Tuesday, November 12, 2024

João Paulo Esteves da Silva, No Outro Mundo, ed. Averno, 2024

 De João Paulo Esteves da Silva, tudo o que nos chega não é do outro mundo, é mesmo deste e é sempre surpresa. Pois só deste mundo nos podem chegar surpresas, melhores ou piores, mas ainda não conhecidas....

Como os seus temas, quando se senta ao piano, que acordes nos chegarão aos ouvidos, mais intensos, mais líricos, ou tão subtis que não chegamos a ouvi-los, ficaram escondidos na sua cabeça, como as caras que Michaux procura em aguarelas desfeitas e nem sempre as revela ou as encontra e prefere destruir.

Não sei se é porque tanto gosto desta sua poesia secreta, ou porque estou ainda influenciada pelas Emergências de Michaux que traduzi há uns dias, que agora me ocorre trazer os dois poetas a esta página.

É na página branca que surge a palavra, ou o desenho, e logo na capa do livro o que temos é precisamente a mão, que alguém desenhou para que de longe, o tal outro mundo do título se manifeste, ao alto. Com garras, como se quisesse ir buscar o que não estava a ser dado, e certamente com João Paulo, o secreto e o severo nunca iriam a sê-lo. Desafiante, longe dos imediatos sucessos, seria preciso abrir mais aquela mão que aponta mas não agarra. João Paulo não pertence à geração da moda do querer ter, e ter logo, sem grande esforço. A sua obra é feita de uma procura difícil, muito lenta e paciente, de um alfabeto antigo, primordial, em que o sinal desenhado contivesse um som e um sentido.

Vejamos o primeiro poema desta recolha feita de 2019 até 2022:

Milagre Matinal

O jovem melro ainda não sabe voar.

O tempo vem mas passa lento e ele perde a paciência,

lança-se do ninho e cai redondo no chão.

O cantor pega nele com duas mãos extremamente cuidadosas,

aproxima-o da boca, sussurra-lhe algo ao ouvido e abre as mãos:

o melro sai a voar como um príncipe.

Parece este poema o comentário ao que eu  estava a dizer, imperfeitamente.

Há um princípio e um tempo certo, é preciso com paciência saber esperar.

O vôo que o cantor lhe ensina, quando o apanha do chão, é dessa lição que fala, do tempo e da paciência. São o segredo da alma, a energia secreta, tão ligeira que apenas se pode sussurrar, e assim lhe liberta o vôo desejado.


Em Quelques Regrets a narrativa é citadina - sim, um poema pode ter e ser narrativa - não é afinal tudo o que dizemos, tudo o que sentimos, narrativa? Explícita ou implícita? O que se diz, ou não se chega a dizer, sem um tal esforço não existe. O esforço é o do tempo em que temos de pacientar. Neste poema, o acento deve recair sobre o que se procura, a música, e não o materializável imediato:

...enfim,  eu não queria brincar, nem mesmo sonhar,

queria encontrar a música nas coisas palpáveis, 

queria ir ter com ela, na vida, e depressa.

Demasiado depressa.

Alguém que ia com ele não o acompanhava e dá-se uma separação dolorosa.

Mas da separação pouco se fala, este não é um poema de amor infeliz e carregado de lágrimas, "baba e ranho", ao modo realista de que o poeta se afasta, embora possa ter alguma pena do sofrimento causado.

Não, mais uma vez é da música e do seu tempo - o tempo certo  - como para Michaux foi da pintura, para lá da palavra, que sempre se tratou, juntamente com o tempo. O tempo certo.

Noutro poema adiante, numa viagem, incómoda mas apesar de tudo prazenteira, entre aldeias, ouvia uma evocação de Mozart, o Ave Verum Corpus, entre a brutalidade de um berbequim que furava o universo e o partia.

Assim, em plena vida moderna, vive o poeta a sua vida, musical e solitária, que por vezes corre entre montanhas altas onde chove música e como nascem sóis. E prefere ainda assim o dom  da Lisboa que lhe é dada e o leva a querer mais. (RELEVO).

Continuando a leitura, iremos descobrir o quotidiano, a evocação da família, dos namoros da adolescência, estes com humor que bem podiam dar um conto, mas João Paulo é como se deve ser, uma vez dito o que havia a dizer está dito e basta um ponto final, como a última nota de um acordo perfeito.  O menos, e retomo o eterno Celan, é mais.

