Tuesday, December 28, 2021

Lençóis

Lençóis

Teve lençóis de cetim

e teve lençóis de linho

agora só quer  lençóis

de algodão muito fininho


28 de Dezembro, 2021  

Monday, December 27, 2021

Morre alguém

 Morre alguém

abriu espaço

para uma vida outra

que lá venha? 

De estrela ainda

não conhecida

uma luz tão distante

e já envelhecida?

Um ponto enegrecido

que absorveu da energia

o sopro

indivisível?

Vê-se a morte,

mas o que foi a vida?

E perguntar

fará algum sentido ?

Haverá quem a conte

essa vida perdida

haverá quem a esqueça

haverá quem a lembre

do fundo mais profundo 

da memória contida

da verdade ou mentira

e afinal o que importa

se aquele que morreu

morreu

e já não volta?

27 de Dezembro, 2021



Ainda o Desfazer das Coisas e as Coisas já Desfeitas

 Estava eu a pensar no que podem ser as coisas desfeitas, e como se desfazem, pelo tempo onde ficam esquecidas, ou pela vida, a destecelã por excelência, roubando agora uma ideia ao desaniversário sem chá, da Alice, a figura que ainda hoje é a mais desconcertante e inspiradora com que deparamos, ao reler de novo as suas aventuras. 

Entre a imensa colecção de imagens animais que atravessam as metáforas de Nuno Félix da Costa ( que podemos tentar  comparar a Comte Lautréamont e ao tubarão com quem vai acasalar, sublinhando em ambos a tónica surrealista que atravessa os Cantos e os Poemas ) vamos encontrar num poema que assenta bem neste resto de quadra natalícia, em que uma pandemia nos baralha os espíritos, os projectos, nos reduz ao pouco que somos num universo imenso, o da atitude do Pai Natal perante uma revolução (p. 171). Embora o tom seja basicamente irónico - pois quem acredita ainda num Pai Natal qualquer que ele seja, a não ser uma criança de infância resguardada (algo de cada vez mais raro, pois a publicidade que invade o mundo real, os media, não o permite) - a mim trouxe-me um recordação feliz da minha infância em Buenos Aires: levei a um pai Natal que estava no último andar do Harrods argentino, que sentava os meninos ao colo e perguntava se tinham sido ajuizados, pegava na carta onde iam os pedidos de prendas e explicava: eu leio, depois entrego os presentes aos Reis Magos e são eles que no dia de Reis levam as prendas a cada casa. Assim aconteceu comigo: no dia de Reis tocaram à porta do nosso apartamento, fui a correr (tinha sete anos nessa altura) e vi pousado no chão o bébé de borracha que tinha pedido. Acreditei no Pai Natal até quase aos dez anos, quando regressada a Portugal a troça das minhas amigas me desfez o encanto, por muito que eu dissesse que lá, na Argentina, tinha estado ao colo dele. A história do Pai Natal está magnificamente descrita no blog deste domingo, o De outra Maneira, por Isabel Almasqué. Ali encontram a verdadeira origem da lenda, a partir da existência do culto a um Santo medieval. Mas o que ficou no imaginário de um poeta contemporâneo, que põe o Pai Natal das barbas risonhas diante de uma revolução?

Agora dou-lhe a palavra:

"Ainda amo o Pai Natal - espero-o com um grau de certeza injustificado / mas esperar é como chegar ao crepúsculo sentir fome e ter a ceia - ou um / sonho que se repetirá sem surpresas - sem reparar que se acumularam os dias / e que o livro poderá nunca ser escrito - Mas amo a possibilidade de / uma ocasião de sorte - de escorregar e não cair como uma atitude geral / de os corpos tenderem para a própria ideia e a matéria que sorri ser nuvem / Todos os dias visitamos as crenças dispostos a mudanças mas estamos / na terceira geração de reis exilados - A revolução também falhou - / as fábricas enferrujaram na cirrose operária - É prático ter crenças / revolucionárias desde que possamos morrer por elas / Enquanto os reis exilados na sua memória de Pais Natais temem / a forca nós levamos o inverosímil para o sonho e deste ao real / é um passo que nem discutimos".

Qual é a lição do texto? Que o sonho ainda é possível se o levarmos connosco para o real onde a ceia esperada nos é servida? A festa, mal ou bem, é desejada, é esperada, e como nos contos de infância terá uma solução feliz, que o poeta reconhece que nem se discute. A alma precisa dessa ilusão, dessa espera ansiada desse alimento que o poeta define como ceia. E neste caso a ceia não é a última, de Cristo com Judas traidor, esta é a dos Reis e dos pastores guiados por uma estrela nova, propícia, que vem saudar uma criança nascida. Jesus menino ainda não é Cristo. 



