A imagem do Judeu constituiu-se como protótipo do usurário num século XVI bem diferente do século XIII em que podíamos ver na corte de Afonso X, o Sábio, judeus e árabes como escol de cientistas e filósofos na vanguarda do conhecimento mais respeitado. Na época dos Descobrimentos é ainda a árabes e judeus que se deve muito das ciências da navegação e só o instituir da Inquisição em Espanha e Portugal marcará com selo de infâmia a raça e a religião judaicas.
Em Shakespeare encontraremos, no desenho da figura de Shylock, o judeu de O Mercador de Veneza, os traços dessa caricatura, muito corrente ao tempo. É avarento, é usurário, é mesquinho em mais do que um aspecto, não escondendo a sua raiva e inveja de outros melhores do que ele, pela riqueza e pela nobreza de alma. É por este último defeito de carácter que se tornará em símbolo universal da imperfeição do género humano. A sua maldade é gratuita, como a de Iago, em Othello, fundadora, primitiva e primordial, como a semente nefasta no coração de Caim; por outras palavras, algo que nasce com o homem e nele se forma deformando-o ( e aqui já de muito se ultrapassa a visão que Shakespeare possa ter tido ou não de um judeu do seu tempo).
O seu Shylock é mais do que tudo uma perversão da natureza; o bestiário poético de que Shakespeare se serve para o descrever, buscando no reino animal os exemplos aviltantes, permite que apesar de tudo se esqueça que ali está um judeu, pois nem os da sua raça seriam tão perversos, tão mesquinhos.
Shakespeare compraz-se na descrição do "monstro de olhos verdes "que é o ciúme, aqui como em Othello:" ...é um monstro de olhos verdes que zomba da carne de que se alimenta".
Algo mais se revela, em Shylock como em Iago: uma pulsão negra e profunda o faz desejar a carne, o corpo, a mutilação e a morte daquele que diante dele se ergue como alter-ego impossível, seu mais nobre reverso, de quem mesmo só a ideia (nem sequer a presença) se transforma em ferida insuportável que só outra ferida talvez pudesse sarar. O que não acontece, Shylock será punido, perderá os seus bens e a sua filha, e aquele que desejava destruir recuperará fortuna e bem estar no fim da peça.
O Mercador de Veneza não atinge, como Othello, a dimensão da tragédia. Mas a figura central em que o judeu se transforma faz dele na realidade o motor do pensamento e da acção, a trágica figura universal que encontra no Caim bíblico o mito fundador.
A imagem de vilão elaborada à época tem antecedentes:
A execução do português Roderigo Lopez, por alta traição, pode ter ajudado a construir tal imagem.
Lopez era um judeu "convertido", médico do Conde de Leicester e da Rainha Isabel I.Quando Dom Antonio, pretendente ao trono de Portugal, chegou a Inglaterra em 1592, Lopez participou na intriga política desenvolvida a seu favor, ao que parece tendo em conta muito proveito próprio; denunciado pelo Conde de Essex, que o acusa de tentar envenenar a Rainha e Dom Antonio, foi julgado em 1594 e executado em Junho desse ano. O caso teve muita notoriedade, com muitas alusões na literatura do tempo.
Marlowe, com The Jew of Malta, foi um dos que beneficiou de tal notoriedade: a sua peça foi representada 15 vezes entre Fevereiro e o fim do ano de 1594.
Supõe-se que o Mercador de Veneza seja devedor de alguma inspiração a Marlowe, tendo a ideia de fazer uma peça que rapidamente aproveitasse o momento propício.
( para este detalhe e outros relativos à datação provável da peça, ver notas introdutórias à edição Arden, por J.R. Brown ).
Bem diferente, com propósito de redenção de imagem, é o drama de Lessing, o grande maçon iluminista do século XVIII, cuja obra se reveste hoje de especial actualidade.
Busca-se a paz, o entendimento,algo que Lessing nos propõe neste drama em verso, inspirado num conto de Boccaccio onde é relatada a célebre parábola dos três anéis.
Quem sabe se alguma próxima produção, teatral ou operática nos trará um dia, espero que breve, esta outra visão do Judeu: homem sábio, fraterno, generoso, que Lessing bebe nos ideais de respeito por religião, raça, costumes, como exemplo que deixa em legado à sociedade do seu tempo.
O drama é longo ( para não dizer pesado ) precisará de uma agilização dramatúrgica incontestável.
Mas transporta um olhar que faz falta, ainda hoje. A sabedoria alimenta-se de algo mais do que o traje, a crença, a prática - elementos que separam em vez de unir a humanidade.
Lessing foi um dos que apelou à renovação do teatro na Alemanha, dando Shakespeare como exemplo, cujas peças atingem a dimensão unversal que, a seu ver, não existia ainda nas produções alemãs, populares, caricaturais, explorando a risada grossa e não a elevação definida já por Aristóteles.
Em Nathan o Sábio é levado ao palco o discurso (e a discussão) das três religiões do Livro:
o Judaísmo (Nathan), o Cristianismo (o Templário), o Islão (Saladino).
A lição dos três anéis, com a interrogação de qual será o verdadeiro, leva à proposta de uma vida moral exemplar que, essa sim, poderá conferir veracidade, autenticidade, a qualquer um dos anéis (as religiões). Temos Kant, com a Razão Prática, a validar a tese de Lessing,cuja Educação do Género Humano influenciará ainda um filósofo como Fichte.
A sua teoria moral da História, fundada na ideia do progresso moral da humanidade é a base do optimismo, religioso também, característico da Aufklaerung na Alemanha.
Infelizmente os tempos contrariaram ( e contrariam ainda) o seu ideal, revelando como são frágeis as forças de mudança, e variáveis os ventos que sopram dos longes da História.
Ricardo Pais está de parabéns, vai trazer com o seu Mercador de Veneza, a estrear em Novembro, um colóquio que permitirá todas estas discussões.
Nota: na capa desta bonita edição bilingue que escolhi para o post reproduz-se uma imagem do Livro dos Jogos (1282) de Afonso o Sábio, com um Judeu e um Árabe a jogar xadrez. Dá muito que pensar.