Nesta obra de Ana Hatherly, agora publicada, achei especialmente interessante o último dos sonhos que descreve, não só por ser o último, mas especialmente pela sua forte carga simbólica, fazendo como que um contraponto ao primeiro, datado de 1959; entre esse e o último descrito passaram quase cinquenta anos. Uma vida.
Vamos ao primeiro:
" 5/3/59
É a aparição duma estranha criatura, de dimensões ciclópicas, mas de que só vejo a cabeça. É a cabeça dum velho, de grande cabeleira e barbas, uma espécie de Adamastor, que no meio de nuvens me fala dizendo: a vida que vives agora é apenas uma das tuas muitas encarnações; numa outra vida foste outra coisa e na tua primeira encarnação o teu nome foi Tahelda Nimbo.(Ele pronunciou o H aspirado)".
E agora o último, de Julho de 2008:
"Sonhei com Platão. Sonhei que tinha estado em casa dele.Eu andava à procura de casa, uma casa grande com grandes vistas. Visitei algumas mas nenhuma me servia, até que me levaram à casa de Platão. Ele então aparece, com suas grandes barbas brancas. Mas a casa não tinha grandes vistas, tinha só um quintal grande onde, em vez de plantas, havia grandes lápides de mármore. Mas não eram lápides funerárias, eram só enormes lascas de pedra, todas rabiscadas. Então eu exclamei: Ah! Que sítio mais desolado!"
Numa primeira leitura, quer do primeiro quer do último sonho, o que sobressai é a imagem de um sábio, um Animus forte (o Adamastor) que de início transmite uma doutrina, da encarnação, mas acompanhada de um epíteto ininteligível, o do seu primeiro nome. Podemos locubrar sobe Nimbo, mas não é esse o essencial da mensagem. O essencial é que é dito à sonhadora que a sua vida é complexa, mais do que ela julga, e que o seu caminho se encontra em aberto. Se fossemos recorrer a uma leitura alquímica este velho, de cabeça enorme, de barbas brancas, poderia ser considerado o Pai da Obra; uma obra incipiente ainda, em curso, mas já de forte marca espiritual: o velho, além das barbas da sabedoria, fala do meio das nuvens.
Um longo ciclo parece fechar-se (mas nada se fecha nunca, tudo evolui e se transforma) com o último sonho: Adamastor é Platão, o filósofo das Ideias, um dos pais que os alquimistas consideram, a seguir a Hermes, havendo como se sabe ligação estreita entre o imaginário neo-platónico e alquímico, desde os primeiros séculos da nossa era.
A sonhadora procura uma casa grande e de grandes vistas: a que o caminho da platónica erudição lhe oferece não lhe serve: tem um quintal onde não há plantas mas "grandes lápides de mármore".
Contudo é afastada a ideia de que possam ser lápides funerárias: são enormes lascas de pedra, rabiscadas.
Torna-se claro que no percurso de vida, de procura, tendo adquirido conhecimentos, experiência, erudição, a sonhadora busca algo mais (o uso repetido do adjectivo grande ): as plantas, que deviam ter crescido no quintal; em vez delas há pedras, grandes lascas rabiscadas com sinais que não são decifrados, como no primeiro sonho não tinha sido decifrado o sentido do nome da primeira encarnação.
A Pedra, descrita como lascada (por polir) e a exclamação desolada da sonhadora, revelam que não está concluído o caminho, que a Pedra tem de ser trabalhada, e que só depois disso a Casa, o Centro, se revelará como seu perfeito local de acolhimento.
O Animus condutor continua presente e forte: primeiro de energia, depois de sabedoria. Alguma coisa me diz que o devíamos relacionar com o Abraxas dos gnósticos, o daimon de que Jung se ocupou nos Sete Sermões aos Mortos.
Mas falta, e ainda bem! continuar o caminho. Que só pode ser o da criatividade: a tal planta que ornamentará o quintal, transformando-o em jardim.