 

 




Wednesday, December 22, 2021

Nuno Félix da Costa, O Desfazer das Coisas e as Coisas já Desfeitas, ed. Companhia das Ilhas, 2015

 Estamos em 2021, neste momento em que escrevo, sobre uma edição de poesia (melhor dizendo prosa poética) do século passado, mas que mantém uma tão grande actualidade, que merece e deve continuar a ser lida. Razão? A universalidade dos temas que aborda, desde a leitura dos gregos antigos, que tudo pensaram muito antes de nós, desde a noção de consciência, passando pela discussão do Princípio (do universo, mas também da consciência dele e do ser humano que teve igualmente o seu Princípio, ao ter consciência de si mesmo no mundo), até chegar às modernas conclusões da neurobiologia sobre o que já se sabe do cérebro humano e do muito que ainda falta estudar e descobrir. Nuno Félix, sendo médico psiquiatra, está à vontade para poetizar sobre neurónios, sinapses, " o tubo neuronal que se não se fechasse o cérebro perdia-se...viveria como um dinossauro decapitado / sem alma na acção nem voz para a surpresa da morte / Aos quatro meses sem proliferação neuronal o eu encolheria / Eu de sapo num príncipe nem bem nem mal comportado" (p.14),  e assim introduzindo na sua escrita elementos que para um leigo surgem como surpresa, desafio, ou por vezes mesmo um toque surrealista. Não admira, pois Nuno se interessa por pintura, sendo ele mesmo pintor, fotógrafo, fazendo colagens que de tudo um pouco misturam (fazem ou desfazem) completando ainda a sua formação, ou apenas curiosidade (mas a curiosidade é que nos impulsiona, na ciência, na filosofia, na arte, como lembrou Stephen Hawking na última conversa com os seus estudantes, pouco antes de morrer) com o gosto pela música e pela filosofia. Na verdade é um poeta fora do comum, que eu definiria como filosofante. Um pouco à moda de Pessoa, em quem tudo o que escreve remete para um pensamento filosófico subjacente aos seus versos, mesmo os mais delirantes. Álvaro de Campos, o das viagens em que o delírio o toma, e quase faz dele um poeta libertário, excessivo nos apelos, nas palavras, nos ritmos  que lhes imprime, mesmo nele encontramos fundamentos que ultrapassam o jogo futurista. Os seus excessos são apelos,  e têm tudo a ver com o fazer e o desfazer das coisas que Nuno Félix escolhe para matéria poética. A verdade é que um criador não progride, na obra, sem primeiro desfazer o que fez. O que está feito está feito, e a vocação, se real, impele para outras coisas, ainda que desviantes em função do primeiro princípio idealizado ou proposto. Nuno Félix escolhe o desfazer e o já desfeito, mas na verdade é desse já desfeito que segue em frente, com o seu novo fazer, um Princípio que é outro e aguarda que seja descoberto. Mas terminemos, já agora, este poema de abertura: 

Dissera na primeira estrofe, " nada sei da minha consciência - qualquer coisa /ligada a um molho de células oriundas de um pai amando / uma mãe - Quase sempre é assim..." 

E diz agora na última: " Sempre atrás de mim o meu cérebro - Atrás do olhar - da voz / Como saber da consciência? Estarei bem mielinizado - do princípio / obscuro dos nervos até à flôr da pele onde a consciência se simplifica / no que sinto? No que vejo ao longe afastar-se e sei não ser eu?" (p. 14). 

Saber ou não se saber quem é, se o eu se outro que se afasta, é produto já de uma consciência de si adquirida, algo que não se tem ao nascer. A criança nasce vinda não se sabe de onde, de uma cósmica esfera, no dizer dos Livro Tibetano dos Mortos, onde a sua essência aguardava que o desejo do homem lhe permitisse a materialização. 

Assim nasce a criatura humana, e a ignorância do que foi, e do que é e do que venha a ser, é um dos raros momentos em que se poderia dizer que é feliz, porque o sofrimento vem com o saber, não apenas do cérebro cientificamente estudado, mas sobretudo do que falta, do que se inquire, e como se queixa Strindberg, recentemente dado a conhecer entre nós, pela mão de Cristina Carvalho - é tão grande a ânsia que nos toma, que por vezes nem na arte se encontra lenitivo. Contudo é na arte e só nela, sob as suas várias formas, que o criador se pode encontrar, no eu que a sua obra sublimou.

No poema seguinte, continuando num hermetismo que lhe apraz cultivar, Nuno Félix deixa contudo uma porta para os benefícios da arte, neste caso da escrita:

"A escrita abisma-se obriga ascende e quebra / a voz vidente - Fende o chumbo - a luz espreita e / revive um pouco mais" (p15). O chumbo é o peso que a palavra comporta e é necessário transportar para outro nível mais elevado da consciência, onde sem que o autor o diga logo expressamente, a palavra também se torna instinto, além de peso. Entra-se na esfera de uma irracionalidade que o cartesianismo não aceitaria, a do sentimento, embora tenha pretendido defender que só o pensamento valida a existência.

Alquímico é o chumbo que deixa passar a luz para que se reviva "um pouco mais". Apologia da transformação que sublima, e que depois de um negro desfeito permite um branco refeito. O solve et coagula, dos filósofos herméticos...de que Jung, bem conhecido do nosso autor, como veremos adiante noutro texto, se ocupou. Este é um dos Princípios,  mas na verdade, na criação poética toda a matéria é livre e passível de se transformar. Daí o desfazer das coisas, no título, anunciar o solve como princípio, ainda que sem o nomear. A cultura de um poeta tanto serve para indicar um caminho como para o esconder, e é grande a cultura deste poeta, em variados domínios, o que nos obriga a leituras atentas.

No poema que intitula a cura ou Goethe quântico (p.16) introduz o conceito de tempo, como Heidegger o faria se vivesse agora: o tempo factor de separação, de divisão (enquanto o Ser pretensamente seria sempre de União, manifestação de um Uno indivisível, anterior ao tempo que ao surgir no Princípio (Génesis) logo introduz a divisão, separa as trevas da luz. 

É o tempo que dá forma ao ser - desde logo o da criança, ao nascer. Pot isso o poeta lembra que o tempo separa: pois a forma, como nos versos do poema define o que o poema é.

