Rita Ferro, Veneza Pode Esperar (ed. LeYa, 2013)
Trata-se de um Diário: Diário I, vem na capa.
Há muito tempo que eu andava à procura de um livro que me absorvesse por completo, que me fizesse ler sem conseguir parar, puro prazer de ler e de seguir em frente. Preciso de distracção, mas distracção com boa escrita é a única que suporto. Não consigo ler má literatura. Ora acontece que o livro que abri não é de distracção, é um livro excelente, tanto do ponto de vista do que se entenda por diário como de boa literatura (valha o termo o que valer....) ou mesmo de literatura para consumo ligeiro.
Não o li todo num dia, mas li-o todo em dois dias. E sempre de seguida, sem aborrecimento em momento algum, encontrando, para além da escrita rápida, descomplexada e segura - seguríssima nas escolhas, nas entradas dos dias e das datas ( o que também informa sobre os tempos e ritmos da autora) nos comentários à parte, nas interrupções do quotidiano (um escritor tem um quotidiano...), nos pormenores só aparentemente dispensáveis, (nada ali do que vai escrito é dispensável, a todos nos toca, na nossa humanidade, naquilo que simplesmente somos (ou não) em cada situação, homens e mulheres de qualquer idade todos ali nos revemos ).
Claro, tenho consciência de que para além do espírito (wit sem ofensa para quem não distinga a subtileza do inglês) da autora, seu génio, sua ironia, perversa ou sincera, será mais fácil para alguém da minha idade, 74 anos, que atravessou o salazarismo e conheceu bem os méritos de António Ferro, o SNI e Amália antes de promovida a deusa ímpar, a tentativa de trazer para Portugal os grandes do Pen Internacional (algo que pouco se refere)a poesia e o carácter de Fernanda de Castro, a quem o José Carlos Ary dos Santos chamava a tia Fernanda - enfim esta sociedade a que me refiro e Rita Ferro tão bem descreve, de pena ligeira, ali está toda no seu diário e para quem não tenha hoje idade de saber a memória é útil, além de ter sido boa para quem a viveu: boas famílias, de boas casas ( alguma de aristocracia antiga e firmada, outra mais recente, mas com a aristocracia, que também o era, das fortunas grandes e estáveis).
Segue-se a fase seguinte, a de uma nova estrutura social que chega aos sopetões (gostamos de dizer sem sangue, mas houve grandes sofrimentos) e altera sobretudo comportamentos sociais e religiosos (em grande parte já o eram pouco); Rita conta como casou e descasou três vezes, como as heranças com as mortes na família se foram desfazendo, como viveu à mesma, ora mais feliz ora menos, foi sendo mãe como hoje é avó (aqui entra essa empatia humana que a aproxima de qualquer de nós): contudo não se perde nunca o que ainda hoje é verdade indiscutível, a esfera a que se pertence, de berço nascido, deixa marca indelével, e é bom, diria mesmo que é óptimo, que assim seja. Rita Ferro não renega os seus, não se renega a si mesma, como em alguns diários de grandes autores que não vou citar, vi acontecer. Há diferença entre arte e carácter e confesso que nesta leitura me senti atraída por ambas as qualidades, a da escrita e a do carácter. E como num post a dimensão tem de ser reduzida, abordo então a última das três fases que nas descrições do diário se descobre: a da actualidade, que no caso da Rita é a dos filhos, e ela tão bem deixa entender quando fala da surpresa da separação do seu filho mais velho.
É que havia 3 sociedades num Portugal que foi evoluindo aos sacões: o do Antigamente (e ali estão os avós) o do célebre PREC do 25 de Abril ( e ali está ela com os seus pais) e o do neo-post-25 de Abril, ou da União Europeia?(e aqui está ela com filhos e já com netos: como qualquer de nós, avós, também se ocupa deles quando os filhos precisam).
Num aparentemente simples diário, Rita, que ironicamente no título adia o passeio a uma Veneza sonhada (mas não sonhámos todos com Veneza, a dada altura? Wagner, Thomas Mann, outros, de Veneza viveram e de Veneza morreram....) - Rita faz-nos atravessar três momentos de um Portugal cujas "esferas" sociais entraram em mudança, para uns melhor, outros pior, -para todos diferente, como a vida.
E agora eu iria, na companhia de Jung, à substância mais oculta de uma vida que se expõe. Na idade em que está a autora, está no que Jung chamou de "meio da vida" - o que acontece por volta dos 50 anos. E é nesse meio da vida, nesse momento especial em que a pessoa, homem ou mulher, deixa de ser uma Alice caindo pelo poço, esse momento tão especial, é aqui vivido com plena interrogação, defrontando um real - mais do que uma realidade (essa é o quotidiano, segue sempre) em que se aguarda uma revelação que seja entendimento, o da plenitude do Ser.
Se ao longo das páginas se ironizou sem lágrimas pífias, sobre o Ter que se perde, eis que alternando com elas se vê ir chegando o momento de reflectir sobre o Ser que se tem, o ser que se é.
Apercebo-me de que até ler dois terços do livro o que mais me chamava a atenção era o modo como a autora nos trazia as três variedades de um Portugal social em modificação, ora para o melhor ora para o pior, mas também ultrapassado com a força de uma bonomia muito nossa. Chegada ao fim da leitura descubro algo mais e não menos importante: como a autora, na sua qualidade de portuguesa, que não esconde, antes se orgulha dela, nos oferece do mesmo modo, liberto e dadivoso, os três pilares do que foi e é a sua vida, de mulher, de mãe, de avó. Pilares de um edifício tão português, tão nosso, que é o edifício da Família, aqui por ela glorificado, quem sabe sem dar por isso?
Difícil dizer mais.
Aguardo a continuação, se houver. Mas se não houver, para mim aqui tudo ficou dito, contido como num ovo. Só Rilke, nos célebres Cadernos de Malte Laurids Brigge me entusiasmou tanto a ler.