No ano da morte de José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis.
Foi há bastante tempo, tinha acabado de ser lançado, com enorme sucesso, o Memorial do Convento.
Sentia-se que em Portugal um fôlego novo, algo messiânico, mas ao mesmo tempo lúcido na sua distância crítica, estava a animar as Letras. E o país precisava de uma tal animação, tal como as Letras de língua castelhana se tinham reanimado com Gabriel Garcia Marquez e os Cem Anos de Solidão.
A propósito de Saramago falava-se de um novo realismo fantástico na nossa prosa romanesca.
Ainda saboreando o prazer de discutir, no Pen Club, o Memorial, já José Saramago, à mesa connosco, o pequeno grupo que se reunia para jantar e falar de literatura, anunciava a sua nova obra, de que já tinha ideia formada e que nos resumiu, com a sua especial arte de contador. Porque ele era um magnífico contador de histórias e era um prazer ouvi-lo.
Era então Pessoa, e Ricardo Reis, e a narrativa do que seria o ano da sua morte, ele Reis que tinha apenas vivido num imaginário poético de alter-ego, de rebuscada heteronimia com laivos de filosofia esotérica.
Comprei o livro mal surgiu nas livrarias e tive pouco tempo depois a surpresa de um exemplar enviado pelo correio com gentil dedicatória .
Li nesta obra o prazer da invenção do detalhe, a minúcia que faltava na criação pessoana onde Reis era grego e vago, tão impalpável quanto os seus não menos vagos sentimentos, expressos de forma quase displicente, evitando o contacto, evitando a matéria e a materialização fosse do que fosse. Até as suas rosas o não eram: não picavam, como as de Rilke.
Saramago fez dele um homem, uma vida e não apenas uma obra.
Deu-lhe convívio com o próprio Fernando Pessoa, afinal eterno e verdadeiro criador, deu-lhe substância, sem lhe diminuir o mistério.
Para a contracapa o editor e o autor tinham escolhido, de Pessoa, a seguinte afirmação:
Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e do mês, mas tenho-os algures) no Porto, é médico, e está presentemente no Brasil., afirmação retirada de carta datada de 1935, que será o ano da sua morte.
A carta era mais uma das "enganadoras", regra geral destinadas a brincar com João Gaspar Simões, seu amigo, e outros possíveis admiradores da sua obra. Pessoa, na verdade, já tinha decidido, se vivesse, publicar na íntegra sob o seu próprio nome toda a obra atribuída aos vários heterónimos. Esta indicação de falsa data de nascimento - antes dele mesmo, que nasceu em 1888 - pedia o que Saramago fez de seguida:
para a mesma contracapa, escreveu então com idêntica ironia:
Ricardo Reis regressou a Portugal depois da morte de Fernando Pessoa.
E assim se lançará na aventura de um monumental romance, que termina com Fernando Pessoa a bater à porta de casa de Ricardo Reis:
Então bateram à porta. Ricardo Reis correu, foi abrir, já prontos os braços para recolher a lacrimosa mulher, afinal era Fernando Pessoa, Ah, é você, Esperava outra pessoa, Se sabe o que aconteceu, deve calcular que sim, creio ter-lhe dito um dia que Lídia tinha um irmão na Marinha, Morreu, Morreu. Estavam no quarto, Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, Ricardo Reis numa cadeira. Anoitecera por completo (...) Fernando Pessoa tinha as mãos sobre o joelho, os dedos entrelaçados, estava de cabeça baixa. Sem se mexer, disse,Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu tempo chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que só tinha para uns meses, Lembro-me, Pois é isso, acabaram-se.
Ricardo Reis subiu o nó da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa - de -cabeceira buscar The god of the labyrinth, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, Para onde é que você vai, Vou consigo, Devia ficar aqui à espera da Lídia, Eu sei que devia (...) E esse livro para que é, Apesar do tempo que tive não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se perde, lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse, mas mesmo assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de um enigma. Saíram de casa (...) Então vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.
Assim termina, de forma genial, a narrativa em que criador e criatura partem, ambos conhecedores de seu destino comum, vão lado a lado, Pessoa deixando o chapéu usual pois lá para onde iam não se usaria chapéu, mas Reis sabendo que o livro esse sim, ainda que de páginas ilegíveis, seria o companheiro perfeito: o livro de um Sem Tempo, para ser decifrado num próximo futuro que ali se construía, para Reis como para Saramago.
Nunca mais me esqueci de que foi pelo fim que Saramago contou que a ideia lhe tinha ocorrido. Já estava a trabalhar nela, começando pelo princípio, pela chegada de barco, com uma frase inicial muito semelhante e que fecharia o círculo, o ciclo de uma vida:
Aqui o mar acaba e a terra principia.
Que melhor exemplo poderia eu escolher para dedicar aos meus alunos de Escrita Criativa, neste fim de Semestre?
E como não repetir o que lhes disse na primeira aula?:
ler, ler muito, ler tudo e de todas as maneiras.