" É difícil com a linguagem reconhecer os caminhos / que nos atravessaram floração prende o olhar e vemo-nos / reunindo as primaveras numa espécie de tempo cujas peças / se desajustam - Ecos de uma explosão opaca antecedem / o fundo da voz sem nos tocar o rosto e voam num cosmos que sem ver respiramos...". O poema termina com a imagem cósmica que fatalmente teria de acompanhar a reflexão do princípio do tempo original: " audaciosos actores de desabafos teóricos / ao colo de um universo que - sem assustar - se sustenta sem nós". Nós não existíamos, no princípio dos princípios, surgimos ao sexto dia, quando o tempo nos separou de toda a matéria vegetal e animal entretanto criada. Quer isso dizer que somos mais, que somos menos? Seremos dispensáveis num universo "que se sustenta sem nós" ? Há uma certa amargura, feita de desilusão, no olhar de um cientista que embora sendo poeta não desconhece as falhas e faltas da nossa condição. Humana e limitada, descolada da transcendência que um Jung mais esperançoso lhe atribui, mas que um Freud mais cartesiano entende ser despicienda. 

Tal como a reflexão sobre o tempo, o mundo das crianças atrai Nuno Félix, porque nelas se revê numa inocência que é dos primórdios de uma consciência que ainda se ignora como tal - com tudo o que o presente e o futuro lhe reserve. 

Curiosa é no entanto a imagética animal que lhe ocorre, em contraste por vezes com o suave perfume de flores do hálito infantil que se respira no seu adormecer - imagens de animais que surgem com alguma violência destruindo um sono ou um imaginar, no poema, que devolvesse harmonia a uma tão pequena existência, intocada ainda (quanto sangue sem pedir a filha rouba...) O sangue que escorre do corpo da mãe que a dá à luz, mancha a pureza da criança acabada de nascer, já separada  e com outro destino. Ocorre então que o tempo não se limita a separar, mas nesse acto define também um destino. Não é por acaso que adiante o poeta afirma: "Hoje ter alma não é um risco - Pouco a usamos e não temos / que a salvar - apenas que a manter / limpa e nos limites do razoável" (p. 27). 

A ironia atravessa muitos dos poemas, juntamente com elaborações de carácter científico que dão um tom quase surrealista, por inesperado, quando vamos embalados no verso de uma ideia ou de uma imagem especialmente interessante. O mesmo modo caímos, quando menos se espera, num quotidiano molho de amêijoa à espanhola, tendo já lido antes que a amêijoa é prima de sangue do búzio...um paladar de quotidiano faz cair no real quem esteja à espera de espiritualidades bacocas, pois nada disso cabe neste fazer e desfazer de coisas que são por vezes sublimes, por vezes quase banais pois a banalidade faz parte do quotidiano das vidas que nos são dadas a viver. Mais ainda numa sessão em que o médico tenha de pacientemente dar atenção aos seus pacientes. Merecerão todos eles essa especial atenção? E mesmo não merecendo, noblesse oblige, o médico tem de ser generoso, embora o poeta não.

O poeta pode, se sentir esse impulso, descarregar o negro que lhe pesa, desafiar os deuses em que não crê, desacreditar os filósofos que ignoram as causas mais profundas do sofrimento que esconde, oferecendo utopias jamais realizáveis em nosso tempo de vida. O que me devolve à questão do tempo, focada atrás: o que é, para este poeta, o sentido da vida? O sinal sem sentido do grande Hoelderlin, pois se perdeu a língua no distante? E o que é afinal a obra do poeta? Recuperar, refazendo, esse sentido por dentro do sinal? O título que deu ao livro é pessimista e não deixa antever mais nada para além do dizer o Desfazer e o já Desfeito. Mas voltando à questão do tempo, e do princípio, não haverá aqui uma contradição? Um desejo de recuperar, no poema, o ainda não feito?

No fecho do poema intitulado hipnotizados pelo suceder (p.25) lemos que " a ironia retoma o mistério - Nem percebemos o que / ao suceder escapa - o que mantém a boa ordem das vagas / que se sucedem com absurda simplicidade". O que veria Freud (Quand Freud voit la mer) nestas vagas de Nuno? O obscuro inconsciente, ou uma consciência imperturbável perante pequenas vagas  de absurda simplicidade?  Nada é simples, num poema, ou numa consciência que se procura entender a si mesma no mundo a que foi entregue, sem querer e sem saber. Nascemos e morreremos assim, sem querer e sem saber. 

Em disputas doutrinárias (p.29) encontramos Freud e Jung como portas para uma felicidade variável. Postas de parte as personagens da infância o crescimento é possível, entre Buda ou um poema preferido, os mitos coexistem numa liberdade "libertina",  aproximamo-nos de Jung, mas ficamos mesmo assim a meio caminho (não há soluções perfeitas para ninguém) reflectindo no que seríamos sem pais (Freud) nem mitos (Jung) sendo apenas o que somos numa "alegria mal pensada".

