(Do You Tube estas imagens que não são da peça que comento, enquanto não houver outras para ver)
Shakespeare no Teatro São Luiz, pela mão de Beatriz Batarda.
Belíssima tradução de Daniel Jonas, que é ele mesmo poeta, e talvez por isso tenha dado à sua versão um sabor ao mesmo tempo poético e actual ainda que sem nunca trair o espírito do texto do grande dramaturgo.
Estamos perante uma comédia de teor mais pastoril do que senhorial, embora a acção envolva aristocratas que por razões de confronto de poder se degladiam até que surge a reconciliação final, pela via amorosa, como é de bom tom.
Refugiados numa floresta onde tudo e todos se cruzam, Shakespeare tira partido do travesti de uma das heroínas, que foge com a prima e se esconde vestida de rapaz, o que proporciona, no enredo amoroso, trocadilhos divertidos, mas sobretudo exige da actriz uma performance que na encenação de Beatriz Batarda para o Teatro São Luiz é excepcionalmente e subtilmente conseguida.
Numa nudez de palco evocadora do espaço do antigo Globe, permitindo ver o que se passa mas definindo bem a marcação, vamos assistindo ao longo do tempo ao modo inspirado, divertido e sempre muito centrado do "desenho"e construção das figuras, dos caracteres intervenientes.
Os figurinos são de José António Tenente, e na verdade a elegância da côr e do corte, quando surgem as duas beldades, Carla e Leonor, enchem o palco de brilho.
Carla Maciel, no papel de Rosalinda/Ganymedes, faz um exercício primoroso de encanto semi-andrógino, algo autoritária e masculina enquanto mulher, e algo hesitante e feminina enquanto rapaz, numa confusão / contradição de sentimentos muito ao gosto de Shakespeare.
Os figurinos são de José António Tenente, e na verdade a elegância da côr e do corte, quando surgem as duas beldades, Carla e Leonor, enchem o palco de brilho.
Carla Maciel, no papel de Rosalinda/Ganymedes, faz um exercício primoroso de encanto semi-andrógino, algo autoritária e masculina enquanto mulher, e algo hesitante e feminina enquanto rapaz, numa confusão / contradição de sentimentos muito ao gosto de Shakespeare.
De excepcional rigor e inventividade é forçoso, nesta encenação, destacar a figura do Bobo, no desempenho de Luisa Cruz. Uma composição genial de um personagem em cuja boca surge a crítica, o bom senso ou a paródia, em doses medidas, e o desbocamento também próprio dessas figuras vivendo entre o grotesco e o sábio e que não faltavam a este género de concepção do entretenimento da comédia shakespeareana.
Falei de desenho, colorido no figurino, paródico na coroa, mas sobretudo acutilante, numa gestualidade e dicção perfeitas, enriquecendo o texto, já de si soberbo do dramaturgo inglês, na tradução de D.J.
Quanto a Sara Carinhas, a sua juventude e graça esvoaçante, diz tudo. É já uma grande actriz.
Faltaria uma palavra para o desempenho dos actores, em quem redescubro carreiras de há muito conhecidas e que ali se entregam, em total companheirismo a um trabalho que é também musical, regido pela batuta ao mesmo tempo rigorosa e amiga de Beatriz Batarda.
Na grelha dramatúrgica aplicada pela encenadora ao texto /versão livre de Daniel Jonas, estão presentes, e bem, os grandes temas favoritos de Shakespeare, Esse é o genio de um grande encenador: transformar sem ferir o fundamento da "lição" que o autor deseja transmitir.Assim vemos, logo de início, ser apresentado no diálogo entre as duas primas, o jogo de opostos de Natureza/ Fortuna (destino). Grande tema que se reencontra ampliado na última peça que Shakespeare escreveu, The Tempest, onde a Natureza é expressa por Caliban, e a Fortuna, ainda que poderosamente manipulada, por Próspero, o mago exilado.
