Monday, January 28, 2008
O Conto de Goethe/ E.Nunes: produção e post-produção
Quem conta um conto...acrescenta-lhe um ponto.
Emmanuel Nunes quis ser fidelíssimo ao espírito e à letra do Conto de Goethe, mas essa fidelidade prejudicou a ópera como espectáculo "total" que deve ser.
Uma ópera é um todo que inclui o libreto e a música, o canto, a encenação, figurinos e acima de tudo um fio dramatúrgico que estruture e sustente a acção, por muito subtil que a desejemos.
Vários destes elementos não estiveram presentes, por excessiva preocupação de ter tudo todo o tempo e em simultâneo, num palco que se tornou confuso e, para a leitura ( entendimento ) do espectador, inoperante. A dada altura esse excesso tornou-se mesmo insuportável, com os actores/cantores e sobretudo com os bailarinos (absolutamente dispensáveis) abandonados no palco, esbracejando (não, não é assim que se improvisa) em vez de obedecer a alguma coreografia que acrescentasse algo mais ao rigor da composição que nos era oferecida. Não sendo possível, ou desejável, acrescentar algo mais o melhor teria sido eliminar os bailados. Ganhava-se em coerencia.
Emmanuel Nunes "leu" o Conto com fidelidade, mas sem prescindir em nada do que entendeu ser a sua liberdade de criador-compositor.Assim, ampliou de tal modo a composição para lá dos sentidos do Conto que estes, sendo vários, se perderam por completo no tal excesso que acima referi.
Emmanuel não se cingiu a uma das linhas centrais dessa obra esotérica quanto baste. Optou por "apresentar" em vez de escolher, mas escolher faz parte do acto de criação, tanto quanto a liberdade de criar.
Na escolha reside a ordenação, sem escolha o que fica é uma soma e nem tudo o que se soma num palco resulta a bem do espectáculo.
O grande defeito de E. Nunes foi não ter ficado apenas com um dos temas mais caros a Goethe (imaginário alquímico, iniciação maçónica, ideal de serviço a uma utopia social transformadora) mas uma tentativa de livremente (arbitrariamente? ) ir compondo o que as imagens literárias lhe sugerissem, deixando aos outros colaboradores a dificuldade de lidar com um palco que poderia ser muito post-moderno mas se tornou de uma monotonia que prejudicou O Conto, Goethe e o desejo de conhecer melhor a obra deste gigante da cultura universal. Faltou aqui um dramaturgista que ajudasse o compositor nesta sua primeira ópera.
A ópera, como teatro que é, não pode viver só de imagens, precisa de uma dinâmica própria que as articule.
O Conto da Serpente Verde desdobra em duas figuras condutoras - o Barqueiro, que virá a ser o sacerdote do templo que surge das águas do rio, e o Velho da lanterna, que será o guia, conduzido pela luz da razão - a verdadeira natureza de Goethe, que em si reúne duas tendencias aparentemente contraditórias:
Sentimento, ou sensibilidade (Empfindsamkeit) e razão iluminista ( Aufklaerung ). A primeira vinha de longe, das correntes místicas e pietistas e, a dado momento da vida de Goethe, revela-se importante, na amizade de Suzanne von Klettenberg e através dela pelo conhecimento de uma série de doutrinas de carácter alquímico e hermético. A segunda é oriunda de França, com o cartesianismo florescente, a corrente dos Enciclopedistas, a doutrina da liberdade, igualdade e freternidade, marcas de uma Revolução que se desejou, a dado momento, importar para a Alemanha. Mas foi em Kant que melhor se definiu o Iluminismo, com o tratado da Razão Pura. E contudo, mesmo ele impôs limites à Razão, fechando o acesso possível ao conhecimento em "categorias", para além das quais nada se poderia conhecer. Entrava-se então noutro domínio, o da "Razão Prática", cuja entendimento recuperava a intuição, a transcendencia, a Moral, outras esferas, outros valores e experiências, para os quais a Razão só por si não podia contribuir.
Voltando ao Conto:
Entre as múltiplas personagens e as múltiplas escolhas de linhas de evolução o compositor podia ter preferido uma ou outra, mais profunda ou menos substancial, mas impunha-se, a meu ver, uma escolha.