Continuando uma leitura que não se pode esgotar aqui, iremos descobrir uma faceta que ultrapassa o inicial filosofar e se entrega a um surrealismo-abjectionista, ao gosto do fundador, Pedro Oom, e o grupo do café Gelo, de que destaco Cesariny, mas especialmente Luiz Pacheco, cuja Comunidade ainda hoje guardo no que chamo a estante dos amigos. Neste movimento a liberdade e o libertário das situações e da linguagem são totais, a raiva e o nojo, o ódio ao mundo, à sociedade normativa são descarregados com abundância por vezes quase chocantes, embora expectáveis, pois para isso se criou a associação livre de imagens, por muito chocantes que sejam para as boas almas que se escandalizarão - algo que se pretende por estes autores. É a Julia Kristeva que devemos uma reflexão ensaística, em 1980 (40 anos depois do arranque em Portugal) sobre a abjecção: O Poder do Horror, ensaio sobre a Abjecção. A Psicanálise, com Lacan e o seguimento post-freudiano valoriza, no post-modernismo, o culto do horror, do horrível,  do condenável na sociedade educada, ou tida como tal tal) como no início do século muito do Expressionismo na pintura e no teatro, mas o abjeccionismo literário neste desfazer e no já desfeito surge um pouco como surpresa. Passou-se da meditação sobre o Princípio, o gesto que inicia, e sobre o Tempo, a medida que separa, para uma dissertação que se afirma longe dos valores tradicionais mais óbvios, mais aceites, numa espécie de raiva que arrasa tudo num frenesim de desfazer o que estivesse (e fosse aceite como)  feito. 

Mas o interesse deste livro não se esgota no desabafo súbito e por alguma razão necessário e libertador.

 Muitas outras páginas, que podemos ir abrindo e lendo ao acaso, aliás maneira bem feliz de ler, porque sempre surpreende, iremos ao encontro da música ("quando pensamos num músico surdo queremos sentir / a compaixão dos sons enterrados num vulcão ou já vazios / pairando no seu puro contraste.../ e a revolta da música toma a pureza celestial / da crueldade quando o sentido se perdeu" (p.36). Alude a Beethoven, genial e já só podendo ouvir-se por dentro da cabeça, alheado de um mundo que o procura ou ignora, pois já não comunica a não ser com a sua oculta genialidade? Provavelmente.

Mas logo de seguida empurra-nos o autor para um outro mundo, menos musical, o de Descartes, todo pensamento e exíguo no sentimento, às voltas com um sonho recorrente que Marie-Louise von Franz nos conta e eu tentei analisar, num post antigo " O melão de Descartes". 

Nuno escreve aqui "ignoro o que pensar de mim" (p. 37) como Descartes em carta a um amigo escrevia ignoro o que pensar deste sonho tão recorrente...A verdade, e Nuno Félix sabe disso, por força da sua experiência, sua e de outros, que não é o pensamento (a Razão, o Intelecto, mas a Emoção, o Sentimento) que nos podem abrir alguma frincha de súbita revelação. A lição já vinha de trás, com os Pietistas na Alemanha do século XVII-XVIII e os seus retiros espirituais nos conventos que o Conde de Zinzendorf lhes punha à disposição, para no silêncio da alma (essa palavra ainda hoje odiada, ou ignorada, o que é pior) a iluminação divina pudesse ter lugar.

Esse silêncio, de recolha e recato é o mesmo que o poema exige para dar voz às palavras que busca e virão ter com ele mais tarde ou mais cedo,  feitas, desfeitas, ou de outro modo qualquer, ajustadas à sua realidade. Saberá assim talvez mais qualquer coisa de si.

E regressamos "à origem do discurso"...o tal princípio. "Poderia ter sido de outra forma mas foi assim - concluímos". Se antes falou de música, agora leva-nos para o mundo abstracto da pintura, com Klee. Mas é uma descrição de um quotidiano naturalista por onde passam formas tauromáquicas, trombas de porco, bicos de cegonha, ad cores que pelo meio se atropelam, nos despistam, nos distraem, de modo que o poeta conclui "falham alusões aos mitos - falham soluções - a esperança deslocaliza-se - talvez a alma não comporte / o que junta e na névoa voa com os rochedos ou o universo / não suporte o uníssono democrático" (p.41).

Matéria para reflectir. O que se pode encontrar num quadro que soma, mas não revela, não é essa a função dele, revelar cabe a quem consiga desfazer o amontoado de imagens, e suas resoluções. 

 

 

  


 

 

Sunday, December 19, 2021

Cristina Carvalho, Strindberg, ed. Relógio D'Água, 2021

 Como sempre, terei de esperar que chegue um filho para colocar a bela capa desta bela edição, como as outras a que a Relógio d'Água já nos habituou.

Já escrevi sobre outros livros de Cristina Carvalho que prossegue no caminho generoso de divulgar vidas e obras de grandes criadores universais, e não apenas da literatura: temos a música, com Chopin, o cinema, com Ingmar Bergman, a pintura, com Modigliani e agora um dramaturgo e pensador de quem eu vi, outrora, A Menina Júlia, mas ignorava a  dimensão maior de tudo o que foi fazendo nas várias artes ao longo do seu tempo de vida, nem sempre feliz, como ele diz a dada altura. 

Confesso que o cuidadoso prefácio de Daniel Sampaio, abrindo o livro e a sua leitura para leigos como todos somos, antes de começar, me intimida um pouco. Se eu soubesse fazia um copy paste dos seus  comentários, que subtilmente apontam a diferença entre o que é ficção, o que é uma biografia como género literário com as suas regras, e este "romance biográfico" em que a autora, com arte exímia, fez toda a investigação necessária para enquadrar um autor de obra complexa e que exige por isso o respeito dos factos, quando investigados e conhecidos. Cristina herdou do seu pai, que eu li como Rómulo de Carvalho, no Porto, aos doze anos e só mais tarde, já em Coimbra, redescobri como poeta António Gedeão, herdou, dizia, uma enorme capacidade de reconstituir o ambiente, o espaço, em que uma vida como a de Strindberg se desenrolou.

