ORHAN PAMUK
The Black Book, em nova tradução inglesa, de Maureen Freely.
The Black Book, em nova tradução inglesa, de Maureen Freely.
Não há contraste maior, ler Pamuk a seguir a qualquer outro livro, produto da nossa cultura europeia, ocidental. O nosso olhar lúcido, rápido, ao mesmo tempo próximo e distante, como acontece agora, no momento em que escrevo e posso seguir na televisão os progressos da guerra nas fronteiras da Turquia, os horrores do Ébola, a adiada condenação de Oskar Pistorius que matou a namorada, que fugia dele e se fechou na casa de banho para desgraça sua ( e dele?)-
Abro o livro de Pamuk e sou desde as primeiras linhas enredada num mundo que é todo seu, vejo pelos olhos dele, sinto e penso pela sua cabeça e coração. O alter-ego que surge na narrativa, debruçando-se sobre o corpo semi-adormecido ainda da mulher que ama já é, ao mesmo tempo, ele e outro. Um outro que será objecto da sua inquirição, com o qual se identifica por vezes plenamente, perdendo-se nele sem saber afinal quem é, se ainda é ele mesmo ou já definitivamente o outro que persegue.
Assim, na sua prosa de filigrana delicada, caminhamos, como caminhávamos com Proust (que ele cita) em direcção a um tempo perdido.
Mas não totalmente perdido, antes recuperado pela constante intromissão numa narrativa que oscila e envolve, evoca e recorda como se ali mesmo no instante narrado estive diante de nós a acontecer. A tradutora chama a atenção, no posfácio, a uma particularidade da língua turca (que eu desconhecia e explica muita coisa): não existem nesta língua nem o verbo ser nem o verbo ter. O que naturalmente levanta ao tradutor, e mesmo ao leitor, dificuldades acrescidas de entendimento aprofundado para encontrar o sentido verdadeiro, que pode ficar perdido entre palavras (lost in translation, como no filme..).
Se na poesia algum mistério até pode ser mais sedutor, na prosa a decisão não é fácil! Mas esta tradução foi feita a duas mãos, por assim dizer e podemos ficar seguros de que é tão fiel quanto o autor desejou e a tradutora conseguiu.
Apesar de uma primeira ironia sobre as epígrafes, não devem usar-se porque estragam o mistério do que se vai seguir (Adli) no capítulo I, Pamuk abre cada capítulo com uma epígrafe, ora de autor antigo ora moderno - cita Proust e percebe-se que Pamuk é um escritor cuja narrativa tem muito de proustiano no envolvimento permanente com o tempo, ora passado, ora presente, ora entre um e outro - e cita também, já no capítulo 19, Lewis Carroll, Alice in Wonderland (obra que eu própria não me canso de ler e reler, revela um pensamento quântico inesgotável...) aquele momento em que Alice se interroga:
"Was I the same when I got up this morning? I almost think I can remember I was feeling a little different. But if I am not the same, the next question is 'Who who in the world am I ?' ".
Ora esta é a interrogação permanente que se traduz nas intermináveis descrições, minuciosas até â exaustão, do nosso narrador, cuja mulher desapareceu, isto é, saiu sem lhe dizer nada e não voltou, e que ele suspeita que possa ter fugido com um colunista que ele lia todos os dias, com admiração e alguma emulação, ao ponto de se confundir com ele, no que escrevia e quem sabe- esse é o ponto central- e no que vivia.
São um e outro ? São ao fim e ao cabo, o mesmo? no decurso da escrita? - Pamuk lembra que não há nada de mais chocante do que a vida (no capítulo II, epígrafe de Ibn Zerhani) a não ser a escrita.
Por uma razão que iremos acompanhando: na escrita tudo é possível, até o impossível que a vida não concede.
A escrita, única consolação com que termina a útlima página do romance.
Mas voltando ao princípio o narrador, o que salienta, após a descrição do olhar de Galip ainda meio adormecido, sobre o corpo da mulher estendida a seu lado, a mulher que ama e de quem tem ciúmes, é simplesmente que ele se lembrava que aquele jornalista seu preferido, Ce|âl, escrevera numa crónica que a memória era um jardim: Memory is a garden,(p-1). Logo Galip aproximou essa imagem da mulher, Ruya, e que esses seria os jardins de Ruya...