Goethe é um gigante do pensamento universal, lança uma grande sombra à qual nos podemos acolher. Mas se assim é, tem de haver respeito por quem lança a sombra e a sua protecção intemporal. Podemos ironizar com os comportamentos, não o devemos fazer com o sentido profundo das suas obras e do seu pensamento, neste caso simbólico e mítico, como se sabe.
Emmanuel Nunes talvez devesse ter ouvido a exclamação do barqueiro aos fogos-fátuos: ouro não, não posso aceitar moedas de ouro como pagamento, só frutos da terra. Leia-se a piadinha alquímica: há os verdadeiros filósofos e os falsários, os "falsos" alquimistas, como se diz nos antigos tratados; só quem reconhece o ouro espiritual, a estrela no homem (segundo Paracelso ) pode seguir bom caminho; e esse caminho é o dos valores mais antigos, primordiais, da Sabedoria Perene. Só ela encontra e distribui os verdadeiros frutos da terra.
Ah! Mas podemos querer ser artistas sem necessariamente querer ser sábios.O exercício post-modernista passa, muitas vezes, precisamente pela negação do estudo mais aprofundado...
Então foi má ideia ter escolhido um Goethe como rampa de lançamento.Esta questão leva-nos, naturalmente, à encenação e sua problemática, dado que não houve uma prévia dramaturgia que desse movimento a um texto todo ele feito de movimentos e transformações condutoras.
O encenador é o segundo autor da obra que encena. Também aqui a questão se coloca: faz o que quer do libreto de Emmanuel Nunes, do Conto de Goethe, de nenhum, de ambos ? O que escolhe fazer como obra própria ( a grelha ) que o público colocará sobre as outras que serviram de base ? Ou faz indistintamente o que lhe apetecer, considerando o palco o seu espaço próprio, ainda que neste caso da ópera sujeito ao rigor de uma partitura, uma prosódia, ou uma simples dicção?
Os encenadores post-modernos terão uma resposta - parecida com a ideia radical da arte pela arte que, desde a década de 50-60, entretanto evoluiu no sentido do "mais" ser melhor do que o "menos". E do muito mais ainda muito melhor: como se o público só entendesse o que lhe fosse repetida e exuberantemente mostrado : amontoa-se, não se ordena, deixando que seja o espectador, também ele livremente, a fazer a sua ordenação.
Há um exibicionismo nas leituras modernas dos textos que em nada contribui para que se ame esses textos. O excesso mata, tanto quanto a penúria. Mas a fome deixa espaço para mais, e a indigestão não deixa espaço para nada.
Há modelos exemplares de tratamento moderno de grandes autores: Boulez/Chéreau para a Tetralogia de Wagner; Peter Stein (encenação) para o Fausto I-II de Goethe; ou, se quisermos, a plena post-modernidade de um Bob Wilson.
Bob Wilson é o melhor exemplo do que se pode fazer numa leitura (interpretação) de grandes clássicos: as óperas de Gluck que já podem ser apreciadas em DVD, ou ainda o emocionante e deslumbrante Black Rider (adaptação do Freischutz de Weber) apresentado em Paris, com uma aplauso de pé que durou mais de meia-hora.
Mas em todas estas produções se poderá encontrar o sentido profundo da obra que esteve na base da sua criação, ainda que "relida" a seu modo, através de um olhar que dá mais substância ao espaço num rigoroso, geométrico, puríssimo desenho de luz.
Enquanto no caso do criador-compositor podemos hesitar entre dois modelos: o de Wittgenstein "Wovon man nicht sprechen kann darueber muss man schweigen" ou o de Valere Novarina " ce dont on ne peut parler c'est cela même qu'il faut dire ", no caso do encenador talvez a questão se ponha de modo diferente e se possa então discutir, com Nicolas BOURRIAUD em Esthétique relationelle ( 1992 )a questão que ele levanta:
"Pourrais-je exister dans l'espace défini par une oeuvre et comment ? ".