 Este livro abre as mãos sobre uma Lisboa (e uma vida) muito citadina e contudo interrompida por um olhar que comenta e apesar de amar, a critica.  Nem o célebre pénis de Cutileiro que a tantos ofende, a ele lhe move um centímetro de reacçaõ  indignada, apenas se limita a comentar que não é arte.

Esta espécie de olhar que observa e descreve é para poder retomar a seguir o que lhe move a alma: a música.  O resto são narrativas, estão ali, podiam estar noutro  livro, noutro espaço, o da velha casa de onde saíram e onde por vezes ia passar um fim de dia, até ouvir a mãe falar com ele.

Havia memórias naqueles espaços, coisas aconteciam, que ele recolhia nas suas mãos estendidas. 

Contudo estamos perante uma poética de distanciamento, como a brechtiana, que sem nomear ele pratica. É a sua marca de estilo, é o que o distingue de tantos outros autores que por aí proliferam em busca de empatias e de sucessos rápidos, mas a quem falta o secreto sussurro do Cantor no ouvido.



Sunday, November 10, 2024

 


A NOITE

(sobre um quadro do Pedro Chorão)

A NOITE

Sim

demora o dia

diante do céu azul

julgas

que nunca verás

a tarde anoitecer

a tarde demora ainda

alonga o tempo

e tu vives o tempo

que demora e engana.

Não é teu esse tempo

ficção do teu desejo

que a noite nunca chegue

estava tão longe ainda

quando nascia o dia

na luz intemporal

engano

a noite chega sempre

tem um lugar marcado

que não vemos

e é mesmo ao nosso lado.

 

10 de Novembro, 2024

 A LUZ

(à Fernanda Portela

in memoriam)


Não morreu

levou consigo a luz

que estava presa na treva

e lhe tolhia a vida

que Perséfone pedia

se distribuísse

pelas terras de fome

onde pela sua mão

nova luz nasceria.

Pão de amor e de vida

que só ela

dentro de si guardava

e distribuía

Y.C.

10 de Novembro, 2024

 

Friday, November 08, 2024

Henri Michaux - Tradução

Henri Michaux
Émergences-
Résurgences,
1972
Emergências-Ressurgências
tradução de Yvette K. Centeno


Nascido, educado, instruído num meio e numa cultura unicamente do "verbal"
pinto para me descondicionar. E antes da época da invasão das imagens.

Também eu, um dia, tarde, adulto, tive uma vontade de desenhar, de participar no mundo através de linhas.
Uma linha em vez de linhas. Assim começo, deixando-me levar por uma, uma única, que sem deixar levantar o lápis do papel deixo correr, até que por força de vaguear sem se fixar nesse espaço reduzido é forçada a parar.
Um emaranhado é o que então se vê, um desenho como que desejoso de entrar em si mesmo. 
O que faço é então simplesmente um desenho pobre, como faz aquele que toca guitarra só com um dedo?

Tal como eu a linha procura sem saber o que procura, recusa as descobertas imediatas, as soluções que se oferecem, as tentações primeiras. Impedindo-se de chegar, linha de investigação cega.
Sem levar a nada, só para embelezar ou tornar interessante, atravessando-se a si mesma sem hesitar, sem se desviar, sem se enrolar, sem ter nada em que se enrole, sem descobrir um objecto, uma paisagem, uma figura. Não tropeçando em nada, linha sonâmbula. Por vezes curva, mas sem prender. Sem rodear nada, e nunca rodeada.

Linha que ainda não fez a sua escolha, não preparada para uma conclusão.
Sem preferência, sem acentuação, sem ceder por completo às atracções.
Que vigia, que vagueia. Linha celibatária, que assim deseja permanecer, mantendo as suas distâncias, que não se submete, cega para o que é material. Nem dominadora, nem acompanhante, e acima de tudo não subordinada.

Mais tarde os sinais, certos sinais. Os sinais dizem-me qualquer coisa. Gostaria de os fazer, mas um sinal é também um sinal de paragem. Mas neste tempo tenho outro desejo, um acima de todos os outros. Queria um continuum. Um continuum como um murmúrio que nunca acaba, parecido com a vida, que é o que nos continua, mais importante que qualquer qualidade.
Impossível desenhar como se esse continuo não existisse. É ele que devemos transmitir. 
Falhanços.
Falhanços.
Tentativas. Falhanços.

