Saturday, November 03, 2007

Sonata de Outono



Mais uma vez o Teatro São Luiz faz brilhar a rentrée.
Com a Sonata de Outono de Ingmar Bergman, que muitos de nós viram a seu tempo no cinema, construiu-se um espectáculo intenso, enquadrado num palco que lhe confere uma dimensão lunar superior.
No limiar da consciência assiste-se ao dizer tumultuoso e cruel de um inconsciente longamente recalcado.
Afrontam-se mãe e filha (s), com as suas memórias, as suas acusações, sofrimentos e remorsos.
A ferida incurável e a degradação dos sentimentos estão claramente simbolizados na filha doente, com uma doença degenerativa que a mantém presa à cama e já incapaz de se exprimir a não ser por sons quase incompreensíveis.
O tema subjacente é o da impossibilidade de dizer, de comunicar, de estabelecer um elo mais verdadeiro entre o sentido, o pensado, o dito. O sucesso da mãe, por excessivo, apaga a tímida luz da filha que finalmente confessa o sofrimento por que passou. Mas como ela própria diz, o sacrifício da mãe ficando em casa por amor em nada melhorou a relação, que continuou difícil.
A dôr de uma será às vezes o remorso de outra, não há mãe que não tenha vivido com o remorso: de ter dito, ou de não ter dito; de ter feito ou de não ter feito, sabendo-se à partida que o dizer e o fazer são quase sempre impossíveis.
O círculo de luz azul que ilumina a esquerda da cena figura bem a solidão mais nocturna da alma, o fechamento a que tudo se reduz no fim.
Lembra também que a perfeição formal é um momento isolado no contexto da vida.
A vida é feita de outras coisas, marcas pequenas da nossa permanente e humana imperfeição.

Assina o cenário e figurinos o António Lagarto, com a sua mão de Mestre. Quem tem arte e métier destaca-se pela qualidade da obra, e ele é exemplo disso: repare-se na solução encontrada com o piano de brinquedo (resolve a questão da música tocada e discutida) a casinha e o comboio, sublinhando o universo da infância que se desmoronou.
A direcção musical é de Nuno Vieira de Ameida, com o bom gosto e rigor que lhe são conhecidos.
A encenação é partilhada: Fernanda Lapa e Cucha Carvalheiro. O trabalho conjunto destaca-se pelo mesmo rigor já referido acima para o António e o Nuno, e por uma sobriedade que deixa respirar o texto e o trabalho dos actores: cada um a seu modo vai ocupando o espaço que lhe cabe, materializando com o corpo e com a voz o Outono da alma em que cairam.
Se muito passa pela relação mãe-filha e pela (in)capacidade ou impossibilidade da abdicação maternal, tudo passa, em surdina, pela discussão da arte e da relação do artista consigo, com a sua arte e com o resto do mundo: para o artista (como é o caso desta mãe) não há resto do mundo, só satisfação e realização pessoal, numa fuga constante à realidade.
Para o artista o real pode tornar-se insuportável.
Uma palavra de admiração excepcional para o trabalho de actriz de Fernanda Lapa, incarnando estes dilemas.
Estão todos de parabéns.

A Peça ficará em cena até 25 de Novembro.
Quem gosta de teatro deve ir ver.

6 comments:

Maria José Silva said...

Adoro literatura e tudo que se relacione ao mundo das "palavras". Essas que, algumas vezes materializa o sentir.
Muito bom.

Anonymous said...

Também vi a peça no passado Sábado, e na minha humilde opinião, a mensagem principal é aquela que já tinha retirado aquando da visionação do filme, que as mães emocionalmente embotadas, foram as filhas de mães emocionalmente perturbadas,isto é, aquela mãe viu-se privada de amor parental, nomeadamente o maternal enquanto criança(pais matemáticos famosos, que privilegiaram a sua vida profissional, em detrimento da vida familiar)o que a tornou numa mãe ausente emocionalmente, mesmo quando estava presente.
Em suma, uma viagem pelos meandros da psíque humana,pelo intimismo do ser humano como só o Bergman sabia.
Quanto ao trabalho cénico e artistico a Yvete já disse tudo.

Desejo-lhe um dia solar.

Fernando

uf! said...

e, a propósito de teatro, saber-me-á dizer onde posso encontrar um exemplar de «As três cidras do Amor»? Estará esgotado, como me disseram?
Antecipadamente grata

Yvette Centeno said...

Cara tia, esteve esgotado e já saiu, nas ed. Cotovia, em reedição (que revi).
Um abraço e boa leitura

uf! said...

Cara Professora, muito obrigada. Já fiz a encomenda por mail, para a Cotovia; na Fnac não constava nos disponíveis - vivo na província e um dos preços que pago por isso é o acesso mais limitado a livros, concertos, bom cinema, teatro...
Votos de uma boa semana

uf! said...

p.s. na Bertrand também não tinham... a distribuição continua a ser uma dor de cabeça...