Será frequentemente pela boca do Bobo, TOCASPARTES, numa recriação ao mesmo tempo divertida, como competia aos bobos da Côrte, e sábia (recuperando o antigo Coro dos clássicos gregos) que o comentário sobre a acção irá sendo feito. Trocadilhos, mas não arbitrários, pontuam as intervenções, de dimensão crítica aguda:
"É de lamentar que os tolos não falem sabiamente das acções tolas dos sábios...", eis apenas um dos muitos exemplos, de novo no âmbito do engenhoso jogo de opostos que se descobre nesta como noutras peças, e que suportam a estrutura do enredo, as situações em que se envolvem os personagens, e o desfecho final.
E vou agora a um dos aspectos mais interessantes e sedutores da peça: o imaginário animal com que são sublinhados sentimentos e intervenções.
Assim LE BEAU, é comparado a um pombo, carregado de notícias;e Célia tem logo um dito não menos expressivo:
"em cheio na cabeça do prego", isto é, são trazidas, as notícias, sem mais subterfúgios de linguagem, sem maneirismos inúteis.
Característica de linguagem, que também define o seu carácter, será o modo com Rosalinda se experime: já se avançou na acção, estamos na cena 3 do Acto I, assistiu-se à luta do gignate do Duque contra os jovens espoliados, e desenha-se uma paixão ainda muda, que Rosalinda define à prima sem palavras, "Nem uma para atirar a um cão".
Adiante, quando o severo Duque decide expulsar a jovem Célia, Rosalinda (será ela a força condutora da acção) exclama, recusando ficar sem a amiga de sempre:
"Aonde que que vamos somos cisnes/ Como os de Juno, um par inseparável!"
Afirmação que permite concluir com alegria, na última cançaõ da peça que ali mesmo, no casamento dos pares, a deusa Juno será finalmente coroada.
No entretanto fugirão para a floresta, Rosalinda, mais esguia e masculina de porte, disfarçada de homem - serão irmã e irmão, criando assim um novo momento de diversão e suspense, mantido quase até ao fim, como nos contos do género. Mudam de roupa, mudam de nome e Rosalinda será Ganymedes, o amado dos deuses (Júpiter, esposo de Juno, neste caso...)
Não me demorarei muito nos detalhes, mas chamo a atenção para a floresta, descrita com seus rumores, seus regatos,carvalhos seculares (Jung veria aqui uma descida, ou melhor um recolhimento que força ao encontro da alma consigo mesma), o cervo (animal de sacrifício) cujo sofrimento desperta as lágrimas de quem observa a matança. Um novo sentimento é aqui introduzido, o da compaixão pelo sofrimento, do veado, como de JACQUES, - o que irá adoçar a severidade do Duque ali presente.
Mudança de Acto e Tocaspartes, o Bobo fiel, toma o seu diálogo de jocosas observações, e eis-nos de novo num reino animal domesticado: ele recorda que "beijava as tetas da da vaca que a sua bela ordenhava...e explica como lhe foi oferecer ervilhas, para que as usasse(comesse) maliciosamente. Na sua boca amar é comer pasto...e não por acaso, a seguir é mesmo de rebanhos e de pasto à venda que se falará, num lugar que os tem à venda.
Assim se foi misturando o campo na floresta, o amor na ocultação ou na perseguição,e história nos vai prendendo, cena a cena.
Mas há mais, não se trata aqui apenas de uma versão pastoril de um conto antigo.
Falei de desenho, colorido no figurino, paródico na coroa, mas sobretudo acutilante, numa gestualidade e dicção perfeitas, enriquecendo o texto, já de si soberbo do dramaturgo inglês, na tradução de D.J.
Quanto a Sara Carinhas, a sua juventude e graça esvoaçante, diz tudo. É já uma grande actriz.
Faltaria uma palavra para o desempenho dos actores, em quem redescubro carreiras de há muito conhecidas e que ali se entregam, em total companheirismo a um trabalho que é também musical, regido pela batuta ao mesmo tempo rigorosa e amiga de Beatriz Batarda.
