I
Eugénio de Andrade é um dos grandes poetas que podemos ler e reler, descobrindo de cada vez mais alguma emoção, mais uma imagem carregada de reflexos que nos levam para outras paragens, outras leituras, outros imaginários sedutores.
Estou a ler o ensaio de João de Mancelos, O MARULHAR DE VERSOS ANTIGOS (ed. Colibri, 2009) precisamente sobre a intertextualidade em Eugénio de Andrade. Obra de investigação em que o autor nos vai conduzindo para os vários caminho que Eugénio de Andrade também foi percorrendo (e tal como acontecia com Fernando Pessoa) eram fonte e matriz de inspiração.
Deste modo descobrimos uma espécie de geografia da alma: Walt Whitman, (oh Álvaro de Campos! ), John Keats, Wallace Stevens, Yeats, entre outros; o estudo de Mancelos é orientado sobretudo para os estudiosos da palavra literária, "em contexto", como acontece, não por acaso, com a escolha de "erva" na transição de Whitman para os poemas de Eugénio, ou da imagem antiga (celta) do "corpo verde", ou do "deus verde", do poema GREEN GOD. Um deus que é Pan, ou Orfeu, um deus da celebração do corpo , da natureza eterna, que surge na escolha de "fonte" ou "flauta" como palavras de referência, preferidas, na poesia de Eugénio.
Mas não vou fazer aqui um assomo de recensão crítica, tomo apenas nota do interesse deste conjunto de ensaios sobre um grande poeta, remetendo o leitor para a edição da Obra Completa de Eugénio de Andrade, de 2005.
Passam anos, e a obra aí está, para ser lida e estudada...
Green God
Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.
Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.
Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.
E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.
(Andrade, 2005, 23)
Aqui temos Orfeu, deus verde, com sua dança, renascendo a cada passo, na melodia perfeita.
Mancelos salienta este aspecto arquetípico em muita da poesia de Eugénio de Andrade. Mas não é toda a obra poética, por mais simples, despida, ou cuidadosamente elaborada, produto de uma vivência de algum arquétipo que, súbito, se apossa da nossa alma?
Num seu livro de poesia, O TEU NOME INCENDIADO DE AZUL (ed. Colibri), João de Mancelos evoca a memória do pai, citando Khalil Gibran (1883-1931) na epígrafe:
"A simplicidade é o último degrau da sabedoria".
O seu verso é despido, caminha para o silêncio, que dirá mais do que quaisquer palavras, no caminho que percorre.
Gosto muito de relembrar Paul Celan, sobretudo aos poetas: "menos é mais".
A sua poesia é quase sempre discursiva, se assim a posso chamar, atravessada por alguma imagem mais forte que, tal como acontece nos Haikai, nos prende então deixando-nos a meditar, como em "a dispersa esperança":
vem, adormece junto a mim, vela este sono manso,
e escuta a dispersa esperança sobrevoando meu peito
como um bando de gaivotas já sem rumo.
(p.13)
Ou ainda em "uma tenda neste deserto":
façamos uma tenda neste deserto de incerteza:
as estacas serão meus ossos quebrados,
a cobertura, a pele polida pela noite do amor.
(p.15)
"génese"
de escuridão em escuridão,
procuro o sobressalto luminoso
de um verso.
(p.34)
Este gosto por uma forma quase linear, sintética, torna a leitura do livro especialmente agradável: demoramos aqui e ali, ora entre poemas mais longos, ora simplesmente, sabiamente, entre a condensação de versos.
Termino com o "epitáfio para um poeta":
semeaste estrelas e ceifaste a noite,
enganaste a morte e beijaste a eternidade,
uma sílaba azul de cada vez.
(p.65)
II
Já aqui tenho dito, a propósito de outros poetas que chamo da nova geração - nascidos em fins dos anos sessenta/setenta - escrevendo já com a cultura e os percursos pessoais que a Revolução de Abril lhes permitiu, e a circulação pela Europa ainda mais, que é esta nova geração que inova e renova o discurso poético que parecia fixado em Pessoa, ou liberto, mas não assimilado, por Herberto Helder. Sem que o prazer de ler outros, como o inspirado Eugénio de Andrade, lhes fosse alheio.