À falta de melhor, traço uma espécie de pictogramas, ou antes trajectos pictografados,  mas sem regras. Quero que os meus traçados sejam o fraseado mesmo da vida, mas flexível, mas deformável, sinuoso. À minha volta os movimentos desconfiados das cabeças que me querem bem, embaraçadas... estava a perder-me...em vez de escrever, pura e simplesmente. 
O que correspondia a uma necessidade extrema que a mim me parecia tão natural como a necessidade de água de pão e de dormir, não correspondia a nenhuma necessidade para os que me rodeavam. Viam acima de tudo o submisso incomodado, tímido.
E como não o ser? Como ousar sem maneiras, intervir?  
Que impertinência, um tal desejo!
Não fui educado no desenho, eu. São as minhas primeiras saídas.
Tenho de me habituar ao descaramento do condutor.
Falhanços. Não absolutos (um certo embrião...talvez para mais tarde).
Abandono.

Adormeço o meu desejo. Faço algumas viagens. A fonte da escrita não secou, volta ser-me lembrada.


Muito haveria aqui para reflectir sobre o que é o princípio, num criador. A primeira linha, neste caso, que de mão livre conduzirá até a um novelo apertado, o primeiro verso, o primeiro acorde, a primeira pincelada. Não se chega sem mais ao final do processo. Pode demorar dias, meses, anos, mas aqui Michaux declarou que escolheu, como principiante, pois cresceu no mundo da palavra, mas tinha decidido experimentar esse outro mundo do desenho que lhe pareceu mais desafiante: uma folha de papel, um lápis de ponta afiada pousada com a mão sobre ele, sem nunca se levantar, desenhando um fio que seguia, livre, pelo branco, ora a direto, ora virando, ora abrindo ora fechando o espaço à frente, seguindo sempre na busca do que nem o poeta nem a mão nem o lápis sabiam bem ao certo. À sua volta a família, os amigos, desconfiavam de que aquele exercício, de tom surrealista, não levaria a nada. Mas foi levando, a círculos, sempre de lápis pousado e sem interrupções, a uma espécie de novelo, cada vez mais enrolado, mais enrolado, que dificilmente se poderia desfazer. Pois seria necessário descobrir o fio inicial com que tudo começara. Falhanço, escreveu Michaux, e abandona, mas com a sensação de que havia ali e ali ficara uma espécie de embrião.
Nas viagens que faz vai ao Japão. Mas ali perde-se nos sinais, comenta é um incapaz aquele que com os sinais não sabe significar. São sinais gráficos.
Vou-me embora. Parto incapaz.
Choque e vergonha no Japão.
 Voltemos atrás, recordando que o poeta procurava sinais, não uns quaisquer sinais, mas um sinal que fosse condutor, um certo sinal com um certo apelo, que ele ainda só pressentira.


Mas é a pintura chinesa que entra em mim com profundidade, me converte. Assim que a vi fui definitivamente conquistado pelo mundo dos sinais e das linhas.
Os longes preferidos ao próximo, a poesia da incompletude preferida ao resumo final, à cópia.
Os traços lançados, esvoaçantes, como apanhados pelo movimento de uma inspiração súbita e não traçados prosaicamente, laboriosamente, exaustivamente como se fossem funcionários, eis o que me falava, me agarrava, me levava.
A pintura, desta vez, tinha ganho a sua causa.


Regresso.
A Ásia, agora longe, regressa, submergindo-me por momentos, por longos momentos.
Os países em que contou soberanamente "a Paz profunda" não me abandonaram. Invasão profunda. Invasão ao retardador. Ressurgência.
País lembrando período.
Na minha infância, sem compreender, sem comunicar, distante, considerava as pessoas à minha volta, a sua agitação sem sentido, a sua intranquilidade.
Em mim paz, distanciamento, eram combatidos. Criança no Ocidente.

E a pintura? E o que tinha prometido começar?
Embaraço: só quero aprender de mim, mesmo se os caminhos não são visíveis, não estão traçados, ou nunca mais acabam, ou param subitamente. Também não quero "reproduzir" nada do que já esteja no mundo.
Se escolho antes seguir por traços do que por palavras, é sempre para entrar em relação com o que tenho de mais precioso, de mais verdadeiro, de mais confinado, de mais "meu", e não com formas geométricas, ou tectos de casas ou bocados de ruas, ou maçãs e arenques num prato: foi para essa procura que parti.
Dificuldades. Afundamento.

