Wednesday, October 28, 2009

A Terceira Mão

Cada livro de Manuel Gusmão é um acontecimento no nosso mundo literário.
A TERCEIRA MÃO vem no seguimento de cinco outras obras (uma delas é libretto de ópera Os Dias Levantados, para o compositor António Pinho Vargas) .
Em todas a mesma densidade poética, o mesmo sentido da palavra recolhida, contida, o que aumenta a tensão do que é dito e não dito, e obriga o leitor a reler até ao ponto de já não desejar entendimento mas simplesmente a música e a fusão com esse outro universo transcendente.
Andam por este livro alguns amigos de memória querida e que eu também conheci, li sempre e admirei: Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto Jorge, Carlos de Oliveira (não é republicado, estudado, porquê?)
Nos anos sessenta, de que tenho saudades, nós líamo-nos uns aos outros, acompanhávamos as obras que iam sendo publicadas, reconhecíamos sem regatear o génio de cada um.
Mas falemos de Manuel Gusmão: esta é uma obra que recupera memórias e as transforma, recupera leituras e as transforma. Sem medo, pois na obra poética é tudo transformação.
Em O Futuro Outrora (p.23 e segs.) sinto que passa Rilke, com as suas Elegias, com o sopro que é mais do Anjo do que dele, "a mão do vento" , "um ritmo outro nas árvores invadindo a partitura" , um canto que se afunda num rio "demasiado fundo, demasiado lento, demasiado antigo".
O rio da memória, o canto de "estranhas aves"- sereias na verdade, "nomes velozes" que ferem, expondo as cicatrizes "do tempo que não cessa", como o rio que não pára, como a vida que se esquece.
Cito, para acabar, o final da última estrofe, a letra g da poética partitura:
...
Nunca saberás dizer como se move sobre as águas a verdade
- a verdade que dança no teu corpo - e no seu teatro
sopra as almas como o vento as telas.

Mas para que uma última vez possas dançar
podemos, sim, pôr aqui o fogo
e a árvore da música: a vibração da sua haste

comunica-se; E o mundo estremece: a vibração
do mundo; quando não estamos a olhar.

Ainda há pouco tempo outro grande poeta fez vibrar a palavra com o seu fogo, rodar as altas esferas com o seu canto, erguer o corpo da vida no altar mais secreto:Herberto Helder.

Monday, October 26, 2009

O PARAISO

Uma discussão recente em torno da Bíblia (Antigo Testamento) com algum impacto mediático mas inútil do ponto de vista de um verdadeiro esclarecimento - levou-me a procurar na minha biblioteca um livro que aqui recomendo.
É de agradável leitura, e é principalmente o livro de um conhecedor cujos argumentos são fundamentados e não fruto de um capricho momentâneo.
Refiro-me à obra de Jean Delumeau, UNE HISTOIRE DU PARADIS, ed. Fayard, 1992, de que talvez haja tradução portuguesa.
O autor começa por citar Marjorie Reeves, a grande estudiosa de Joachim de Flora, cujo pensamento marcou, desde a Idade Média, muitos dos sonhos de utopia de que se alimentou o ocidente. Cita-a para dizer isso mesmo "os sonhos dos homens constituem uma parte da sua história e explicam muitos dos seus actos". Continuando com um poeta que é do nosso tempo e será de todos os tempos, Henri Michaux ( já me ocupei dele nos meus blogs) o autor cita-o para dizer que "não somos um século de paraísos". O que o leva precisamente à questão que é nuclear no seu livro: estudar a história e testemunho dos nossos antepassados, para reconstituir na medida do possível o que terá sido o sonho dessa felicidade eterna prometida e tão depressa perdida.
Delumeau mantém-se no círculo do ocidente, fazendo dos séculos XIV-XVIII o seu território cronológico privilegiado. Mas começa, como não podia deixar de ser, pelas grandes tradições que vão de Moisés a Homero e a São Tomás de Aquino.
Não me quero alongar, o que proponho é esta leitura e a humildade de quem aborda os grandes temas civilizacionais que ainda hoje condicionam o nosso imaginário, na literatura como na arte, e os nossos comportamentos.
A imagem que escolhi representa, extraída de um missal do século XV, o Paraíso Terreal de que Adão e Eva são expulsos pelo Anjo. Do mesmo século temos um Livro de Horas (de Rouen) representando Adão e Eva no Paraíso Terreal. E várias outras representações poderiam ser escolhidas, sempre descrevendo um paraíso terreal, materializado com o primeiro par, com os animais primeiros da mesma criação,etc.
Assim se constitui de algum modo a imagem de um espaço ideal que terá existido e que talvez um dia possa vir a ser redescoberto. Espaço caracterizado por uma abundância feliz, de todos os pontos de vista, materiais e espirituais. Primeiro mito fundador.
Com a expulsão outro mito irá ser constituído: opondo-se a uma eternidade primeira, uma efemeridade, uma mortalidade garantida também de vários pontos de vista, materiais e espirituais. Todos os bens, a começar pelo bem da vida, se tornaram perecíveis. Assim se define a realidade da condição humana, agora mais distante da divindade criadora.
O Jardim terá de ser cuidado, a horta semeada e regada, os animais guardados, o corpo da mulher poderá dar à luz o seu primeiro par: dois filhos, cada um a seu modo servindo o deus seu protector. Porque este deus não está longe, observa e acompanha.
Um dos filhos, pastor cuidadoso, figura o tempo de uma civilização agrária, que pede sacrifícios animais, neste caso, mas noutros serão mesmo sacrifícios humanos; o outro filho é fratricida, ou melhor, evoca ainda o tempo do sacrifício humano que garante mais prosperidade, e ao fugir de um crime que aquele deus já parece abominar, transforma-se no primeiro fundador de cidades.
Surge assim a cidade como espaço de oposição ao campo, e muito em especial aqui ao paraíso terreal ( que tinha sido um Jardim).
Na cidade a humanidade evolui, cresce, socializa-se, e o comportamento dos homens passa a ser avaliado por uma dimensão ética antes menos sublinhada. Antes o grande valor era a obediência, agora será a consciência moral.
A cidade deve ser uma cidade justa, como diz Platão, criando na REPÚBLICA a primeira grande utopia social.
Para um leitor moderno, a CIDADE E AS SERRAS, de Eça de Queiroz, poderá ser uma releitura também ela carregada de sentido, como estas que fazemos da Bíblia. O que encontramos em Eça é a visão pessoal, moderna, laicizada, dos mitos da nossa memória colectiva.