Monday, July 19, 2010

Princesas




Falando-se tanto hoje em dia em modelos de educação, achando uns que a jovens adolescentes de doze-treze anos, por exemplo, é mais útil dar a ler um manual de instruções de uma qualquer máquina do que um poema, quero eu, defendendo os que são de opinião contrária, trazer um exemplo de experiência pessoal.
Tendo lido em voz alta o poema de Pessoa Eros e Psique ( sei bem que tem múltiplas interpretações e das iniciáticas me ocupei noutros lugares, Universidade e não Escola Secundária) junto a ilustração feita por uma jovem na aula seguinte, que foi de desenho, depois de ouvir o poema
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante que viria
De além do muro da estrada.
...
A jovem fixou o que mais lhe interessava: a imagem dessa Princesa.
O resto do poema, que na realidade se ocupa da transformação e re-conhecimento do poeta enquanto cavaleiro que descobre a sua Anima arquetípica, como é óbvio não podia despertar o imaginário de uma criança (pois se até nos adultos esse entendimento muitas vezes é difícil...) cujos conhecimentos se prendem ainda aos desenhos de Walt Disney ou outros que pode ver no cinema.
Mas o importante é que, ao ouvir ler, uma imagem lhe surgiu, e depois a inspirou para o desenho da aula.
Falta o Cavaleiro, que ela pensa desenhar também. Um dia o fará.
Agora: dirão que também das instruções da máquina poderiam ter surgido imagens. Sim, mas num adulto, com humor, num criador que "desfizesse" as instruções, avariasse a máquina, a colocasse em estado de representação mais de banda desenhada moderna, ou post-moderna.
Há um tempo para tudo, e nesta idade em que se está ainda perto da infância, é crime não permitir que se goste e se sonhe com princesas: Pessoa deu o exemplo e já era um adulto.
Ele que teve em parte a sua infância perdida, quebrada pela vida, como dirá pela boca de Álvaro de Campos, soube sempre de como ser feliz na infância era importante.
E nós o que temos feito?
Temos apressado crescimentos empobrecedores que têm feito da Escola - lugar de privilégio por excelência - um espaço menos criador, menos feliz.

Thursday, July 15, 2010

Fernando Pessoa - José Gil


Aos estudiosos ( e também, por que não, aos simples curiosos) da obra de Fernando Pessoa, este pequeno volume de José Gil que nos tem habituado a leituras sóbrias, aparentemente simples mas sempre incisivas da criação em Fernando Pessoa.
Este devir-eu, esta forma de nos dizer de que modo, entre outros, Pessoa se foi encontrando a si mesmo - pelos caminhos múltiplos da sua própria obra - recolhe um conjunto de reflexões feitas a partir do Livro do Desassossego, da Correspondência de Ofélia-Pessoa, e da função do inconsciente da Sensação no poema Passagem das Horas.
Três ensaios, três leituras obrigatórias.
No meu caso, que sempre me apercebi da estruturação, da função e do peso do inconsciente na obra de Pessoa, é-me especialmente agradável, dezenas de anos depois, encontrar uma leitura que não é igual (nunca o poderia ser ) mas devolve a essa função da nossa psique o seu lugar na obra de um dos nossos maiores poetas.
Faltaria, mas não foi intenção do autor e a sua liberdade tem de ser respeitada, a referência ao papel que a paixão pelos conhecimentos esotéricos, iniciáticos, desempenhou, tanto na produção poética como na relação, que se viria a quebrar, com a sua namorada. Ofélia queria um casamento tradicional, filhos, família; Pessoa queria atingir, na Iniciação, o ponto mais elevado. Se o atingiu é segredo bem guardado - mas sabe-se que sonhou, sabe-se que estudou, aguardando um sinal..
Relembro, pois tem sido um trabalho de cuidadosa investigação, recolha e transcrição de inéditos do espólio, o volume X da edição crítica de Fernando Pessoa, sobre o Sensacionismo e outros ismos. (Mantenho, na citação, a escrita do original)
Num apontamento de 1914 declara o poeta que tomou a decisão de ser ele mesmo:
"Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser Eu, de viver á altura do meu mister, e, por isso, de desprezar a idéa do reclame, e plebêa sociabilização de mim, do Interseccionismo, reentrei de vez, de volta da minha viagem de impressões pelos outros, na posse plena do meu Genio e na divina consciência da minha Missão. Hoje só me quero tal qual meu caracter nato quer que eu seja, e meu Genio, com elle nascido, me impõe que eu não deixe de ser.
Attitude por attitude, escolher a mais nobre, a mais alta e a mais calma.Pose por pose, a pose de ser o que sou.
Nada de desafios á plebe, nada de girândolas para o riso ou a raiva dos inferiores. A superioridade não se mascara de palahaço; é de renuncia e de silencio que se veste
(...) Recobrei - ao sentir que podia e ia dominar o desejo intenso e infantil de 'lançar o interseccionismo' - a tranquila posse de mim.
Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci.
(...)
D'oravante vêr se estudo, trabalho, elaboro. As minhas angustias espirituais continuarão em muitos pontos; mas n'um cessaram, na busca de mim que, no amago de tudo, me trazia irrequieto porque não me encontrára.
Marinetti, tudo isso - o grau superior de clown, mais nada.
Associar-me menos com os outros.
Deus esteja comigo".

Mas não esqueçamos que se trata aqui de recolha de fragmentos soltos, ordenados, quando possível, por datas, e que logo noutros momentos a decisão que parecia definitiva é contrariada por outras propostas e reflexões filosóficas e estéticas que recuperam, com minúcia, o caminho aparentemente antes recusado.
Na sua ânsia de extrema liberdade tudo afinal deseja experimentar.
O poeta é de pensamento irrequieto, como ele próprio reconhece, e o seu desejo de tudo abarcar, tudo pensar, sentir e sistematizar, mais para si do que para os outros, cai em contradições que, embora despoletem momentos de genial criação, não lhe permitem levar até ao fim um modelo que se pudesse dizer coerente, completo e disponível na sua universalidade.
Os modelos teóricos de Pessoa são, no fundo, para uso próprio, exclusivo, - não terá nem poderia ter seguidores, e é isso que faz dele, entre outras coisas, o ser múltiplo e único que ele é.