Aos escritos falta "rusticidade". 
Alguns homens puderam, em poemas, provérbios, aforismos, utilizar apenas um pequeno número de palavras e poucas ligações, "fazendo-se pobres". O Rico a brincar ao pobre.
Imenso pré-fabricado que passa de geração em geração, a língua, para condenar a seguir, a ser fiel, que leva a mostrar um importante estatuto.
A flauta de bambú trocada pela orquestra.

Na pintura, o primitivo, o primordial encontra-se melhor.
Passa-se por menos intermediários que não são de verdade intermediários, não pertencendo a uma linguagem organizada, codificada, hierarquizada.
Podemos pintar com duas cores (desenhar com uma). Três, quatro, no máximo, foram durante séculos suficientes para os homens fazerem algo de importante, de capital, de único, que de outro modo teria sido ignorado.
Palavras são outra coisa. Até as tribos menos evoluídas têm milhares, com ligações complexas, numerosos casos exigindo um manejamento "sábio". 
Não há uma língua verdadeiramente pobre. Com a escrita ainda por cima é pior.  Atravancada pela abundância, o luxo, o número de flexões, de variações, de subtilezas, se a fazemos "bruta", se a falarmos bruta, é contra a sua vontade.

Em geral surpreendidos quando pensam nisso, os homens de todo o lado, mesmo os das grandes civilizações, concluíam que um deus outrora lhes teria dado esse presente.
Presente envenenado.
A escrita como único pilar era o desequilíbrio.
Escrita demasiado próxima de outros territórios, filosofias (de que por vezes não se distingue, que ela engloba, ou nas quais é englobada...), das ciências do homem, do seu comportamento, das reacções do seu corpo.
Quando reconheciam que eu tinha, nesta ou naquela página descrito bem alguns traços raros, eu teria preferido ter encontrado a anafilaxia.
(uma alergia).

Problema novo: o lugar que falta, o local.
Aos trinta e cinco anos ainda tenho medo de possuir. Um atelier ou um quarto com mobília, já algo de estável, é transformar em sedentário o meio-nómada que ainda éramos.
Outra ameaça de fixação: a própria pintura criando, como é sabido pelos pintores, um estado de necessidade. Eis o que poria fim às minhas súbitas viagens, às minhas partidas repentinas.
Cuidado com a submissão!

Hesitação. Transição. 
Num apartamento emprestado, rodeado de árvores...encho de desenhos folhas de papel. Depois rasgo-os. A seguir recomeço. Ao acaso. Volto a rasgá-los. Rasgo-os. Guardar torna-se depressa irritante.
O meu prazer é fazer que surjam, que apareçam, e depois fazer desaparecer.

O local: uma pequena garagem sem uso, nos arredores, em casa de J.F. Não é conhecedor de pintura, conhecedor de começos, sabe reconhecer o que floresce.
Secreto, não se revelando, recusando-se a "aparecer".
Não é como aqueles que agem, escrevem, sobem à superfície, em quem só aparece a superfície, ele sabe permanecer abaixo disso. Aparentando só falar consigo mesmo, algumas palavras que mais são marcos, impressões de base, somente de base.

O livresco não deixou nele nenhum traço.
O nascer do dia, o crepúsculo e o mais, a maré que sobe, o jusante, a brisa que sopra, esses grandes ofícios da natureza, assistimos com ele como o primeiro dia do ser.
Isto acontece nos anos de antes da guerra, uma guerra que com gritos, berros, ameaças, invasões, cercos, infiltrações, fazia o seu casulo, o seu imenso casulo continental que ainda aumenta.
A sua enorme extensão em breve vai parar tudo.
Entretanto chegam algumas personagens e cabeças, irregulares, acima de tudo inacabadas. Olha!
Por que não plantas, animais?
Em todos os inacabados encontro cabeças. Cabeças, dêem-me momentos, procuras, inquietações, desejos, o que faz avançar tudo, e tudo combina e aprecia...incluindo o desenho. Tudo o que é fluido uma vez parado transforma-se em cabeça. Como cabeças reconheço todas as formas imprecisas.

" Porquê, diz alguém, não pintar antes sobre fundo preto? Ou mesmo simplesmente sobre folhas de papel preto?"
Assim que começo, assim que coloco na folha de papel preto algumas cores, ela deixa de ser folha e passa a ser noite. As cores colocadas quase ao acaso transformam-se em aparições...que saem da noite.