Como historiador e crítico de arte a discussão poderia cingir-se apenas à criação actual de pintura, instalação, outra; mas julgo que a sua proposta vai mais longe e se aplica, na dúvida ou na certeza eventual, a todas as formas de criação em geral, na época da velocidade, da simultaneidade que faz do artista um coleccionador "de dados a manipular, reutilizar, reencenar" (Postproduction, 2001).
O encenador deste Conto ofereceu citações retiradas de uma cultura cinematográfica e não só: por exemplo, a Princesa tem as mãos de Eduardo mãos-de tesoura, filme em que Johny Depp brilhou há alguns anos.Mas chegará para salvar uma peça?
Oferecer tudo, todo o tempo, a todos, é uma proposta que se esgota a si mesma, pela usura que daí advém, para o criador e talvez mais ainda para o espectador. E à la longue é o espectador, sempre renovado com o passar do tempo, que mantém viva a obra de arte.
Chegámos onde chegámos - como espécie inteligente- pela selecção.
O criador que não seleccione, na "post-produção" do seu processo criador, ficará talvez visível por um tempo, mas só por um tempo, e quando se afundar tudo se afundará também com ele. Não digo que tenhamos de nos prosternar diante do passado das obras e seus autores.Devemos servir-nos delas e deles, mas com inteligência e sensibilidade.
Concluindo com Bourriaud:
" Cabe-nos a nós, espectadores, julgar as obras de arte em função das relações que produzem dentro do contexto específico em que se movem.Pois a arte, e não vejo outra definição que a todas englobe, é uma actividade que consiste em estabelecer laços com o mundo, materializando de uma forma ou de outra as suas relações com o espaço e o tempo".
Não por acaso Bourriaud anuncia que no seu próximo livro falará do fim do pensamento post-moderno.
Monday, January 14, 2008
PESSOA, PAIS E OUTROS MAIS
Ricardo Pais trouxe a Lisboa a sua nova encenação de Fernando Pessoa, em "Turismo Infinito", não apenas o do poeta, mas igualmente o seu, com a capacidade notável que tem de viajar por inúmeros autores, obras, sensibilidades: de um primeiro, fortemente irónico, expressionista como Sternheim, até à composição de um FAUSTO fragmentado como o próprio Pessoa era e nunca deixou de ser. Nesta sua abordagem de outrora (um clássico que devia ser estudado, dele fazendo-se um dvd, como se fez do Fausto goetheano de Peter Stein ) a fragmentação era acentuada pelo modular do espaço cénico em caixas e recortes que permitiam sentir a tensão dramática sem que, no seu impulso (pois no Fausto de Pessoa não há decurso, ao modo tradicional, há impulso, repetição obssessiva) ela se perdesse, desviando o espectador da verdadeira linguagem, altamente elaborada, de Pessoa.
É raro, e só um encenador de grande brilho saberia como respeitar, em perfeito enquadramento e sintonia, uma obra literária tão complexa como a do nosso poeta : aconteceu outrora em FAUSTO,FRAGMENTOS, com a colaboração de António Lagarto para a cenografia.
O TURISMO INFINITO agora apresentado torna-se extremamente interessante, por vários motivos, mas destacarei este: Ricardo Pais percorreu um caminho que vai da FRAGMENTAÇÃO À TOTALIDADE, como acontece num dos poemas escolhidos para o espectáculo: CHUVA OBLÍQUA (pertencendo ao exercício interseccionista, mas a meu ver imbuído de alquimia pelo modo como as imagens e os símbolos aí se manifestam ).
Perante a escolha de poemas e a articulação dramatúrgica de António Feijó, Ricardo Pais sentiu a necessidade de ultrapassar a fragmentação de personalidades de um outro infinito turismo, o do fingimento das vozes poéticas em infinito contraponto, e alcançar a esfera mais profunda e mais obscura de um Eu em permanente fuga e dissolução.
Entra aqui a colaboração de Manuel Aires Mateus que trouxe, com a sua concepção de um espaço cénico negro e aberto, a possibilidade de cada texto adquirir, com a sua linguagem-luz própria, o seu mais incantatório e mágico significado.
