O livro abre com um poema recente, do ciclo intitulado
COLAGENS:
O rio corre
da fonte seca
como se rio
de fonte morta
chegasse ao mar
quebrada a ponte
das águas turvas
na torva treva
que o ramo quebra
onde pousassem
aves que houvesse
se ali cantassem
vindas do monte
que o rio leva
de engano em dano
por terra seca
ao mar sem praias
que corre e morre
sem vale ou serra
do mar à fonte
Apercebi-me numa primeira leitura de que havia aqui um eco pessoano, do seu melhor Ricardo Reis, na consciência plena e dolorosa de que no correr do rio seco da alma o próprio tempo se esvai e a vida perde o sentido.
Veja-se como os versos insistem no tempo condicional, o que adia para um talvez improvável ou um nunca mais o que poderia acontecer se alguma vez o rio, pleno, chegasse ao mar, ou mesmo o contrário, se o ímpeto do mar (aquele em que Freud via a pulsar do inconsciente) levasse a sua onda à fonte.
Estamos, nesta poesia de alma, de balanço de vida (sua e alheia) reflexão e distanciamento, perante a terre gaste dos cavaleiros do Graal, ou de uma Waste Land de um T.S.Eliot que Helder Macedo, como todos os da sua geração, conheceram bem.
Neste poema de abertura de um ciclo emblemático as imagens da água (fonte, mar) da terra (também ela seca) e das aves que não cantam (ar) não permitem a ampliação para algo de mais completo e feliz, pois água, terra, ar são neste caso elementos que "regridem", são o reverso de um imaginário alquímico de possível sublimação. Helder Macedo, contudo, não omite a referência a um outro elemento, o poderoso fogo - neste caso a chama que já ardia em Camões, do invisível amor.
O poema 3 deixa a pergunta: como dizer, como exprimir, o que mal se conhece:
Na verdade não sei
O ar é o mesmo
as águas iguais
na terra sem solo
quando o sol é grande
e as aves caídas
voaram do chão
Mas o que eu sei tão mal
como o direi?
Na verdade já está dizendo: não é do exterior que se trata, é da consciência desse Ungrund onde se formam as ideias-força, as imagens arquetípicas, as poeiras do universo da alma, que se trata. O sol (finalmente o fogo) é grande.
Relembrando Valère Novarina, é precisamente "o que não se pode dizer que se deve dizer". Mas um poeta lúcido, como neste caso de Helder, será que se deixa seduzir por este desafio?
A resposta é positiva, e vem no último poema do ciclo, que anuncia um recomeço:
...
sendo assim
recomecemos
havia aqui uma fonte
e árvores
e sombras
as aves todas cantavam de amor
porque tudo é só como parece
e é sem cura
O canto de amor das aves é finalmente redentor, só porque existe. O olhar e o dizer, como em Alberto Caeiro, bastam-se na simplicidade do existir: ser e não o saber...
E assim se descobre e se aceita neste ciclo um devir-eu, um devir-outro, um devir-só que Pessoa tão profundamente (re)conheceu.