Como refere Daniel Sampaio, encontramos nesta obra sobre Strindberg uma descrição completa e fundamentada das étapas da sua vida, dos lugares que frequentou, das mulheres que amou, dos amigos e inimigos que teve, do que foi deixando inacabado, e por fim a inovação na estrutura que Cristina escolheu para tanta matéria, ora uma identificação plena, de voz que intervém em estilo directo, ora uma distância de reflexão - de cada vez surpreendendo o leitor pela originalidade desta escolha, que mesmo assim não deixa que se perca o fio à meada da narração. 

Cito de novo D.Sampaio, por concordar com o que observou e eu mesma por vezes observei, noutras obras da autora, como Rebeldia, por exemplo.

"A escrita de Cristina Carvalho é cuidada, intimista, por vezes torrencial. Vê-se que conhece bem a obra de Strindberg (...) Dá-nos um retrato muito completo da complexa personalidade deste autor sueco".

Temos de agradecer a Cristina Carvalho que nos tenha desvendado a múltipla personalidade de um criador que foi mais do que dramaturgo, foi romancista, pintor, fotógrafo, alquimista, "instável nas relações afectivas...sempre em constante procura de si próprio e do seu lugar no mundo" (D.S.p. 8-9). Aqui temos a razão do subtítulo, em epígrafe: NESTE MUNDO FUI APENAS UM CONVIDADO.

Cabe-nos agora, a nós, ao ler a obra de Cristina, dizer à essência sublimada de um autor pouco estudado, que é um convidado que nos honra, por ter existido e deixado marcas que perduram, nessa busca de uma espiritualidade bebida em Swedenborg, que foi tão influente na Europa daquele tempo, Goethe é um dos autores que o lê e tenta idêntica busca de uma nova esfera espiritual, que também o seduz, como aconteceu com a alquimia. 

Será em Inferno que poderemos descobrir muito do que foi o seu pensamento íntimo, o que fica no espólio, em regra, por precaução ou timidez. Mas estando traduzido, em inglês e já em espanhol, penso que é obrigação ler, antes de continuar a deambular por aqui, tendo a referência da obra.

É o que farei, numa segunda abordagem desta edição, felicitando mais uma vez Cristina Carvalho, que enriquece generosamente os meus dias e espero que de muitos outros que como eu não gostem de ficar pelos sucessos da espuma dos dias. 

Strindberg, contemporâneo de Nietzsche, embora não se tenham conhecido pessoalmente, teve por ele uma admiração quase doentia de tão intensa, depois de ter lido Para Além do Bem e do Mal, obra que se lhe colou à pele como se fosse sua. E não admira, a época era de pensamento ousado, aspirando a revolução, a mudança, em todos os domínios da criação e do pensamento. Trocam correspondência, mas quando o filósofo alemão extravasa, noutras obras, o bom senso que o leva a considerar o homem alemão como o Homem Ideal, aquele que afirma que Deus está morto, e o Homem Novo é o que se perfila no horizonte, quando se indispõe e humilha Wagner, o seu admirador, Strindberg, entende que a ligação é perigosa e afasta-se dele, enquanto o admirado filósofo e poeta cai na treva da loucura.

Igualmente interessante é ver como Paris foi atracção, e como Strindberg ali sofreu, num obscuro quarto de hotel, o que também Rilke sofreria. Paris, a cidade sonhada e que só trouxe, a um e a outro o rosto da fome e da miséria moral a que nas ruas assistiam. Se para Strindberg foi Gauguin, pintor, a figura de relevo, para Rilke foi Rodin, escultor, não menos seco e cruel, nos anos em que lhe serviu de secretário.

A verdade é que um criador é uma alma inquieta, sempre em desassossego, e na sua consciência  de que tinha muito a dizer ao mundo, Strindberg transforma-se num caso paradigmático. Ora muito bem aceite, ora detestado por ser agressivo e rude, e se situar fora das normas da sociedade em geral. Sabia-se, sentia-se, superior ao pequeno mundo burguês, ele que vivia a arte tão intensamente e só na arte encontrava algum sentido para justificar a vida. É difícil situá-lo: antecipa o movimento Modernista, mas de forma tão feita de excesso que o sentiria, eu, mais perto do Expressionismo. Há, no que Cristina nos revela do seu carácter e de alguns comportamentos, qualquer coisa de bi-polar, mas na verdade o que fica de um criador é a obra criada, foi desse impulso de pensar e criar que nasceu, quem sabe, o excesso, o desequilíbrio, de que ele fala, defendendo-se contudo do receio de ser louco.

É curioso como a questão da loucura invadiu o mundo dos criadores, naquele tempo. Nietzsche é talvez o caso mais doloroso, mas Strindberg, o seu receio, pois discutir o que se é revela o seu receio de que o definam como tal, e chego a Fernando Pessoa, que escreve a um médico da África do Sul e lhe coloca a sua interrogação.

Vinha de antes, essa ligação entre o génio e a loucura, e há boa bibliografia sobre o tema. Na verdade o génio marca diferença entre uns e outros,  a normalidade regrada não faria nascer um Rimbaud, nem um Verlaine, muito menos um Kokoschka cuja obra é revolução de toda a norma, até mesmo no teatro que escreve. Os génios são fundadores de novas formas, com eles se abrem as consciências a uma nova ideia do ser e do seu sentido na sociedade e no mundo.