É o caso do percurso de João de Mancelos, cujo c.v. permite ver como se formou, como continuou, o que foi lendo e divulgando, nas matérias a que se dedica nas Universidades onde permanece, da Beira Interior e de Aveiro. Vejo que Escrita Criativa assumiu para ele uma importância grande. É bom que assim seja, e que ele próprio não abandone o prazer de escrever, que estará a ensinar a outros.
Vem isto a propósito de outros seus livros, sempre em edição da Colibri:
UMA CANÇÃO NO VENTO (a poesia de Eugénio de Andrade, ensaio); e de O PÓ DA SOMBRA, poemas.
Anuncia o "como" da sua escrita : "poema a poema, passo a alma a ferro", mas não ilude que parte de um olhar atento: "os pequenos incidentes dos dias" (ars poetica, p.11).
Eis uma boa lição, para o começo : quem não olha não vê, e quem não vê como poderia escrever? Este olhar não é superficial, nem distraído, é um olhar atento às convulsões da alma.
Poemas longos, atravessados por alguma nostalgia, como a que se descobre nas referências de Rilke às emoções complexas do amor, dos amantes, suas razões e suas perdas.
Rilke aconselhava, nas cartas a um poeta, que de início não se escrevessem poemas de amor. Não teriam dimensão universal...mas o modo que Mancelos tem de "passar a ferro" essas primeiras pulsões retira-lhes o sentimentalismo fácil em que poderia cair, e despe o verso de ornamentos inúteis, deixando apenas as imagens mais fortes, condutoras. No seu caso a narrativa poética, pois muitas vezes é dela que se trata, já é em si, um bom exemplo a seguir:
"navegando de mastros amputados"
somos navios distantes,
a bordo
do desejo,
as memórias,
gaivotas de passagem
pelo mapa,
e a paixão,
o vento que restou
das suas asas.
assim os amantes:
navegando de mastros amputados
pela noite.
(p.23)
Este mar, que apenas se adivinha , pois nele vão os desejos dos navios distantes, é o mar de um inconsciente onde se guardam os pequenos (ou grandes) incidentes do dias...
E é por este mar que se descobrem pessoas, cidades, reflexos de mitos fundadores, no seguimento do livro.
Em cada poema, uma viagem.
Neste caso deste poeta, com um retorno ao dizer que se tornou vital.
Wednesday, December 14, 2016
Tuesday, December 06, 2016
Eduardo Quina, Labirintos e Sombras
De Eduardo Quina, dois livros de poesia:
CORPO:LABIRINTOS (2009-2012) ed. Licorne
e SOMBRAS MORTAS ENTRE OS DEDOS (Apuro edições, 2015)
Chegaram-me do Funchal, por estes dias, em que houve um encontro sobre a Obra de Herberto Helder, que tem deixado marca em muitos dos poetas contemporâneos.
Como Pessoa, não se pode fugir à marca de Herberto Helder, que quando releio me apetece situar entre Lautréamont e Rimbaud, ou resultando de uma fusão intensa de ambos.
O autor apresenta-se como um professor de filosofia que às vezes escreve. E é quanto basta, diz, o resto pouco importa.
Na verdade importa, porque publica o que escreve, adivinhando que cada livro ajuda a uma viagem, que é de muitos caminhos, os dele e os dos seus leitores.
Como também me aconteceu a mim, quando publiquei num site on line os meus poemas de OUTONAIS (ed. blurb, 2011) falta no livro de Eduardo o Índice...e um índice ajuda muito a quem deseja escolher, e escrever sobre este ou aquele poema...
Reparei nas epígrafes, que são sempre um subtil "indicador" de leitura e vou começar por aí: A iniciar o ciclo de "corpo a corpo" podemos ler de Raúl Brandão (vem à memória o Húmus de Herberto Helder, que também o leu) este pensamento:
" Afigura-se-me que estes seres estão encerrados / num invólucro de pedra: talvez queiram falar, / talvez não possam falar".
Sem ir agora reler Brandão, transito para os seres - todos eles seres de pensamento e palavra buscada - que são os poemas. Os poemas, encerrados nas palavras-pedra, que o poeta tem de abrir, para que possam voar, essas palavras que ele busca no intervalo do "querer e poder ou não poder".
As referências à materialidade do corpo, o encontro, o sofrimento, a ausência e a memória, sublinham ambiguamente ora o desejo ora o apagamento. O ciclo tem 29 poemas e ao percorrê-los, devagar, adivinhamos a ideia do terreal em oposição ao celestial, muito ao gosto do que seria o imaginário da Pedra alquímica, que também Helder muito bem conheceu. A terra é a alma do poeta feita poema, por palavras pedras que se abriram, como os alquimistas abriam o "ovo alquímico" : húmus que se alimenta e alimenta a Vida.