Pensar nisso era ser atacado de um ciúme que não conseguia evitar. Pensar nisso reenviava a sua imagem para os tempos felizes da infância em que sendo ambos crianças, ele e Ruya, passeavam de barco, com as pernas fininhas lado a lado, praticamente idênticas como nessas idades são os corpos indistintos das crianças. Tempo feliz.
Desse tempo tão longínquo datava o seu conhecimento, convívio, aproximação, casamento...e agora havia um colunista Celâl, que Galip idolatrava, não prescindindo de o ler todos os dias, sonhando poder um dia vir a escrever como ele. Celâl que era afinal um outro que se intrometia na relação de homem e mulher que ali tinha sido apontada, no início da narrativa.
A narrative corre depois em torno da ida embora de Ruya, deixando apenas uma nota de despedida, quando em páginas anteriores, e sob uma epígrafe de Rilke, se tinha falado de "família". Sel ela não havia mais família, e a dôr dessa perda ocupará muito do deambular do herói, e da obssessiva inquirição do outro, o tal colunista admirado, emulado, Celâl...
Continuando a ler, apercebemo-nos de que gradualmente o Mistério de que o autor nos vai falando, bebido também nos grandes clássicos da cultura árabe, como as Mil e Uma Noites, ou as muitas lendas e pequenos contos moralizantes da herança turca, é um mistério que ultrapassa as memórias de infância, de Galip e de Ruya, e se desenvolve nas páginas de antigos manuscritos que o seu pseudo-rival, Celal, também teria lido.
Nesses folios antigos, roídos pelo tempo, ou nas páginas da transcrição recente , aí, na leitura, no entrelinhado de um alto pensamento, descobre o autor o peso da palavra, escrita, lida, transcrita, relida, viva - a palavra para sempre viva - que fará dele o que ele é : um escritor, com a paixão da escrita.
Um escritor que transpõe no que escreve o que a memória da sua pátria (sim, ele tem uma pátria cultural, ainda que atravessada por dois lados opostos, como relembra numa das lendas que recupera, da divisão eterna entre os lados do oriente e do ocidente) lhe transmite.
Não é apenas a infância feliz, e cheia de interrogações, é um passado que abre, no presente, as mesmas interrogações (voltávamos a Alice) sobre o valor da história e da memória.
Mas para se chegar à solução final desse Mistério absoluto teremos de concluir, com Galip, todo o caminho feito: um caminho por dentro da memória, por dentro da sua antiga herança, e pela meditação do que aceita ou recusa, o poder afirmar quem é e o que é. Ele é um contador de histórias, na melhor tradição turca, ele é um escritor que reinventa a palavra, na melhor tradição do ocidente. Faz a ponte, entre Celal e Galip, num impulso de androginia cultural assumida.
Uma escrita carregada de sonhos (o passado, o corpo de Ruya a dormir ainda, virada de costas) carregada da inquirição do presente:tudo o mais que sucedeu.
Apesar de uma primeira ironia sobre as epígrafes, não devem usar-se porque estragam o mistério do que se vai seguir (Adli) no capítulo I, Pamuk abre cada capítulo com uma epígrafe, ora de autor antigo ora moderno - cita Proust e percebe-se que Pamuk é um escritor cuja narrativa tem muito de proustiano no envolvimento permanente com o tempo, ora passado, ora presente, ora entre um e outro - e cita também, já no capítulo 19, Lewis Carroll, Alice in Wonderland (obra que eu própria não me canso de ler e reler, revela um pensamento quântico inesgotável...) aquele momento em que Alice se interroga:
"Was I the same when I got up this morning? I almost think I can remember I was feeling a little different. But if I am not the same, the next question is 'Who who in the world am I ?' ".
