Friday, July 25, 2008

Shylock e Nathan o Sábio, duas faces da mesma moeda

( Para o Ricardo Pais )
A imagem do Judeu constituiu-se como protótipo do usurário num século XVI bem diferente do século XIII em que podíamos ver na corte de Afonso X, o Sábio, judeus e árabes como escol de cientistas e filósofos na vanguarda do conhecimento mais respeitado. Na época dos Descobrimentos é ainda a árabes e judeus que se deve muito das ciências da navegação e só o instituir da Inquisição em Espanha e Portugal marcará com selo de infâmia a raça e a religião judaicas. 
Em Shakespeare encontraremos, no desenho da figura de Shylock, o judeu de O Mercador de Veneza, os traços dessa caricatura, muito corrente ao tempo. É avarento, é usurário, é mesquinho em mais do que um aspecto, não escondendo a sua raiva e inveja de outros melhores do que ele, pela riqueza e pela nobreza de alma. É por este último defeito de carácter que se tornará em símbolo universal da imperfeição do género humano. A sua maldade é gratuita, como a de Iago, em Othello, fundadora, primitiva e primordial, como a semente nefasta no coração de Caim; por outras palavras, algo que nasce com o homem e nele se forma deformando-o ( e aqui já de muito se ultrapassa a visão que Shakespeare possa ter tido ou não de um judeu do seu tempo).
O seu Shylock é mais do que tudo uma perversão da natureza; o bestiário poético de que Shakespeare se serve para o descrever, buscando no reino animal os exemplos aviltantes, permite que apesar de tudo se esqueça que ali está um judeu, pois nem os da sua raça seriam tão perversos, tão mesquinhos.
Shakespeare compraz-se na descrição do "monstro de olhos verdes "que é o ciúme, aqui como em Othello:" ...é um monstro de olhos verdes que zomba da carne de que se alimenta".
Algo mais se revela, em Shylock como em Iago: uma pulsão negra e profunda o faz desejar a carne, o corpo, a mutilação e a morte daquele que diante dele se ergue como alter-ego impossível, seu mais nobre reverso, de quem mesmo só a ideia (nem sequer a presença) se transforma em ferida insuportável que só outra ferida talvez pudesse sarar. O que não acontece, Shylock será punido, perderá os seus bens e a sua filha, e aquele que desejava destruir recuperará fortuna e bem estar no fim da peça. 
O Mercador de Veneza não atinge, como Othello, a dimensão da tragédia. Mas a figura central em que o judeu se transforma faz dele na realidade o motor do pensamento e da acção, a trágica figura universal que encontra no Caim bíblico o mito fundador.
A imagem de vilão elaborada à época tem antecedentes:
A execução do português Roderigo Lopez, por alta traição, pode ter ajudado a construir tal imagem.
Lopez era um judeu "convertido", médico do Conde de Leicester e da Rainha Isabel I.Quando Dom Antonio, pretendente ao trono de Portugal, chegou a Inglaterra em 1592, Lopez participou na intriga política desenvolvida a seu favor, ao que parece tendo em conta muito proveito próprio; denunciado pelo Conde de Essex, que o acusa de tentar envenenar a Rainha e Dom Antonio, foi julgado em 1594 e executado em Junho desse ano. O caso teve muita notoriedade, com muitas alusões na literatura do tempo.
  Marlowe, com The Jew of Malta, foi um dos que beneficiou de tal notoriedade: a sua peça foi representada 15 vezes entre Fevereiro e o fim do ano de 1594.
Supõe-se que o Mercador de Veneza seja devedor de alguma inspiração a Marlowe, tendo a ideia de fazer uma peça que rapidamente aproveitasse  o momento propício.
( para este detalhe e outros relativos à datação provável da peça, ver notas introdutórias à edição Arden, por J.R. Brown ).