Adiante, a abrir novo ciclo, "corpo e floração" temos Vergílio Ferreira em epígrafe:
"Regresso a mim, ao meu corpo distinto e classificável, onde todo o milagre aconteceu. E pergunto-me, suspenso, como foi possível..."
(V.F.,Invocação ao meu corpo)
Continua presente a reflexão sobre o corpo, o seu mistério, num ciclo de 18 poemas.
O primeiro dá o tom, uma chave parcial para o que se vai seguir:
1.
um rosto de pedra
onde se escreve a cinzel
a sua forma quase humana.
medimos o ritmo dos batimentos
para assegurar a necessidade da espécie:
animal bicho
que se pensa e reflecte.
(p.38)
A chave reside nesta imagem final de um animal bicho que se pensa (tem consciência de si, ou procura ter ) e reflecte. Vergílio, o nosso grande escritor existencialista, é o que faz, pela permanente revisitação da consciência, de si e dos outros, na esfera de um mundo que é real e ficcionado, ao mesmo tempo. Mas em que o real, na sua crueza, permanece. O mesmo leio nos pemas deste ciclo: uma realidade em que o imaginário é mais despido, se torna mais crú, o corpo é ferida e sangra, atravessando o leito das palavras ( nos poemas finais, 17 e 18). Herberto Helder, e não apenas Vergílio, passou também por aqui: a ferida, a nomeação evidente, que banaliza o discurso, o sangue que talvez redima, ou não, mas que entretanto liberta.
No último ciclo, "labirintos", escolhe-se Gonçalo M. Tavares e uma citação com o seu quê de Kafka, perdido nos caminhos para o célebre Castelo:
"Não se vai a nenhum lado por muitos lados, ou:
há muitos caminho para não se ir a lado nenhum:
eis o labirinto".
Eis a lição: um só caminho, uma coerência feita (quem sabe se de pedra, novamente, da sabedoria de matéria sublimada) que conduzirá não à encruzilhada de Borges, mas à intimidade resguardada. Sendo filósofo, como diz, o nosso poeta há de ter lido Wittgenstein, e o célebre aforismo: " wovon man nicht sprechen kann, darueber muss man schweigen". Devemos calar aquilo de que não podemos de falar.
Ou então, quem sabe, o dramaturgo Valère Novarina, que o contradiz, afirmando: " ce dont on ne peut parler, c'est cela qu'il faut dire". É preciso dizer aquilo de que não se pode falar...
Entre uma reflexão e outra, o caminho de cada poeta, na sua busca, na sua perplexidade e interrogação.
São 26 os poemas, alguns próximos da condensação dos Haikai, outros mais ampliados, na mesma afirmação do corpo que se interpela, o do outro, ora feito matéria ora quase rosa mística de Dante.
Por todos sopra um vento de delírio, precisamente o que perturbava Platão, na sua cidade perfeita: daí que expulsasse os poetas...
O lugar do poeta é o lugar da palavra. Daqui não pode fugir.
Não falarei muito mais, agora de Sombras Mortas entre os Dedos (2015).
São como balanço, estas sombras, uma continuação de caminhos sem adeus, a busca será de um só caminho, como já se anunciara.
A escrita teve o seu tempo, e continua a ter: um tempo de regresso, de releitura de alguns, os mais amados, como é H.H. e de tentativa de diálogo sempre em aberto. Porque a voz dos poetas nos interpela e obriga a resposta que nos saia da alma, e não da moda.
A palavra em aberto atravessa as insónias felizes: nessa falha de sono falarão os mitos, os arquétipos, as pulsões mais ocultas do nosso inconsciente.
Sublinho especialmente a evocação feita a H.H. nos poemas 26 e 27 (pps. 36, 37).
A Casa de H.H.
fico a olhar a tua infância.
nas têmporas a violência discreta das flores
e as leis da tua sina:
uma morte simples.
uma cosmogonia,
palavras para a transformação do ouro.
música dionisíaca
ou
a possível construção do mundo
na beleza dionisíaca das mães.