Ora esta é a interrogação permanente que se traduz nas intermináveis descrições, minuciosas até â exaustão, do nosso narrador, cuja mulher desapareceu, isto é, saiu sem lhe dizer nada e não voltou, e que ele suspeita que possa ter fugido com um colunista que ele lia todos os dias, com admiração e alguma emulação, ao ponto de se confundir com ele, no que escrevia e quem sabe- esse é o ponto central- e no que vivia.
São um e outro ? São ao fim e ao cabo, o mesmo? no decurso da escrita? - Pamuk lembra que não há nada de mais chocante do que a vida (no capítulo II, epígrafe de Ibn Zerhani) a não ser a escrita.
Por uma razão que iremos acompanhando: na escrita tudo é possível, até o impossível que a vida não concede.
A escrita, única consolação com que termina a útlima página do romance.
Mas voltando ao princípio o narrador, o que salienta, após a descrição do olhar de Galip ainda meio adormecido, sobre o corpo da mulher estendida a seu lado, a mulher que ama e de quem tem ciúmes, é simplesmente que ele se lembrava que aquele jornalista seu preferido, Ce|âl, escrevera numa crónica que a memória era um jardim: Memory is a garden,(p-1). Logo Galip aproximou essa imagem da mulher, Ruya, e que esses seria os jardins de Ruya...
Pensar nisso era ser atacado de um ciúme que não conseguia evitar. Pensar nisso reenviava a sua imagem para os tempos felizes da infância em que sendo ambos crianças, ele e Ruya, passeavam de barco, com as pernas fininhas lado a lado, praticamente idênticas como nessas idades são os corpos indistintos das crianças. Tempo feliz.
Desse tempo tão longínquo datava o seu conhecimento, convívio, aproximação, casamento...e agora havia um colunista Celâl, que Galip idolatrava, não prescindindo de o ler todos os dias, sonhando poder um dia vir a escrever como ele. Celâl que era afinal um outro que se intrometia na relação de homem e mulher que ali tinha sido apontada, no início da narrativa.
A narrative corre depois em torno da ida embora de Ruya, deixando apenas uma nota de despedida, quando em páginas anteriores, e sob uma epígrafe de Rilke, se tinha falado de "família". Sel ela não havia mais família, e a dôr dessa perda ocupará muito do deambular do herói, e da obssessiva inquirição do outro, o tal colunista admirado, emulado, Celâl...
Continuando a ler, apercebemo-nos de que gradualmente o Mistério de que o autor nos vai falando, bebido também nos grandes clássicos da cultura árabe, como as Mil e Uma Noites, ou as muitas lendas e pequenos contos moralizantes da herança turca, é um mistério que ultrapassa as memórias de infância, de Galip e de Ruya, e se desenvolve nas páginas de antigos manuscritos que o seu pseudo-rival, Celal, também teria lido.
Nesses folios antigos, roídos pelo tempo, ou nas páginas da transcrição recente , aí, na leitura, no entrelinhado de um alto pensamento, descobre o autor o peso da palavra, escrita, lida, transcrita, relida, viva - a palavra para sempre viva - que fará dele o que ele é : um escritor, com a paixão da escrita.
Um escritor que transpõe no que escreve o que a memória da sua pátria (sim, ele tem uma pátria cultural, ainda que atravessada por dois lados opostos, como relembra numa das lendas que recupera, da divisão eterna entre os lados do oriente e do ocidente) lhe transmite.
Não é apenas a infância feliz, e cheia de interrogações, é um passado que abre, no presente, as mesmas interrogações (voltávamos a Alice) sobre o valor da história e da memória.
Mas para se chegar à solução final desse Mistério absoluto teremos de concluir, com Galip, todo o caminho feito: um caminho por dentro da memória, por dentro da sua antiga herança, e pela meditação do que aceita ou recusa, o poder afirmar quem é e o que é. Ele é um contador de histórias, na melhor tradição turca, ele é um escritor que reinventa a palavra, na melhor tradição do ocidente. Faz a ponte, entre Celal e Galip, num impulso de androginia cultural assumida.
Uma escrita carregada de sonhos (o passado, o corpo de Ruya a dormir ainda, virada de costas) carregada da inquirição do presente:tudo o mais que sucedeu.