Wednesday, January 17, 2007

BABYLONE de Manuel Alegre



A obra de Manuel Alegre continua em digressão pelo mundo.
Lançada agora em França na colecção "Paroles d'Ailleurs" a edição bilingue de BABILÓNIA (poema épico de 1983, revisto em 2000 na Obra Completa); e no próximo mês de Fevereiro será lançado em Leipzig o romance RAFAEL na tradução de Markus Sahr.
Sabendo, por experiencia, como é difícil traduzir poesia, saúdo a tradução francesa de João Carlos Vitorino Pereira. A tradução é um acto de amor e um exercício de pacência e humildade. Exige a leitura por dentro do poema, uma leitura mais íntima, mais secreta, em que a voz se torne nossa e a possamos transformar. A tradução tem o seu quê de alquímica devoração: apropriamo-nos das palavras do outro, do seu pensamento, do ritmo que a ele preside, para dar forma-outra na língua que já não é só dele, mas dele e de um outro em conjunção feliz.
Babilónia surge como um "grande cantico subterrâneo", uma epopeia que mais parece ser a expressão da "corrente de consciência" de um escritor atento e sofrendo com a mudança e a decadencia inevitável dos tempos. A marca Camoniana é forte e Manuel não a esconde, antes a proclama.
Ao contrário de Pessoa, que pretendeu, em MENSAGEM, reler a História de Portugal, Manuel Alegre relê o pulsar da vida num universo em permanente mudança.
Aqui a viagem é passagem, o jardim é o sonho de um espaço que deixou de ser idílico e esconde muita tormenta (aproveite-se para ler a seguir Senhora das Tempestades...) .
A epígrafe dá o tom " Esta é Babilónia, lugar da vossa residência". E segue-se, antes do canto de Manuel, a transcrição do maravilhoso Poema Babilónico da Criação:

"Aquele que tudo viu
aquele que chegou aos confins do país
o sábio, o omnisciente,
que conhece todas as coisas
aquele que leu os segredos
e desvendou o que estava escondido
transmitiu-nos um saber
de antes do dilúvio.

Longo foi o caminho que percorreu.
Quando voltou, fatigado mas sereno,
gravou sobre a pedra
o relato da viagem".

(Epopeia de Gilgamesh,Prólogo)

Este é o sopro profético que leva o nosso poeta a cantar, também ele, o que viu, o que aprendeu, o que lhe foi difícil e finalmente o que o apaziguou, suavizando a relação consigo e com o mundo..Responde a Gilgamesh a par e passo, quase verso a verso, confrontando o seu caminhar com o que outros descrevaram na memória dos tempos.
Cito agora na tradução francesa alguns dos poemas que mais dizem sobre o caminho percorrido:
IN MEZZO DEL CAMINO
1.
"Ta vie est au milieu: ta contradictoire
vie périlleuse passionée.
Changer l'homme ( disais-tu ) Faire l'histoire.
Comment abolir maintenaint le quotidien ?
La jungle est sombre et tu es seul
avec ta guitare et ta mémoire
au milieu du chemin".

O meio do caminho, no meio da vida: a pausa da sabedoria que só não é infinita porque nada é infinito no homem:
3.
...
"Tu es simplement de passage
et ce qui reste de toi est ton absence.

Tu t'assois.
Ta chaise est l'auberge d'un soir.
Te voilà assis sur l'adieu lui-même".

Mas é a palavra que redime, daí a necessidade absoluta da escrita, na pedra da memória.Tal como Celan, outro profeta da eterna transmutação do Verbo no ouro do poema, Manuel Alegre dirá:
8.
"Tu ne te libères que par la parole
par la porte défoncé de la parole
syntaxe désagrégée
blanc espace de solitude

De l'autre côté de la grammaire se trouve la mer
tu verras peut-être ces îles jamais vues

Puis soudain une guitare".

Noutra secção, O Homem Sentado À Mesa, L'Homme Assis À Table - descreve-se o trabalho do poeta, sentado à mesa, diante da folha do papel, percorrendo esse "long chemin de la vie vers le mot". Espera-se atingir o pássaro, aquela figura mágica que nos poemas de Prévert desinquietava as almas juvenis, esperançosas.
O homem sentado à mesa não está parado, caminha por dentro das memórias, das ideias, das palavras que tenta organizar, do vôo de alma que se ergue como um pássaro ao alto, na janela.
Last but not least, parabéns aos editores e ao tradutor.

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