Serão as sombras, escapando entre os dedos, aflorando à eterna consciência de ser, de ter sido, em algum momento mais perfeito, ainda que inacabado, e de continuar a ser para todo o sempre. Um sempre que se projecta no Tempo, o que me faria trazer à baila o célebre tratado de Heidegger, sobre O Ser e o Tempo...
No poema 27,
"o peixe de H.H."descobrimos a releitura atenta:
um peixe emerge
no frágil líquido das palavras.
e espero
impacientemente
a sua natural transmutação de côr.
criatura extinta
que nasce do excesso demiúrgico
das tuas mãos.
A imagem da transmutação da côr é alquímica, como a propósito dos dois peixes, o da alma e o do espírito, podemos descobrir lendo o tratado de Lambsprinck (século XIV ), La Pierre Philosophale, na sua Primeira figura. A transmutação terá lugar quando espírito (princípio masculino) e alma (princípio feminino) se fundirem: " O mar é o Corpo, e os dois peixes, o Espírito e a Alma".
Dir-se-á que o excesso, e a impaciência, não são atributos naturais de um alquimista: mas são os dos poetas, buscando, como Rimbaud ou Lautréamont, a perfeição invasiva, a "Iluminação" do corpo entregue ao ouro dos místicos que em cada poeta se pode recuperar.
CORPO:LABIRINTOS (2009-2012) ed. Licorne
e SOMBRAS MORTAS ENTRE OS DEDOS (Apuro edições, 2015)
Chegaram-me do Funchal, por estes dias, em que houve um encontro sobre a Obra de Herberto Helder, que tem deixado marca em muitos dos poetas contemporâneos.
Como Pessoa, não se pode fugir à marca de Herberto Helder, que quando releio me apetece situar entre Lautréamont e Rimbaud, ou resultando de uma fusão intensa de ambos.
O autor apresenta-se como um professor de filosofia que às vezes escreve. E é quanto basta, diz, o resto pouco importa.
Na verdade importa, porque publica o que escreve, adivinhando que cada livro ajuda a uma viagem, que é de muitos caminhos, os dele e os dos seus leitores.
Como também me aconteceu a mim, quando publiquei num site on line os meus poemas de OUTONAIS (ed. blurb, 2011) falta no livro de Eduardo o Índice...e um índice ajuda muito a quem deseja escolher, e escrever sobre este ou aquele poema...
Reparei nas epígrafes, que são sempre um subtil "indicador" de leitura e vou começar por aí: A iniciar o ciclo de "corpo a corpo" podemos ler de Raúl Brandão (vem à memória o Húmus de Herberto Helder, que também o leu) este pensamento:
" Afigura-se-me que estes seres estão encerrados / num invólucro de pedra: talvez queiram falar, / talvez não possam falar".
Sem ir agora reler Brandão, transito para os seres - todos eles seres de pensamento e palavra buscada - que são os poemas. Os poemas, encerrados nas palavras-pedra, que o poeta tem de abrir, para que possam voar, essas palavras que ele busca no intervalo do "querer e poder ou não poder".
As referências à materialidade do corpo, o encontro, o sofrimento, a ausência e a memória, sublinham ambiguamente ora o desejo ora o apagamento. O ciclo tem 29 poemas e ao percorrê-los, devagar, adivinhamos a ideia do terreal em oposição ao celestial, muito ao gosto do que seria o imaginário da Pedra alquímica, que também Helder muito bem conheceu. A terra é a alma do poeta feita poema, por palavras pedras que se abriram, como os alquimistas abriam o "ovo alquímico" : húmus que se alimenta e alimenta a Vida.
Adiante, a abrir novo ciclo, "corpo e floração" temos Vergílio Ferreira em epígrafe:
"Regresso a mim, ao meu corpo distinto e classificável, onde todo o milagre aconteceu. E pergunto-me, suspenso, como foi possível..."
(V.F.,Invocação ao meu corpo)
Continua presente a reflexão sobre o corpo, o seu mistério, num ciclo de 18 poemas.
O primeiro dá o tom, uma chave parcial para o que se vai seguir:
1.
um rosto de pedra
onde se escreve a cinzel
a sua forma quase humana.
medimos o ritmo dos batimentos
para assegurar a necessidade da espécie:
animal bicho
que se pensa e reflecte.