Na grelha dramatúrgica aplicada pela encenadora ao texto /versão livre de Daniel Jonas, estão presentes, e bem, os grandes temas favoritos de Shakespeare, Esse é o genio de um grande encenador: transformar sem ferir o fundamento da "lição" que o autor deseja transmitir.Assim vemos, logo de início, ser apresentado no diálogo entre as duas primas, o jogo de opostos de Natureza/ Fortuna (destino). Grande tema que se reencontra ampliado na última peça que Shakespeare escreveu, The Tempest, onde a Natureza é expressa por Caliban, e a Fortuna, ainda que poderosamente manipulada, por Próspero, o mago exilado.
Será frequentemente pela boca do Bobo, TOCASPARTES, numa recriação ao mesmo tempo divertida, como competia aos bobos da Côrte, e sábia (recuperando o antigo Coro dos clássicos gregos) que o comentário sobre a acção irá sendo feito. Trocadilhos, mas não arbitrários, pontuam as intervenções, de dimensão crítica aguda:
"É de lamentar que os tolos não falem sabiamente das acções tolas dos sábios...", eis apenas um dos muitos exemplos, de novo no âmbito do engenhoso jogo de opostos que se descobre nesta como noutras peças, e que suportam a estrutura do enredo, as situações em que se envolvem os personagens, e o desfecho final.
E vou agora a um dos aspectos mais interessantes e sedutores da peça: o imaginário animal com que são sublinhados sentimentos e intervenções.
Assim LE BEAU, é comparado a um pombo, carregado de notícias;e Célia tem logo um dito não menos expressivo:
"em cheio na cabeça do prego", isto é, são trazidas, as notícias, sem mais subterfúgios de linguagem, sem maneirismos inúteis.
Característica de linguagem, que também define o seu carácter, será o modo com Rosalinda se experime: já se avançou na acção, estamos na cena 3 do Acto I, assistiu-se à luta do gignate do Duque contra os jovens espoliados, e desenha-se uma paixão ainda muda, que Rosalinda define à prima sem palavras, "Nem uma para atirar a um cão".
Adiante, quando o severo Duque decide expulsar a jovem Célia, Rosalinda (será ela a força condutora da acção) exclama, recusando ficar sem a amiga de sempre:
"Aonde que que vamos somos cisnes/ Como os de Juno, um par inseparável!"
Afirmação que permite concluir com alegria, na última cançaõ da peça que ali mesmo, no casamento dos pares, a deusa Juno será finalmente coroada.
No entretanto fugirão para a floresta, Rosalinda, mais esguia e masculina de porte, disfarçada de homem - serão irmã e irmão, criando assim um novo momento de diversão e suspense, mantido quase até ao fim, como nos contos do género. Mudam de roupa, mudam de nome e Rosalinda será Ganymedes, o amado dos deuses (Júpiter, esposo de Juno, neste caso...)
Não me demorarei muito nos detalhes, mas chamo a atenção para a floresta, descrita com seus rumores, seus regatos,carvalhos seculares (Jung veria aqui uma descida, ou melhor um recolhimento que força ao encontro da alma consigo mesma), o cervo (animal de sacrifício) cujo sofrimento desperta as lágrimas de quem observa a matança. Um novo sentimento é aqui introduzido, o da compaixão pelo sofrimento, do veado, como de JACQUES, - o que irá adoçar a severidade do Duque ali presente.
Mudança de Acto e Tocaspartes, o Bobo fiel, toma o seu diálogo de jocosas observações, e eis-nos de novo num reino animal domesticado: ele recorda que "beijava as tetas da da vaca que a sua bela ordenhava...e explica como lhe foi oferecer ervilhas, para que as usasse(comesse) maliciosamente. Na sua boca amar é comer pasto...e não por acaso, a seguir é mesmo de rebanhos e de pasto à venda que se falará, num lugar que os tem à venda.
Assim se foi misturando o campo na floresta, o amor na ocultação ou na perseguição,e história nos vai prendendo, cena a cena.
Mas há mais, não se trata aqui apenas de uma versão pastoril de um conto antigo.
Nesta peça se desenvolve toda uma teoria poética e dramatúrgica, em que se afloram os males e as alegrias do amor, com uma adjectivação que no rolar do discurso sempre nos cativa e surpreende (não é por acaso que a obra de Shakespeare atravessou os séculos...).