 O génio é um fazedor  de mundos, por ele se sublima, como na alquimia, a matéria informe, primordial, que ele moldará a seu gosto. Cito a frase com que Cristina, numa simbiose com o autor, de absoluta liberdade que também ela pratica: "escrevo como me apetece..." da sua mão o impulso de mudança, ou de revolta, será marca fundamental. O mesmo encontramos em algumas obras que Cristina publicou, de autoria própria.

Refazer o que está feito não é o que se procura. Inovar é o lema, alterar, em todo o caso, uma absoluta imposição. Mergulhar no mais profundo da alma, o inconsciente que em breve será abordado nas suas várias esferas para nelas encontrar os mitos e arquétipos que estruturam e explicam o muito ou o pouco que saberemos de nós. Strindberg tem essa intuição genial: a busca é nele incessante, tanto quanto a revolta de não ser sempre recebido como mereceria. A vida foi-lhe talvez ingrata. Mas o que teria ele sido numa ordem social mediana e considerada normal?

Jordan Peterson, Psicólogo Clínico e Professor em Harvard, cuja obra é hoje em dia best-seller de reconhecimento mundial (e em alguns casos repudiada com igual veemência) publicou uma obra, BEYOND ORDER, em que para lá de muitos outros temas aborda, para a vida de cada um, a importância da arte. Só a arte, a criação de uma obra de arte, pode devolver a uma humanidade deprimida, a harmonia de alma de que cada vez mais necessita. Ocorre-me neste momento que isso mesmo se destaca na apreciação da vida e obra de Strindberg, a angústia e a busca permanente de uma inspiração que lhe escapa e o torna infeliz, o desequilibra, a ponto de quase desejar morrer. Mas cito Peterson "...uma obra de arte genuína invadirá a sua vida e a mudará. Uma verdadeira obra de arte é uma janela para o transcendente (...) é por isso que precisamos  de entender o papel da arte e deixar de pensar que se trata de um luxo, ou pior, uma afectação. A arte é o suporte da cultura (...) vivemos pela Arte" (J.B.Peterson, 203). 

Strindberg entenderia bem estas palavras, mas é pela visão de Cristina Carvalho na sua biografia,  que essa busca premente se torna clara, com as dores e as alegrias, as hesitações que acompanham todo o verdadeiro apaixonado pela criação artística.

E agora impõe-se que se fale deste labor de Cristina Carvalho, que há anos se ocupa da cultura e da arte na cuidadosa, mas apaixonada, divulgação dos melhores que escolhe para seu trabalho. É trabalho de obreira, na definição dos alquimistas: ela é a rosa que dá o mel às abelhas...e nós somos as abelhas que se alimentam desse mel, de sabedoria feita de ler e reler (outra máxima alquímica) até à realização de uma obra única,  generosa no modo como a põe à disposição dos seus leitores, e que  merece todas as distinções que condecorem o seu trabalho e o seu mérito.  Existem, está na hora de atribuir.



Thursday, December 09, 2021

CONTRA-CORRENTE

Jordan B. Peterson ( n.1962) Psicólogo Clínico, Professor, autor de vários livros de inspiração junguiana. Em 2021, dá uma entrevista que vejo no youtube sobre o seu percurso, a sua vida. Adoeceu gravemente (terá sido a depressão a que os alquimistas chamam nigredo e Jung explica como sendo uma fase do meio da vida em que o eu se confronta com o inconsciente? Uma depressão que afunda, mas pode também, se o eu integrar as matérias (via sonhos arquetípicos) de raiz inconsciente, salvar e conduzir ao amadurecimento e integração de um EU superior.

 J.P. tem um rosto magro, sofrido, olhos escuros que escurecem ainda mais quando se concentra para falar. Nada do que diz é fruto de acaso, cada afirmação é completada pelo seu possível contrário, revelando a complexidade de todo o pensamento e a finalidade, o sentido, a que conduz.  

Numa das suas regras de vida para um casamento duradouro, salienta a importância das primeiras três, que vemos numa sessão do youtube, mas a escolha do três é intrigante. Porquê três e não quatro, ou só duas, ou uma? Quebrar um voto (para J.P. o casamento é um voto, e um voto é um compromisso para a vida) se foi sincero no momento em que foi pronunciado não deve ser quebrado, nem uma vez sequer. A repetição terá algo a ver com Pedro, que por três vezes renegou a Jesus? Porque sendo J.P. um católico que se assume e por essa razão muitas vezes foi ofendido, maltratado mesmo, como diz, numa sociedade em perda de valores, o três pode para ele ter um valor especialmente simbólico, de pecado e perdão.

Fala numa das sessões do momento terrível em que todos na sua casa adoeceram. E que sem o apoio da mulher e dos filhos, e dos muitos amigos que também tinha e outros que foi descobrindo, via net, não teria sobrevivido. Aludiu a esse período com um olhar ainda mais escuro, como se de maldição se tratasse. Não li ainda os livros que quero ler, mas estou certa de que para ele o Mal existe e a sua presença se pode fazer sentir quando menos se espera.  Tudo lhe corria bem na vida, as aulas, o consultório, as sessões em que participava, e de repente tudo se virou ao contrário. Até um convite da Universidade de Cambridge lhe foi retirado, magoando-o profundamente. Para um Académico de prestígio, como ele era, ser desconvidado sem razão foi, como é óbvio, mais do que uma ofensa, uma pura maldade gratuita, que o fez sofrer muito.