Bem diferente, com propósito de redenção de imagem, é o drama de Lessing, o grande maçon iluminista do século XVIII, cuja obra se reveste hoje de especial actualidade.
Busca-se a paz, o entendimento,algo que Lessing nos propõe neste drama em verso, inspirado num conto de Boccaccio onde é relatada a célebre parábola dos três anéis.
Quem sabe se alguma próxima produção, teatral ou operática nos trará um dia, espero que breve, esta outra visão do Judeu: homem sábio, fraterno, generoso, que Lessing bebe nos ideais de respeito por religião, raça, costumes, como exemplo que deixa em legado à sociedade do seu tempo.
O drama é longo ( para não dizer pesado ) precisará de uma agilização dramatúrgica incontestável.
Mas transporta um olhar que faz falta, ainda hoje. A sabedoria alimenta-se de algo mais do que o traje, a crença, a prática - elementos que separam em vez de unir a humanidade.
Lessing foi um dos que apelou à renovação do teatro na Alemanha, dando Shakespeare como exemplo, cujas peças atingem a dimensão unversal que, a seu ver, não existia ainda nas produções alemãs, populares, caricaturais, explorando a risada grossa e não a elevação definida já por Aristóteles.
Em Nathan o Sábio é levado ao palco o discurso (e a discussão) das três religiões do Livro:
 o Judaísmo (Nathan), o Cristianismo (o Templário), o Islão (Saladino).
A lição dos três anéis, com a interrogação de qual será o verdadeiro, leva à proposta de uma vida moral exemplar que, essa sim, poderá conferir veracidade, autenticidade, a qualquer um dos anéis (as religiões). Temos Kant, com a Razão Prática, a validar a tese de Lessing,cuja Educação do Género Humano influenciará ainda um  filósofo como Fichte.
A sua teoria moral da História, fundada na ideia do progresso moral da humanidade é a base do optimismo, religioso também, característico da Aufklaerung na Alemanha.
Infelizmente os tempos contrariaram ( e contrariam ainda) o seu ideal, revelando como são frágeis as forças de mudança, e variáveis os ventos que sopram dos longes da História. 
Ricardo Pais está de parabéns, vai trazer com o seu Mercador de Veneza, a estrear em Novembro, um colóquio que permitirá todas estas discussões. 
Nota: na capa desta bonita edição bilingue que escolhi para o post reproduz-se uma imagem do Livro dos Jogos (1282) de Afonso o Sábio, com um Judeu e um Árabe a jogar xadrez. Dá muito que pensar.