O palco é um lugar de magia: ali se transmutam emoções, ali o mundo se abre ao espectador que pode, mais consciente ou inconscientemente, ampliar, também ele, o seu espaço de reflexão, a sua visão da Obra como todo.
A escolha de Manuel Mateus tem ampla influência no efeito que os textos escolhidos adquirem no âmbito da encenação, contida, sóbria e por vezes sombria quanto baste, de Ricardo Pais. Houve entre ambos uma sintonia perfeita e é desse modo que podemos dizer que nesta viagem pessoana, empreendida há anos por Ricardo, este chegou à totalidade que uma primeira fragmentação permitiu e aqui e agora se conclui.
A geometrização do universo pessoano é integrada na geometria com que Manuel Mateus redesenhou o palco, na sua escura pureza: o eu estilhaçado do poeta é recolhido, nos seus pedaços, até à visão do círculo, a bola de brincar que pertence a todas as infâncias:
"Todo o teatro é o meu quintal, a minha infancia
Está em todos os lugares, e a bola vem a tocar música
Uma música triste e vaga que passeia no meu quintal"
A batuta do maestro ( a música, linguagem do inconsciente por excelência, prescinde da palavra, é anterior a ela ) e a bola desencadeiam a chuva de imagens da infância que fundindo-se e confundindo-se na alma do poeta o fazem regressar à esfera do "indiferenciamento" do inconsciente, onde todo o processo criador se origina, tomando forma depois, quando a confusão cessa "como um muro que desaba".
No poema, aquilo a que Jung chamaria a Conjunção das imagens fundadoras não chega a levar o poeta a uma consciência que ultrapassasse a dôr da fragmentação e da perda.
Mas no espectáculo concebido por Ricardo Pais, naquele espaço de sombra de onde as vozes se erguem, ora uma, ora outra, consegue-se a Totalidade ambicionada: o teatro também é isso, um espaço onde a sombra, nossa e dos outros,se ilumina.
Sem entrar em considerações mais vastas, de que me ocupei, faz anos, num artigo intitulado FRAGMENTAÇÃO E TOTALIDADE EM "CHUVA OBLÍQUA", termino, prestando a minha homenagem a Ricardo Pais, Manuel Mateus e todos os da equipa, participantes nesta verdadeira obra-prima de entendimento de um grande autor.
Não esqueço os actores, por vezes tão mal amados no nosso meio artístico, fazendo com que a muitos só ocorra fugir do país ingrato.
Mas eu tenho visto "crescer" as gerações:
Assim, desde os Monólogos de Graça Lobo, nas Cartas da Freira Portuguesa, culminando no inesquecível Monólogo de Molly Bloom ( de um Joyce que Pessoa foi dos primeiros a ler ) passando, na última Saison, pelo Monólogo de Beatriz Batarda em Quando o Inverno Chegar, sublinho o Monólogo da Corcundinha nesta peça de Ricardo, entregue ao virtuosismo de Emília Sylvestre.
Tanto no caso de Beatriz como no de Emília detectamos uma genial capacidade de alterar o jogo a que se assistia, dando elas voz a um torvelinho de emoções que desarticulam o excesso de racionalidade que podia estar em causa; o peito rasga-se, a voz sobe e a respiração fica em suspenso até ao limite do possível - tudo prova de soberbo domínio e subtil mas marcado profissionalismo.
Last but not least, "Eles" : compõem a música do mito pessoano, sendo o mito a constelação das vozes que tentam responder, de forma estruturada, à interrogação do poeta sobre si mesmo, o seu lugar no mundo, no universo inteiro.
Não há resposta: e os actores, numa articulação medida e quase neutra ( que muito teria agradado a Sophia de Mello Breyner ) é isso mesmo que nos deixam perceber.
Pode haver diferente, mas melhor é impossível .
Permito-me, como velha pessoana, sugerir um elemento bibliográfico:
Ettore Finazzi-Agrò, O Alibi Infinito, o projecto e a prática na poesia de Fernando Pessoa, ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987
Wednesday, January 09, 2008
Thursday, January 03, 2008
Luis tinoco
Subscribe to:
Posts (Atom)