Um dos poemas franceses de Rilke (1875-1927) trouxe-me outros à memória, entre eles o célebre de Baudelaire, que fez do motivo da "Passante" um verdadeiro topos literário, como escreve Stephen Reckert a propósito dessa Passante e de várias outras, de Cesário, Pessoa, Sá-Carneiro no seu ensaio "A Passante e o Futuro do Passado" (em Fernando Pessoa, tempo. solidão. hermetismo, Moraes ed.,Lisboa, 1978).
Mas começo com Rilke:
La Passante d'Été
Vois-tu venir sur le chemin la lente, l'heureuse,
celle que l'on envie, la promeneuse?
Au tournant de la route il faudrait qu'elle soit
saluée par des beaux messieurs d'autrefois.
Sous son ombrelle, avec une grâce passive,
elle exploite la tendre alternative:
s'effaçant un instant à la trop brusque lumière,
elle ramène l'ombre dont elle s'éclaire.
Por comodidade usarei a bela tradução de Gabriela LLansol, ainda que discorde da tradução de Passante por Passeante.
Aquela que passa e que vemos passar não representa, como arquétipo, o mesmo que aquela que passeia. Mas respeito a liberdade poética da tradutora:
A Passeante de Verão
Já vês a lenta e feliz,
aquela que se inveja, a passeante?
Na dobra da estrada, importa que seja
saudada pelos belos senhores de antigamente.
Debaixo da sombrinha, com uma graça passiva,
vai fazendo render a suave alternativa:
por um instante apagando-se a luz demasiado viva,
volta a chamar a si a sombra que a ilumina.
No ciclo de poemas franceses transparece por um lado a experiência do tempo que Rilke viveu em Paris, secretariando o temível e ingrato Rodin, enquanto se absorvia na escrita da sua obra maior, ainda que pouco lida em comparação com as Elegias de Duíno ou os Sonetos a Orfeu: Os Cadernos de Malte Laurids Brigge. Aqui se funda uma experiência literária, uma técnica de narração inspirada e inovadora, que fornece em parte as bases do chamado movimento Modernista. A um espaço do presente, descrito com olhar minucioso, a contraposição de um tempo que é passado e só no dizer da escrita se actualiza.
Os Cadernos...cuja edição data de 1910, começaram a ser a ser escritos em 1907- 1908, a partir de notas de memórias e viagens e sobretudo da estadia em Paris.
Os amigos de que se rodeava eram grandes vultos da época: Rodin, Emile Verhaeren, André Gide, Romain Rolland. No salão de 1907 descobriu a obra de Cézanne, e como leitura de sempre encontrou em Paul Valéry, que traduziu para alemão, o seu guia e influência.
A Paris de Rilke era o museu do Louvre, o Jardin des Plantes e du Luxembourg, as ruas que percorria a pé ou contemplava de longe, a gente anónima, sofredora e pobre, em contraste com a élite da cultura. Em simultâneo o grande isolamento do trabalho. Foi para ele não a cidade das luzes da ópera, dos musicais ou do teatro, mas a cidade do trabalho e mais trabalho: nos primeiros volumes de poesia, e nas notas dos Cadernos.
Vejamos agora o belo poema de Baudelaire (1821-1867) como que fundador do motivo e do mito que por trás dele se esconde (do Belo passageiro, da Beleza efémera, da Poesia, em suma, no que tem de inatingível).
A Une Passante
La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;
Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.
Un éclair...puis la nuit!- Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?
Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu na sias où je vais,
O toi que j'eusse aimée, o toi qui le savais!
(Les Fleurs du Mal, 1861)
Diferentes épocas, diferentes sensibilidades, diferentes reacções a uma passante: em Baudelaire, cultor de uma libertinagem assumida, a do excesso da vida e seus prazeres - neste caso a bebida - cortada no entanto pelo imperativo do poema e da absoluta necessidade de o dizer, de proclamar esse último reduto da alma que se encontra e se perde na busca do Absoluto indicível.
Daqui podíamos, sem esforço, passar para os poemas em que se descreve a temível, a avassaladora Beleza, o tal Belo do mundo platónico das Ideias, da Essência fundadora do Ser, ( o Belo, o Bom, o Verdadeiro ).
La Beauté (XVII)
Je suis belle, ô mortels! comme un rêve de pierre,
Et mon sein, où chacun s'est meurtri tour à tour,
Est fait pour inspirer au poète un amour
Eternel et muet ainsi que la matière.
...
etc. ou ainda:
Hymne à la Beauté (XXI)
Viens-tu du ciel profond ou sors-tu de l'abîme,
O Beauté? ton regard, infernal et divin,
Verse confusément le bienfait et le crime,
Et l'on peut pour cela te comparer au vin
Tu contiens dans ton oeil le couchant et l'aurore;
Tu répands des parfums comme un soir orageux;
Tes baisers sont un philtre et ta bouche une amphore
Qui font le héros lâche et l'enfant courageux.
Sors-tu du gouffre noir ou descends-tu des astres?
Le Destin charmé suit tes jupons comme un chien;
Tu sèmes au hasard la joie et les désastres,
Et tu gouvernes tout et ne réponds de rien.
Tu marches sur des morts, Beauté, dont tu te moques;
De tes bijoux l'Horreur n'est pas le moins charmant,
Et le Meurtre, parmi tes plus chères breloques,
Sur ton ventre orgueilleux danse amoureusement.
....
De Satan ou de Dieu, qu'importe? Ange ou Sirène,
Qu'importe, si tu rends, - fée aux yeux de velours,
...
L'univers moins hideux et les instants moins lourds?
Este sentido trágico do Belo, só é comparável, em Rilke, ao sentido trágico do Anjo nas Elegias de Duíno. Há contudo mais diferenças a notar entre estes dois poetas: a sensualidade de Baudelaire, explícita em relação ao corpo da mulher, ou a qualquer metáfora do feminino, não se encontra em Rilke, que envolve o feminino no véu de uma espiritualidade que o sublima- como no caso da Portuguesa, ou das referências aos amantes perfeitos.
Baudelaire vive o corpo, ama o corpo, descreve-o, como noutro poema, La Chevelure, e não perde a noção dos sentidos nem quando o corpo é velho, feio, deformado, repulsivo, como em Une Charogne. Disso não faltam exemplos, bastará ler ainda dos Tableaux Parisiens, além do poema da Passante a Danse Macabre, para ficar por aqui.
Cultiva-se um decadentismo que esconde uma ferida profunda, a do amor do Belo representado num Eterno Feminino irrecuperável.
Stephen Reckert encontra em Manuel Bandeira, poeta dos nossos dias (penso no século XX) a expressão de um mesmo motivo em idêntica situação - de passar- que desperta " a curiosidade erótica como meio de cognição, por assim dizer, metafísica, transmutando a 'passante' média ou alta burguesa em princesa de conto de fadas, com o fim evidente de acentuar até ao extremo a sua inacessibilidade" (p. 51 da obra citada):
Aquela cor de cabelos
Que eu vi na filha do rei
-mas vi tão subitamente-
Será a mesma cor da axila,
Do maravilhoso pente?
Como agora o saberei?
Vi-a tão subitamente!
Ela passou como um raio:
Só vi a cor dos cabelos.
Mas o corpo, a luz do corpo? ...
Como seria o seu corpo?...
Jamais o conhecerei!
( A Filha do Rei )
Poderíamos, quanto aos baudelairianos nacionais, ir então espreitar Cesário Verde, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, na companhia de Reckert. Mas ficará para outra vez.
São de Klimt as imagens escolhidas.