Numa bela edição, a Ática regressa ao eterno amor que é Fernando Pessoa, em Portugal e no mundo.
Lembro-me de ler, quando jovem estudante em Coimbra, o heterónimo Ricardo Reis, na edição da Ática. Eu lia nessa altura sobretudo Pessoa e Sophia de Mello Breyner, além de Jacques Prévert, mas este não constava ainda da esfera da gente culta do tempo.
Pela mão deste investigador, Jerónimo Pizarro, que fez da obra de Pessoa o centro da sua actividade, e ainda bem, pois houve uma altura em que o espólio quase parecia esquecido entre o sono e o sonho, caros ao poeta vão saindo novidades, como esta.
O primeiro mérito, que saúdo, é ter recuperado para uma editora como a Ática, nesta chamada Nova Série um espaço que espero seja alargado a outros, poetas e prosadores.
Recordo Helena Cidade Moura e David Mourão-Ferreira como ilustres consultores no início dos anos sessenta, quando eu mesma, pela mão deles, ali publiquei poesia e romance.
Era um tempo em que os editores nos liam, falavam connosco e não apenas com o mercado. Nenhum deles, apesar de eu ser ainda tão nova e estreante me perguntou que tiragem média acha que pode vender?
Foi também nesses anos, e pela mão de Helena e de David, que li pela primeira vez Herberto Helder, e desde aí sempre, e festejo agora em pensamento os seus 80 anos, e um disco, lançado hoje, contendo poesia sua. O disco, para quem tenha curiosidade, é de Joana Machado e chama-se Travessia dos Poetas- Rosapeixe.
Mas basta de saudade e vamos ao Pessoa:
O grande interesse desta edição é mais uma vez verificar como era incessante o trabalho do poeta, tentando, pela escrita, pela tradução, pelos inúmeros projectos dos quais muitos nunca chegariam a bom termo, fazer pela vida ( para usar um termo já usado por António Mega Ferreira ).
Mas fazer pela vida sempre num espaço seu e muito próprio, o das letras, nacionais ou estrangeiras como seria aqui o caso.
Útil para o estudioso ou o simples leitor é a recolha paciente: são os provérbios portugueses que Pessoa foi encontrando em variadas fontes, de que J.Pizarro nos vai dando conta.
Em ano de celebração da República vale a pena distinguir o fac-simile da Bibliotheca do Povo, n.45, de Novembro, que Pizarro reproduz.
Sim, houve um tempo em que se dava especial atenção ao povo e às escolas, e se ofereciam, em pequeno formato, algumas boas bases de tradição e memória.
Na sua introdução, muito informada e cuidada, o autor faz o percurso comentado das fontes, tanto das que Pessoa citou explicitamente como daquelas que utilizou.
E seguem-se as transcrições do espólio, nas duas línguas.
Que a letra de Pessoa é difícil de ler e logo aí quem o transcreva merece prémio (se existe) e elogio - não há dúvida.
Mas quanto à capacidade de tradutor do nosso poeta, já ponho algumas reservas.
Nem sempre dar a conhecer ao mundo tudo o que ficou num espólio, mesmo de um grande, como é o caso, favorece a sua imagem. Pessoa traduz muito bem do inglês para português, como se vê pelas traduções de Poe, ou do mago Crowley; seria magnífico se nos tivesse dado algum Shakespeare, ou um Whitman, tanto do seu agrado (veja-se a biblioteca).
Mas já não consigo dizer o mesmo da "retroversão".
Provérbios, bem como frases idiomáticas, sabemos que não se podem traduzir à letra de uma língua para outra. Há que encontrar as formas equivalentes, próprias da tradição, memória e uso corrente de cada língua, de cada país para o qual se tente fazer esse trabalho.
E ao contrário do que muitos ainda e sempre defendem, Pessoa não era um bilingue-nato e não era perfeito, nem no inglês (nem no francês). Não me admira que o editor inglês, delicadamente, não tenha dado andamento ao projecto.
Falta que Jerónimo Pizarro, a quem de novo felicito pelo seu trabalho, nos diga se encontrou na biblioteca de Pessoa algum dicionário de provérbios ingleses que pudesse ter dado ao poeta a indicação correcta de como melhor traduzir, neste caso adaptar, os nossos exemplos aos outros, mantendo um pouco do ritmo, para já não dizer do sentido e da ideia.
Peço ao poeta que lá na sua esfera luminosa e distante me perdoe, nos perdoe.
Alguém devia fechar a arca, respeitosamente, como quem fecha um caixão...
Damos a lume o que ele talvez, se fosse vivo, pensando melhor, queimasse.
Dirão: mas o estudioso....é verdade, para o estudioso tudo é útil, daí o mérito do editor.
Mas haverá assim tantos estudiosos?
Se há, na era da digitalização, essa devia ser a forma ideal escolhida.
Escolho só um dos muitos maus exemplos possíveis:
"quem anda na guerra dá e leva", " who is in the war gives and takes".
Um nonsense total, para o hipotético leitor inglês.
Porque se no coloquial português sabemos que dar e levar é "dar e levar pancada" (porrada seria o termo mais popular) os termos "give and take" em inglês não têm este significado, e imagine-se a cara de espanto do nativo: gives what? takes what?
Enfim, acho que me fiz entender, em português corrente.