Cheguei ao negro. O negro devolve ao fundamento, à origem. 

Base dos sentimentos profundos. Da noite vem o inexplicável, o não-detalhado, o não-agarrado a causas visíveis, o ataque de surpresa, o mistério, o religioso, o medo...e os monstros, o que sai do nada, não de uma mãe. Aquilo que dá à luz uma vida interessante. Nos países de luz forte, como os países árabes, o comovente é a sombra, as sombras vivas, individuais, oscilantes, pictóricas, dramáticas, levadas pela chama frágil da vela, da lâmpada de azeite ou mesmo da tocha, outras
desaparecidas deste século.
Escuridão, antro de onde tudo pode surgir, onde é preciso procurar tudo.

Nesta afirmação que parece tão simples e é na realidade tão complexa, a de chegar ao negro, Michaux descobre finalmente o mistério que tanto procurava, da criação que viesse do nada, que o surpreendesse, lhe permitisse finalmente erguer o lápis acima do papel para encontrar o sentido profundo da escolha que fizera, de pintar. O negro e a luz que da treva emana, a travessia da nigredo alquímica que o levaria ao ouro da sua produção agora entendida e continuada.  

Escuridão, antro de onde tudo pode surgir, onde é preciso procurar tudo.
E na verdade, mesmo sem procurar muito, da treva experimental vão surgindo formas, esbatidas primeiro, mais detalhadas depois, monstros, como ele diz, traços coloridos filiformes, ou em folhas de papel como se fossem telas, manchas acumuladas de negro e de mais negro, as "tintas" como se dizia, em variados tamanhos. Essas tintas evocavam ainda os primeiros rabiscos de lápis no papel, pelo modo indeterminado como iam surgindo, sem direcção pré-definida. A pintura seguia o seu caminho, os pesadelos já lhe traziam a alegria do acabado nunca acabado de verdade

…tudo o que conta, o que são órgãos, função, ou máquina, tudo o que é secreto está escondido da luz. 
No negro o que importa conhecer é que é na noite que a humanidade se formou na sua primeira idade, e onde viveu a sua idade média. Mais tarde chegou a época do dia à vontade, do dia sempre...acabada a submissão, livre de pensamento, de apreensão, de respeito. 

Eu já tinha pintado aguarelas.
Contudo tinha ficado em mim uma reticência. Não tinha sido precipitado para elas. Ora é só quando sou precipitado para dentro delas que elas valem, que elas respondem. Ignorava que me estava a conter.


Um acidente. Grave. Muito grave. Com uma pessoa que me era próxima. Tudo cessa. Não tem muito sentido, o real, o outro real, o real da distração, que não diz respeito à Morte. 
Num hospital a sorte não se decide. Nem pela cura nem pelo abandono.
Os meus dias passam-se ali, tento não ver, não deixar ver que a Morte... mas esse nome nunca será pronunciado. Tenho de dar esperança, dar coragem.
Ao regressar de um dia no hospital, uma tarde de lassidão e esgotamento, penso em olhar para imagens. Pelo menos penso que é o que vou fazer. Abro uma pasta de cartão. Tem lá algumas reproduções de obras de arte. Quero lá saber! Afasto-as vivamente. Já não posso entrar nelas. Algumas páginas de papel branco estão a seguir. Mudadas também elas. Imaculadas parecem-me
estúpidas, odiosas, pretensiosas, sem relação com a realidade. De mau humor, começo, agarrando uma delas, a pôr-lhe em cima algumas cores escuras, projectando ao acaso, amuado, esguichos de água, não para fazer algo de especial, e muito menos um quadro. Não quero fazer nada, só quero desfazer. De um mundo de coisas confusas, contraditórias, tenho de me desfazer. Com a caneta, riscando raivosamente, dilacero as superfícies para as ferir, como a ferida durante todo o dia foi entrando em mim, fazendo do meu ser uma chaga. Que deste papel saia também uma chaga!