Como diz às tantas, aprende-se com o bom e com o mau que a vida nos oferece. Crescemos, ficamos mais humildes, mais disponíveis também para as situações dos outros em sofrimento e que é dever de ofício ajudar, numa profissão como a dele. Mas, diz ao concluir a sessão, temos de saber que é perigoso o que se possa fazer ou dizer, temos também de saber defender-nos do mal que nos ataque. Da sua provação saiu mais reforçado, mas poderia ter "caído" de vez naquele negrume de alma. Muito ajudado por todos enfrentou esse mal, de que   já Jung tinha falado. 

Confrontou os seus demónios, integrou o que lhe era revelado ( e até aí permanecera oculto) sobreviveu e aqui está ele de novo, a falar connosco, para nos ajudar também.

É tão estimulante a sua análise do Manifesto Comunista, de Marx- Engels, pondo a nú as falhas de raciocínio e as ilusões que pretendem criar - utopias - que se traduziram em revoluções de violência inenarrável a pretexto de uma governação que seria mais justa, igualitária, ainda que dependendo de um governo restrito e autoritário, de ditadura selvagem, como é estimulante a sua perplexidade confessada por ter fé e acreditar em Cristo, sem perceber bem porquê.

Poderíamos dizer que a Fé é um dom, não terá nunca explicação, mas ele quer ir mais longe e entender por que razão, ao contrário da tendência laicizante actual do mundo, ele se tornou católico convicto. O que há de diferente em Cristo, que chegou há dois mil anos, em relação a todos os outros deuses, tão mais antigos e cujos cultos ainda se praticam, no Islamismo, ou no Hinduísmo, por exemplo, com grande quantidade de devotos.

Deixo eu a minha interrogação, enquanto não vejo a dele: será porque Jesus é uma figura histórica e não uma figuração abstracta, tal como Sócrates foi e em certa medida ambos no comportamento e no pensamento se aproximam? Refiro-me à questão da Ética como valor supremo, que leva a que ambos aceitem a morte a que são condenados. Contudo Sócrates é considerado e permanece filósofo, e Jesus é sublimado em Cristo, filho de Deus. Peterson não gosta que lhe perguntem se acredita em Deus, prefere responder que se esforça por viver como se Deus existisse. Leva a questão para a Ética do comportamento em vez de assumir a devoção a um Deus que se fez homem, em Cristo, para tomar consciência de si mesmo (Jung, no ensaio sobre Job). A centelha divina que se calhar existe em cada ser humano - será ela uma aproximação ao que se pode conhecer de Deus? E como ficamos em relação ao mal, que também no homem se revela em paralelo ao bem, quem sabe se de modo mais intenso? É um mistério esta dupla existência na criatura que Deus terá moldado com o barro do Jardim do Éden. Voltando a Jung e ao seu texto, Resposta A Job, percebe-se que a experiência do mal foi o contributo indispensável para a consciência que Deus adquiriu de si mesmo. BEM e MAL, complexos na sua oposição, mas presentes na realidade da essência do humano e do divino.

Uma das palavras que mais oiço nas intervenções do Prof. Peterson é meaning, significado, sentido. 

Sentido - como orientação que se dá à vida, às escolhas que se fazem, aos comportamentos que se seguem, ou à razão da procura que nos incentiva e leva para este ou aquele caminho.

Sentido é uma ordem que se impõe ao que seria o caos, se o sentido não fosse procurado (Hoelderlin) ou se não chegasse a existir.

Abro uma das suas aulas, e está a definir para os alunos o que é um arquétipo. Define como subestrutura da consciência, esfera em que se foram somando ao longo de séculos, de milénios, os mitos e símbolos arcaicos que fazem o conjunto do que somos, como corpo individual e colectivo, social. Tudo nasce do corpo, desde os primórdios da civilização e da evolução até chegar ao Sapiens de quem descendemos. Somos seres biológicos, e até a consciência e as suas infraestruturas têm de materializar-se, por assim dizer, para serem reconhecidas e estudadas como são hoje em dia.

O sentido, de que se fala em Hoelderlin, a orientação e a ordem que é incutida ao sinal que o perdeu - somos um sinal que perdeu o sentido - só pode ser recuperado por via da integração dos arquétipos e sua dimensão mítica e simbólica, acumulação que se foi dando desde os primórdios da nossa existência como criaturas pensantes e capazes de socializar. Porque a primeira transmissão desses mitos, suas narrativas, foi oral, antes de ser remetida à escrita. Histórias contadas à noite, ao redor do fogo protector, do cozinhar da refeição. Histórias dentro de histórias, repetidas, contadas e cantadas, encantadas, sobrepondo-se umas às outras, até formarem o corpo de memória que se transforma em arquétipo, bem na base da nossa consciência primitiva.

Peterson recorre a Homero, recorre à Bíblia, ou aos antigos hinos da Suméria ou do Egipto, para aprofundar nesses textos a matéria primeira da nossa imaginação e da nossa capacidade de criar. Tudo enraíza nesse magma que é o inconsciente como subestrutura, antes de ser integrado na forma superior de um Eu que se foi sublimando ao entender o que se é. Na Kabbalah Deus diz, a dado momento: eu sou aquele que é.

Pergunta-se: o que é ser o que se é? O que é ser? O somatório de tudo o que foi e é desde o início dos tempos? Um Verbo que se fez carne para redimir o universo criado? (Apocalipse de São João: Ao princípio era o Verbo e o Verbo se fez carne e habitou entre nós), abrangendo por isso toda a matéria existente, humana e não só? (Deus ordena a Noé que leve para o seu barco também os animais, aos pares...).

Muita interrogação que nos é deixada.