Sunday, July 20, 2008

Arpad Szenes



Num artigo que escrevi há algum tempo para a revista MEALIBRA, ocupei-me desta obra emblemática de Arpad, Le Couple.
A exposição agora oferecida  pela fundação EDP escolhe como imagem fundadora exactamente este quadro, tão carregado de tradição e simbolismo.
O subtítulo, Vieira da Silva Arpad Szenes e o castelo surrealista, é muito interessante pois sabemos como os surrealistas valorizavam o exercício da libertação (automática ou não) das imagens e arquétipos do inconsciente, para eles o verdadeiro repositório do possível ambicionando a passagem a acto.
Verdadeiro fio condutor serão os esquissos que conduzem ao produto final do óleo.Já no desenho do convite da exposição está presente a mancha circular, laranja, que envolve os corpos, aludindo à esfera andrógina primordial.
O título do meu artigo, que citarei, era ANDROGINIAS: DE KLIMT A ARPAD SZENES.
Aí escrevo que o par está inserido numa representação mandálica, definida pelo arco superior, quase disco solar, que os limites do cavalete (à esquerda do observador) e da perna e tampo da mesa (à sua direita) ajudam a definir.
As cartas na mesa permitem que também nós, de modo surrealista, façamos uma interpretação bem subjectiva: são as cartas do destino que os uniu, está feito o jogo, as cartas estão lançadas, face a elas o par unido abraça-se. O negro da figura feminina evoca o negro da alma, a pulsão que será convertida na unidade da vida e obra.
A figura masculina tem, pelo contrário, os pés bem assentes no chão, suporte da realidade objectiva; a mão direita ( a razão) apoia-se na mesa, a esquerda ( o sentimento) abraça já a mulher  ( o Eterno Feminino que será sempre o seu); marido e mulher figuram aqui o par andrógino primordial, vendo-se bem como a mulher repousa no marido, na sua energia luminosa, com a cabeça encostada à dele e o braço passado à volta do seu pescoço.
O elemento masculino revela-se como suporte delicado de um feminino sombrio ( o negro do vestido é poderoso), como a razão actuante se revelará, na criação, como suporte do caos negro do inconsciente libertado. 
A obra de arte exige ordem,  e a estrutura que ordena o conjunto é tão ou mais importante do que o próprio impulso de criação. E também na memória artística influi a tradição: cultural ou outra.
Teríamos Platão, para a memória do andrógino, e a perfeição primordial que o mito simboliza.
Teremos Klimt, com O Beijo, para a memória artística mais próxima de Arpad.
O Par evoca O Beijo:
Um mesmo enquadramento mandálico, no caso de Klimt com o brilho excessivo das pedrarias  de que ele tanto usou e abusou nas sua produção. O simbolismo andrógino de Klimt é mais directo, o de Arpad mais discreto. Em Klimt os corpos ocupam todo o espaço, em Arpad há espaço (como o teve na vida) para o atelier e a obra ali mesmo apontados.
À representação sensual e orientalizante de Klimt podemos opôr a leitura moderna que Arpad nos deixa do mito (colectivo, platónico, tanto como pessoal, da vida íntima de marido e mulher, ambos artistas). 
O Par é um quadro que ilustra a união de dois artistas que se amam mas não deixam de ser pintores, vivendo essa união  no atelier onde uma outra parte da sua vida irá decorrer para sempre.
Se Klimt funde os amantes num beijo Arpad une os artistas na obra. A sua marca será ao mesmo tempo pessoal e colectiva, mais moderna e mais universal: pois na união tanto ele como Helena, sua mulher, conservam a sua identidade própria; entregam-se, e encontram-se, não se perdem. A própria composição aponta estes detalhes : o par está atrás da mesa, que de algum modo interrompe o que se poderia julgar fusão total; e as ramagens altas do vaso ultrapassam as cabeças encostadas, desviando um pouco mais o nosso olhar, obrigando a que se saia do exclusivo ângulo do par .
Recordo uma frase de Paula Rego: " um quadro não é uma narrativa, é uma composição, temos de considerar os planos, os ângulos, os elementos verticais, horizontais, circulares,etc. inscritos na composição e ainda o jogo das cores e da matéria ou matérias utilizadas...".
Para além do círculo solar que envolve Arpad e Helena daremos ainda atenção ao negro e ao branco, pares de opostos que ( como no jogo da consciência e do inconsciente tão valorizado pelos surrealistas ) nos permitem uma leitura mais vasta, própria dos grandes arquétipos fundadores.


Wednesday, July 09, 2008

Sete Partidas



Doze Naus, Sete Partidas...
Manuel Alegre continua em viagem: pela História, pela Memória, aprofunda um canto Camoniano, Pessoano e que, à semelhança dos seus antecessores, não desvia o olhar do mundo ( o país) que o rodeia.
Percorre cidades, mas detém-se na sua, que é uma cidade da alma.
De D. Pedro, o guia, retém o desejo de mudança. Desse desejo nasce o poema, permanente  interrogação e enigma:

" Como Santo Agostinho vou pelos campos
da memória. Pronuncio o nome de D.Pedro
e o que fica é o nome não a imagem

porque tudo na memória se contém
e tudo é palavra que nomeia.
Digo D.Pedro e ao certo eu digo quem

é nome e mais que nome tempo e História
e mais que tempo e História é a própria ideia.
Vou com D.Pedro pelos campos da memória."
(poema 5 )

Poesia descritiva, intencional na meditação que propõe, sobre as mudanças e as esperanças dos tempos.
O nosso tempo é de insónia, e "um poema escreve-se entre a noite e a manhã/quando as águas irrompem na memória" (poema 12)... que rasto deixam, neste país, nesta cidade, nesta Europa que melancólica perdeu o rumo, que era destino fundador e inicial? Pessoa diria iniciático, mas Manuel é mais simples, mais directo:

" Em Lisboa assina-se um tratado mas agora
Europa já não é o umbigo do mundo
o vasto mundo global e em toda a parte o mesmo
à mesma hora nos telejornais
...
É então que D.Pedro já regente
concede a D.Henrique a exploração do mar.
E o poema escreve-se quando se aprende
em português o verbo navegar." 
(poema 9)

A navegação hoje é feita em águas profundas, da memória em revolta.
Penso, ao ler este poema: em que salas de aulas poderíamos, a propósito da História de Portugal, explicar o sentido que aqui se esconde e se revela? 
E explicar pelo meio as referencias a Platão, a Aristóteles, Santo Agostinho, Cícero e às cidades de cultura, Bruges, Roma, Veneza, e o que na arte maior aí acontecia?
Fico a pensar se esta Hora ( nada Pessoana) será mais de retirar-se do que de enfrentar um mundo que não deseja escapar à sua condição de alienado e alienante de uma realidade que parece cada vez mais escapar-lhe.
Manuel Alegre foi sempre um lutador e não cala, não esconde, o seu protesto:

" A roda trituradora põe-se a girar
microfones perguntas entrevistas.
O poema escreve-se enquanto leio
com D.Pedro o elogio do Benefício
quem o pode fazer e quem não pode

e de como Aristóteles recomenda
o necessário entendimento de quem faz
e do estranho capítulo em que os servos
podem dar benefícios aos senhores
ou das obras morais que são exemplos.

Coisas que não preocupam quem rasteja
nos corredores da corte e da intriga
...
Com D.Pedro escreve-se no conflito
entre o apelo público e a voz de dentro
no desejo de paz e solidão
em Veneza ou Coimbra onde o poema
pode escever-se traduzindo Cícero".
(poema 10) 

O poema continua, na sua busca do que chamará " a frase certa a escrita nova".
A D.Pedro como a Manuel Alegre, nesta identificação poética, se coloca o dilema : intervir ou aguardar que algum momento, alguma palavra mais íntima, mais secreta e mais certa indique outro caminho.
Na poesia há só um e o mesmo caminho: a escrita, que se expõe, como no dizer paradigmático de Celan: " A poesia já não se impõe, expõe-se".

Aqui se expõem os dilemas de quem pode ser voz que cala ( a escrita, no recolhimento e na intimidade ) e voz que fala ( a da interrogação e exigência face ao mundo em mudança):

"Chega um tempo em que um homem se interroga
sobre o último sentido ou o sem sentido
o como o quê o para quê e o para onde
um tempo de balanço em que se mede
o vivido e o não vivido.
E o poema escreve-se"
.... (poema 11)

Não resisto a trazer aqui a dupla imagem dos hemisférios do tempo a que alude o Padre António Vieira, outro dos gigantes da nossa cultura que celebramos este ano:
" O tempo (como o mundo) tem dous hemisférios:um superior e visível, que é o passado; outro inferior e invisível, que é o futuro.No meio de um e outro hemisfério ficam os horizontes do tempo, que são estes instantes do presente que imos vivendo, onde o passado se termina e o  futuro começa (...)Oh, que de cousas grandes e raras haverá que ver neste novo descubrimento! "
Neste Livro anteprimeiro da História do Futuro (ed. crítica de J.van den Besselaar) os hemisférios do tempo abrem-se à utopia que, fundada na História, pretende redesenhar um destino glorioso. Fernando Pessoa, bebendo também ele no mesmo mito antigo saúda a memória, mas antevê o nevoeiro caindo sobre a Pátria. Manuel Alegre, nesta sua viagem de exaltação de um D.Pedro filósofo, letrado, utopista a seu modo, recupera um tempo cujo horizonte (o presente que imos vivendo) apela à reflexão, para que do poema nasça uma palavra certa, no limiar da esperança. 

Não concluo, deixo ao leitor  o verdadeiro prazer de ler e descobrir.
(Manuel Alegre, Sete Partidas, poema, edições Nelson de Matos, 2008 )