(p.38)
A chave reside nesta imagem final de um animal bicho que se pensa (tem consciência de si, ou procura ter ) e reflecte. Vergílio, o nosso grande escritor existencialista, é o que faz, pela permanente revisitação da consciência, de si e dos outros, na esfera de um mundo que é real e ficcionado, ao mesmo tempo. Mas em que o real, na sua crueza, permanece. O mesmo leio nos pemas deste ciclo: uma realidade em que o imaginário é mais despido, se torna mais crú, o corpo é ferida e sangra, atravessando o leito das palavras ( nos poemas finais, 17 e 18). Herberto Helder, e não apenas Vergílio, passou também por aqui: a ferida, a nomeação evidente, que banaliza o discurso, o sangue que talvez redima, ou não, mas que entretanto liberta.
No último ciclo, "labirintos", escolhe-se Gonçalo M. Tavares e uma citação com o seu quê de Kafka, perdido nos caminhos para o célebre Castelo:
"Não se vai a nenhum lado por muitos lados, ou:
há muitos caminho para não se ir a lado nenhum:
eis o labirinto".
Eis a lição: um só caminho, uma coerência feita (quem sabe se de pedra, novamente, da sabedoria de matéria sublimada) que conduzirá não à encruzilhada de Borges, mas à intimidade resguardada. Sendo filósofo, como diz, o nosso poeta há de ter lido Wittgenstein, e o célebre aforismo: " wovon man nicht sprechen kann, darueber muss man schweigen". Devemos calar aquilo de que não podemos de falar.
Ou então, quem sabe, o dramaturgo Valère Novarina, que o contradiz, afirmando: " ce dont on ne peut parler, c'est cela qu'il faut dire". É preciso dizer aquilo de que não se pode falar...
Entre uma reflexão e outra, o caminho de cada poeta, na sua busca, na sua perplexidade e interrogação.
São 26 os poemas, alguns próximos da condensação dos Haikai, outros mais ampliados, na mesma afirmação do corpo que se interpela, o do outro, ora feito matéria ora quase rosa mística de Dante.
Por todos sopra um vento de delírio, precisamente o que perturbava Platão, na sua cidade perfeita: daí que expulsasse os poetas...
O lugar do poeta é o lugar da palavra. Daqui não pode fugir.
Não falarei muito mais, agora de Sombras Mortas entre os Dedos (2015).
São como balanço, estas sombras, uma continuação de caminhos sem adeus, a busca será de um só caminho, como já se anunciara.
A escrita teve o seu tempo, e continua a ter: um tempo de regresso, de releitura de alguns, os mais amados, como é H.H. e de tentativa de diálogo sempre em aberto. Porque a voz dos poetas nos interpela e obriga a resposta que nos saia da alma, e não da moda.
A palavra em aberto atravessa as insónias felizes: nessa falha de sono falarão os mitos, os arquétipos, as pulsões mais ocultas do nosso inconsciente.
Sublinho especialmente a evocação feita a H.H. nos poemas 26 e 27 (pps. 36, 37).
A Casa de H.H.
fico a olhar a tua infância.
nas têmporas a violência discreta das flores
e as leis da tua sina:
uma morte simples.
uma cosmogonia,
palavras para a transformação do ouro.
música dionisíaca
ou
a possível construção do mundo
na beleza dionisíaca das mães.
Serão as sombras, escapando entre os dedos, aflorando à eterna consciência de ser, de ter sido, em algum momento mais perfeito, ainda que inacabado, e de continuar a ser para todo o sempre. Um sempre que se projecta no Tempo, o que me faria trazer à baila o célebre tratado de Heidegger, sobre O Ser e o Tempo...
No poema 27,
"o peixe de H.H."descobrimos a releitura atenta:
um peixe emerge
no frágil líquido das palavras.
e espero
impacientemente
a sua natural transmutação de côr.
criatura extinta
que nasce do excesso demiúrgico
das tuas mãos.
A imagem da transmutação da côr é alquímica, como a propósito dos dois peixes, o da alma e o do espírito, podemos descobrir lendo o tratado de Lambsprinck (século XIV ), La Pierre Philosophale, na sua Primeira figura. A transmutação terá lugar quando espírito (princípio masculino) e alma (princípio feminino) se fundirem: " O mar é o Corpo, e os dois peixes, o Espírito e a Alma".
Dir-se-á que o excesso, e a impaciência, não são atributos naturais de um alquimista: mas são os dos poetas, buscando, como Rimbaud ou Lautréamont, a perfeição invasiva, a "Iluminação" do corpo entregue ao ouro dos místicos que em cada poeta se pode recuperar.
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