? Heidegger propõe que se
avance com cautela neste domínio, de qual dos modos de questionar será o
decisivo. Prevê-se, ele assim o vai dizendo, que é o quarto modo de fazer a
pergunta, por ser mais abrangente e nascer do impulso que “conduz a pensar”,
como que à força.
Assim, eis a pergunta mais correcta: “ o que é que nos dá o
impulso de pensar, em cada momento, e em relação a cada assunto? “
Mas não podemos ficar por aqui.
O que nos induz a pensar indica um caminho que primeiro nos
torna “capazes de pensar” e nos transforma em pensadores por força dessa indicação primeira. Heidegger repete com
insistência a necessidade de explicar (entender) o significado do ímpeto, do
impulso, daquilo que nos induz a pensar.
Cunha um novo conceito , o de “indutor de pensamento”
(thought-provoking, na tadução de Gray), para chegar a uma nova afrmação, neste
contexto, a de que não se trata de pensar àcerca de alguma coisa, num ou noutro
momento, mas sim de ter como “destino essencial o de ser levado ao pensar e ao
pensamento” fazendo com que sejamos apropriados pelo pensamento, unidos a ele.
Uma revelação do Ser, que é Pensamento, e nós com ele, como
seres pensados além de pensantes (pensadores) numa estranha e misteriosa união.
A resposta de
Heidegger contém agora uma dimensão mística
que parecia não ter. As três primeiras perguntas afinal todas apontavam para
esta quarta, de que se ocupou mais longamente, sobre aquilo que nos impele, nos
induz a pensar.
Na Segunda Aula, já
não surpreende que o filósofo vá buscar os exemplos da poesia e do pensar para
definir o que ele chama de dizer essencial.
Pensamento e poesia usam a linguagem como meio de expressão,
tal como a escultura, a pintura, e a música se exprimem com a matéria, a côr,
os sons e os tons.
A linguagem não é apenas a área ou um meio de expressão.
Pensamento e poesia não se limitam a usar a linguagem para apenas se exprimire.
Pensamento e poesia são antes em si mesmos a linguagem originária, essencial, e
também o discurso final que a linguagem exprime pela boca do homem.
“Falar a linguagem é totalmente diferente de usar a
linguagem”. A língua comum apenas usa a linguagem. Mas, sublinha Hedeger,
porque o pensamento e a poesia não se servem de termos, mas falam palavras, somo impelidos a dar
atenção ao que a palavra diz.
Chegámos ao momento de tentar explicar a ligação do pensamento,
ou daquilo que nos induz a pensar, ao dizer
primordial, o do palavra poética, de onde o sentido a que aludira Hoelderlin,
no poema Mnemosyne, parecia ter-se
perdido:
“Somos um sinal que não é lido”.
O nosso dizer, o do pensamento e da língua primordial,
estava perdido no longe.
E lentamente, “ com tempo”, com todo o tempo que lhe foi
necessário, chega agora o filósofo ao centro da questão colocada no início: O
QUE É PENSAR?
Será na Quinta Aula, e até ao fim dos Seminários, que nos iremos
aproximando do mistério, recuperando Parménides, o filósofo do século
VI-V a. C. , com a seguinta reflexão: “Devíamos ao mesmo tempo dizer e pensar
que o Ser é”.
Para Parménides é a
mesma coisa pensar e ser.
Poderemos concluir que aquilo que nos conduz ao pensamento
nos conduz ao Ser? O Ser que, sendo, contém todos os seres?
Aqui estamos nós a dar resposta com outra pergunta, e para
esta pergunta teríamos de nos debruçar sobre a obra máxima de Heideger, O SER E O TEMPO, para abrir uma outra
discussão, a do presente, pois já Parménides tinha dito que é no presente,
convocados pela Memória, que se podem conceber os seres que o Ser contém.
Havendo no acto de Pensar uma vontade – é-se impelido a pensar – essa vontade tem de
residir no Ser, na essência que tudo abarca e abrange, e na consciência que no Tempo se manifesta.
Mas há mais, e esse mais não pode ser descurado, embora
Heidegger declarasse que não faria entrar no seu raciocínio a nova ciência da
Psicologia.
Ele repete página a página, ou quase, a mesma interrogação.
E nós sentimos que não haverá verdadeiramente uma resposta, mas talvez antes
mais uma interrogação.
Quando insiste no ponto fulcral de “o que nos impele a
pensar? - O que despoleta em nós essa necessidade? –
Ocorreu-me que é na Psicologia de hoje em dia que se
encontra a resposta, e não na doutrina filosófica do seu tempo.
No início das Aulas declara que põe de parte, para a sua
elaboração, a Ciência e a Psicologia ( que nos anos 50 já muito tinham avançado
no conhecimento da psique humana e do estudo das Religiões Comparadas).
Para finalizar e sair do impasse em Heidegger nos deixou,
tenho esta resposta: o que nos induz a colocar a questão do Que é Pensar, é a
Curiosidade.
A curiosidade que no Génesis leva Adão e Eva, mas sobretudo
Eva, instigada pela Serpente, a comer do fruto da Árvore proibida, a do Conhecimento do Bem e do Mal.
A Serpente diz que se comerem do fruto dessa Árvore não
morrerão, como ameaçou Yahvé-Deus, mas antes os seus olhos se abrirão e serão
como os dos deuses, “que conhecem o bem e o mal” . A mulher “viu que a Árvore
era boa para comer, sedutora aos olhos de quem a via, e que era, essa Árvore,
desejável para adquirir o Conhecimento. Pegou no seu fruto e comeu-o. ( La Sainte Bible, traduite en français
sous la direction de L’ÉCOLE BIBLIQUE DE JERUSALEM, 1955.
Deus amaldiçoa a serpente e expulsa Adão e
Eva do Paraíso, não fossem comer também de da Vida e ganharem a Eternidade,
apanágio exclusivo dos deuses.
Podemos agora relembrar Hoelderlin, que antes de se decidir
por chamar Mnemosyne (Memória) ao seu
hino, teve outros títulos em mente, entre eles bem significativo, A Serpente.Ora sabemos, com Freud e
Jung, que não há acasos, há coincidências
significativas, e este título da Serpente,
para acabar com Memória e um primeiro
verso que nos diz que “somos um sinal que não é lido”, por termos perdido a
nossa língua ( que língua? A primordial, do Antigo Testamento? ) em terras
longínquas (quais? As do Éden perdido para sempre? )- tem afinal mais
importância do que parece à primeira vista, e pareceu a Heidegger.
A resposta à sua pergunta Was Heisst Denken, o Que é Pensar e o que nos induz a esse esforço, a esse movimento, está contido na linguagem
mítica, perdida, do Génesis e do par primordial, movido por uma Curiosidade que
tem a ver com o querer saber, querer conhecer, o que fora proibido.
Esta é a resposta – quem sabe se com ela virão outras – um
dia? A Curiosidade.
Não podemos pôr de
parte, como fez Heidegger, a Psicologia, em matéria de conhecimento filosófico.
A Memória é parte integrante do Ser que ele interroga, e lhe deu ao fim e ao
cabo uma resposta parcial.
É preciso ir mais fundo...
(Lisboa, 2017)
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