Esta é mais uma das aventuras que a obra de Brecht nos proporciona, e a que poderemos assistir no Recital do Festival de Almada.
O desenho que reproduzo é de Bert Tombrock, datado de 1940 - ainda a guerra não terminara- inspirado na balada de Brecht/ Eisler.
Nesta balada se conta a história de uma jovem que se apaixonou por um judeu e ia ter com ele quando podia, até que foi denunciada por isso, e castigada, de acordo com a nova legislação anti-semita, produzida em Nuremberga: cabeça rapada como criminosa, placa ao pescoço com a inscrição "puta de Judeus" e travessia das ruas para ser publicamente ainda mais humilhada, como lição a outras e outros que se atrevessem ao mesmo ( a mistura das raças...).
Podíamos discutir a actualidade deste texto.
Na minha opinião não podia ser mais actual. O Julius Streicher que é citado no poema existiu e foi, um poderoso anti-semita, director do Stuermer e íntimo colaborador de Hitler, que defendeu no célebre Putsch da Cervejaria de Munique.
Mais tarde foi feito Gauleiter (comissário político) da região da Francónia onde promoveu as perseguições dos nazis aos judeus, tendo conhecimento dos planos da "Solução Final" e tendo sido, por isso, nos Julgamentos de Nuremberga, condenado à morte e enforcado. Entretanto, quanta gente inocente era levada, como esta pobre Marie Sanders, cujo destino final Brecht deixa em aberto. Mas claro, o Holocausto iniciara, com estes e com tantos outros episódios, fruto de novas leis contra os civis judeus, a sua marca negra na História.
A História tem de ser recordada: não nos enganemos, com os movimentos actuais dos skinheads, um pouco por todo o lado, os mega-concertos de histeria colectiva ( que no poema o rufar dos tambores na rua bem evoca), os símbolos recuperados, como se de brincadeira se tratasse, e ah, não esquecer aquela eterna e perversa capacidade de denúncia que o ser humano tem e logo põe em prática, se daí adivinha algum proveito.
Há muita lição escondida que podemos retirar deste poema.
O mundo fecha os olhos aos novos genocídios, às novas humilhações, e haverá sempre algum chefe, ou talvez só algum "modesto" vizinho, disponível para o afiar da faca, o apontar do dedo, o pendurar da placa, o aplaudir da rua...
Não foi fácil o trabalho de tradução da letra de Brecht, de modo a respeitar ao máximo a partitura belíssima de Eisler. O resultado aqui fica, depois do prazeiroso exercício (como diriam os nossos amigos brasileiros) feito com Luís Madureira, Teresa Gafeira e last but never least, Jeff Cohen, o grande companheiro de aventura.
Balada da "Puta de Judeus" Marie Sanders
Em Nuremberga passaram uma lei
fazendo chorar muitas mulheres
que dormiam com o homem errado.
"Mais e mais gente nas ruas,
com força toca o tambor,
Deus do Ceú, se houvesse alguma coisa
seria hoje à noite"...
Marie Sanders, teu amado
tem o cabelo muito preto,
melhor é não o veres hoje,
como ontem o foste ver.
" Mais e mais gente nas ruas,
com força toca o tambor,
Deus do Céu, se houvesse alguma coisa
seria hoje à noite"...
Minha mãe, dá-me a chave
nem tudo corre mal,
A lua está igual.
"Mais e mais gente nas ruas,
com força toca o tambor,
Deus do Céu, se houvesse alguma coisa
seria hoje à noite"...
Certa manhã, às nove, atravessou a cidade,
de camisa e de placa ao pescoço,
o cabelo rapado, a rua aos berros,
ela de olhar gelado...
" A gente fica nas ruas,
o Streicher vai falar esta noite...
Grande Deus, se soubessem ouvir,
saberiam o que fazem comnosco ".
Já agora e para que não se estranhe, há diferença, neste último verso, entre a edição alemã e a partitura de Eisler: onde acima eu traduzi,olhando só o texto, "saberiam o que fazem comnosco", tem Eisler: "saberiam o que fazem com elas". Esta versão será a respeitada, no recital.
A alteração pouca importância tem, face ao sentido profundo do que Brecht pretendeu dizer.