Partindo do princípio que em todos nós, seres humanos, matéria criada por Deus, existe uma parcela, uma centelha da sua divindade, como devemos entender a afirmação de ser aquilo que é ?

Só poderemos ser algo de próximo àquilo que é se houver algum sentido para a nossa existência. E assim estamos de volta à primeira observação de Peterson na sua aula, com a importância que dá à definição de sentido (meaning). E o que é esse sentido, que em inglês também poderíamos talvez definir como purpose ( um objectivo, uma finalidade), uma vida com sentido, uma existência com sentido, uma vida realizada no âmbito pessoal, familiar, profissional, social, político (que é social) ou outro.

Mas não são equivalentes, se formos ver com mais atenção. Quando Hoelderlin escreve "somos um sinal que perdeu o sentido", esta vida, este sinal, pode muito bem ter alcançado o seu objectivo (ser Professor, ser Político, ou Escritor) e ter perdido o sentido. De quê? Daquilo que é, da divindade em nós, criaturas que somos de Deus que nos criou para materializar a sua própria consciência de existir.

Para se ter a consciência de ser ( e do sentido de ser) é preciso ter a de existir? O Deus da Kabbalah, tão assertivo, necessitou do Jeová do Antigo Testamento, no Livro de Job, e do questionamento de Job, seu fiel devoto, para se conhecer a si mesmo enquanto divindade que é, e manifestando-se existe?

E o que é a existência, de que um Jean-Paul Sartre fez toda uma filosofia? Existir é o ser em manifestação materializada? E onde fica o sentido, do sinal que somos, no dizer do poeta? Só o sentido preenche a existência? Daí que se fale negativamente de uma existência (coloquialmente uma vida) sem sentido? E finalmente: a existência, manifestação do ser? (sein und dasein? ser e estar?)

O gato de Alice, que é o gato de Schroedinger, que ora está ora não está, deixa de ser o que é quando não está?

E continuando a ser, será para lá do espelho? É aí que estará? C.S.Lewis a jogar connosco às escondidas...

Y.K.Centeno

Lisboa, 8 de Dezembro, 2021


Friday, December 03, 2021

CHARTERS DE ALMEIDA

Recebo como prenda de Natal antecipada um belíssimo livro de Artista, de João Charters de Almeida, amigo de longa data, e cuja obra, no domínio da escultura e outras áreas tenho seguido ao longo do tempo.
Deu-lhe um título: O FUTURO É O PRESENTE SEM TEMPO ?
Pelo título se revela o pendor filosofante que na sua magnífica PORTA DO ENTENDIMENTO, erguida em MACAU, já se antecipava.
Charters de Almeida tem uma cabeça sempre em movimento que procura na obra realizada, ou projectada (como aquela que ainda só existe no presente do futuro) o entendimento do impulso e da essência da Arte, como absoluta necessidade na vida do criador.
A obra de arte é intemporal, na medida em que ao corporizar-se materializa um tempo, o do momento, mas também o TEMPO, na sua essência ou na sua dimensão de mistério universal. 
Ocorre-me, como aconteceu com Heidegger, nas aulas que deu sobre O QUE É PENSAR, seminários de fim de vida, que o que se procura, no impulso do pensamento, é o que nos diz um poeta ( e aqui temos a poesia a iluminar o pensamento, a existência, no mundo), HOELDERLIN, no seu hino à MEMÓRIA: MNEMOSYNE. O que nos diz, no seu verso que o filósofo cita, para enquadrar o impulso primordial que nos leva a pensar, e a outros a criar - seja poema, seja pintura ou escultura ou composição musical - é que " somos um sinal sem significado / não sentimos dôr e quase / perdemos a língua na distância / ...é longo o tempo mas consegue alcançar-se".
Não podia encontrar melhor enquadramento para este livro de pensador que é o de Charters de Almeida do que esta citação de um poeta que inspira o filósofo de SEIN UND ZEIT, o SER e o TEMPO.
As páginas que introduzem o negro como suporte do branco da escrita, no livro, para além da dimensão estética conduzem-nos a uma reflexão de que Jung gostaria, a da completude que negro e branco formam, sinalizando um Todo que se espera, num tempo longo...
e cito:
O HOMEM
 É
A SUBLIME
CONTRADIÇÃO
DO 
UNIVERSO ?

e em continuação da busca da consciência de si, do significado (perdido?) do sinal que somos, desse mesmo universo:

SOU PARECIDO COM:
A MINHA MÃE
O MEU PAI
COMIGO
CONTIGO
COM QUEM?

Jordan Peterson, psiquiatra hoje em dia muito citado, junguiano assumido, com um toque de alquimista que escandaliza os menos cultos, define a condição humana como um somatório de sensações e emoções que se materializam no todo que pode ou não levar a que se materialize em obra de arte. Para tal tem de haver uma consciência de si, do outro, do mundo que subtilmente espiritualize o significado do sinal que afinal todos somos no universo (o Tempo) criado.
Não cabe no breve espaço de um post o comentário a todas as reflexões, desafios, pensamentos com que Charters de Almeida neste livro nos deixa. O que é bom. 
Cabe ao seu leitor virar as páginas, parar  e escolher na sua íntima relação com os versos, que mais se aproximam do conceito dos Haikai taoístas, aquele que a si mesmo pode iluminar, numa relação com o seu inconsciente agora revelado. 
É o Tempo, que sendo longo, acaba por nos tocar. E concluímos, como ele faz no fim do livro: "A minha sobrevivência é o acto criativo".