Não menos interessante é a célebre afirmação de que todo o mundo é um palco, (Acto II, cena VII), reflexão cara a Shakespeare, feita em Macbeth, divisa inscrita no frontão do Globe, erguido em 1599, e retirada de Petrónio:
totus mundus agit histrionem.
Segue-se a divisão das idades: pequena infância, infância, adolescência, juventude, maturidade, velhice, e decrepitude (senilidade).
Quase passa despercebido a referência à música das esferas, outro dos grandes tópicos do teatro de Shakespeare, bebido nos temas de Platão, entre eles o da "Grande Cadeia de Ser". Quando harmoniosa, a música não é dissonante. Mas se algo se rompe na união, a dissonância surge, e manifesta-se em zangas, atropelos, sevícias, guerras, traições...mas deixemos este ponto para outra altura, marcando apenas aqui o diálogo entre o PRIMEIRO SENHOR e o DUQUE SENIOR, na cena 7 do Acto II.
Quase passa despercebido a referência à música das esferas, outro dos grandes tópicos do teatro de Shakespeare, bebido nos temas de Platão, entre eles o da "Grande Cadeia de Ser". Quando harmoniosa, a música não é dissonante. Mas se algo se rompe na união, a dissonância surge, e manifesta-se em zangas, atropelos, sevícias, guerras, traições...mas deixemos este ponto para outra altura, marcando apenas aqui o diálogo entre o PRIMEIRO SENHOR e o DUQUE SENIOR, na cena 7 do Acto II.
Segue-se uma oportuna reflexão sobre as idades da vida, na vida que é um palco, que pode englobá-las a todas. Assim , em pleno espaço do riso ou do sorriso da comédia, uma chamada de atenção, e uma dolorosa observação:
" E eis a cena final/que põe termo ao decurso desta estranha história/regressa-se à infância, criança recém-nascida/sem memória, sem dentes, sem olhos, sem gosto, sem nada".
Nos Actos III e IV pulsa o centro da acção amorosa, a que o disfarce de Rosalinda como Ganymedes confere uma subtil perversão, desenvolve-se com Febe e Sílvio e Rosalinda pelo meio a eterna história de quem ama aquele que não ama e ama outro (como num célebre poema brasileiro...) e pelo meio se ironiza sobra o modo de amor cortês, com seus rituais, numa floresta e em tais circunstâncias, difíceis de cumprir. De novo Rosalinda, na sua expressão irónica e directa, alude a um "caracol" como melhor amado do que Orlando.Segue-se, depois de uma doutrinação sobre o amor cortês, a reflexão, mais céptica e amarga, sobre a realidade do amor dos homens, efémero, como tudo na vida. Fala de si como "galo raçudo", como "papagaio", como "macaco", como "hiena" - denegrindo a imagem do que pode ser uma mulher, se desleixada pelo seu amado, seguindo na veia do bestiário shakespeariano, já referido acima.
Nos Actos III e IV pulsa o centro da acção amorosa, a que o disfarce de Rosalinda como Ganymedes confere uma subtil perversão, desenvolve-se com Febe e Sílvio e Rosalinda pelo meio a eterna história de quem ama aquele que não ama e ama outro (como num célebre poema brasileiro...) e pelo meio se ironiza sobra o modo de amor cortês, com seus rituais, numa floresta e em tais circunstâncias, difíceis de cumprir. De novo Rosalinda, na sua expressão irónica e directa, alude a um "caracol" como melhor amado do que Orlando.Segue-se, depois de uma doutrinação sobre o amor cortês, a reflexão, mais céptica e amarga, sobre a realidade do amor dos homens, efémero, como tudo na vida. Fala de si como "galo raçudo", como "papagaio", como "macaco", como "hiena" - denegrindo a imagem do que pode ser uma mulher, se desleixada pelo seu amado, seguindo na veia do bestiário shakespeariano, já referido acima.
A comédia, que é vida, continua, e no Acto V, no Epílogo, que se constitui em grande discurso de doutrina e inovação de género, se abre espaço à mútua entrega feliz de homens e mulheres, se assim quiserem..