Por que razão não tentar antes escrever?
Escrever!
Palavras? Não quero nenhumas. Abaixo as palavras. Neste momento nenhuma aliança com elas é concebível. 
Estou para além disso. Preciso de me abandonar, de abandonar tudo, de mergulhar num desencorajamento geral, sem lhe resistir, sem querer explicá-lo, como um homem abalado pelos choques, que aspira a abalar-se ainda mais. Preciso de me libertar das cadeias de mentiras e da minha postura falsamente calma, das afirmações de esperança ou de confiança no futuro que dei quando perdi a confiança. Mais uma vez tudo caiu.
Mais uma vez a inanidade da vida que depende de um nada, o absurdo e a falsidade de toda a harmonia, a estupidez de qualquer projecto impõe-se - e o mundo assustador e imenso do sofrimento nunca longe, que fecha a boca e tudo o mais.
Por isso, para me aliviar um pouco, a pintura é mais conveniente. A minha impreparação quase total.
A minha ausência de saber, a mina incapacidade de pintar, preservada até esta idade avançada, permitem que me desleixe, que possa fazer de tudo - e sem me forçar - na desordem, na discordância e no estrago, o mal e o sentido de pernas para o ar sem malícia, sem regresso, sem retoma, inocentemente.

Atiro água ao assalto dos pigmentos, que se desfazem, se contradizem, se intensificam ou se transformam no seu contrário, humilhando as formas e as linhas esboçadas, e esta destruição, o troçar de toda a fixidez, de todo o desenho, são irmã e irmão do meu estado que já não vê nada que fique em pé.
Trazidas pelos gestos bruscos, desordenados, pela chegada de líquido atirado ao acaso sobre as cores logo dispersadas em remédios ou manchas que escorrem, pela lembrança dos doentes lívidos, descarnados, nas salas abomináveis do hospital decrépito, entrevistos durante o dia (e pelo que eu tinha ouvido contar dos seus casos trágicos) cabeças infelizes, no máximo desespero, apareciam no papel, cabeças ou fragmentos da cabeças, desolações de ser, como se já estivessem todas prontas, esperando apenas que o meu gesto, esboço de homem desesperado por chegar, trazendo-lhes a elas a miséria de verdade, desordenada, juntando-se a mim em farrapos.

O caminho para o alívio, uma vez encontrado, tive sempre que o seguir daí em diante.
esta maneira de pintar deveria ir cessando, pouco a pouco, mas não cessou - nunca mais cessou. 

Conhecendo o drama pessoal de Henri Michaux, nesta fase, a dôr da sua perda e o sofrimento horrível a que foi assistindo sem esperança de recuperação, nem de retorno a uma vida normal, equilibrada, percebemos bem a revolta, a fúria, o ódio, o impulso para a destruição do que foi e que é, e sabe que não é possível esquecer.
Não há palavras que exprimam, e ainda menos que salvem. Daí que a pintura, que faz e que desfaz seja a única opção, que abraça por exprimir melhor tanta desordem no que deveria ter sido uma perfeita harmonia.
As experiências psicadélicas  a que se entregou e parcialmente o destruíram, são bem descritas no volume de Misérable Miracle, em que define o erro em que tantos outros viriam a cair:  a ilusão que a droga ilumina o caminho, sublima a revelação do belo e do diferente tão desejado. Pura ilusão. A droga cega, ilude, confunde o banal com o que se deseja raro e único e é ao despertar que o artista se dá conta de como foi ludibriado por uma psique em estado comatoso.
Adiante, descobrir como o gesto de pintar é salvífico, mais do que a palavra difícil, fechada em si mesma, hermética, exigindo um longo percurso até poder ser pronunciada.

Carregadas de dezenas de anos de desarmonia, de incómodos, de tropeções em meios recusados as minhas pinturas tinham de ser feitas, precisavam de ser feitas, pelo caminho da desordem, da selvajaria, da aniquilação.
Sempre na dissolução, como um precedente necessário, é a isso que eu tenho de recorrer. 


De todos os fracassos da minha vida esta pintura de água é a constante lembrança e é também a solução. Triunfo pelo próprio apagamento, não sem algum escândalo que sinto, tornam-se em sucesso (!) ou, para além disso, me libertam do que mais odiei, o estático, o paralisado, o quotidiano, o previsível, o fatal, o satisfeito. Nunca consegui fazer uma pintura de água que fosse válida, sem ausência, sem pelo menos alguns minutos de verdadeira cegueira.
Espontânea. Sobre-espontânea. A espontaneidade, que na escrita já não existe, transportou-se para ali onde está mais à vontade, podendo pôr de parte mais naturalmente a reflexão.
Já não discuto. Nunca faço retoques, correcções. Não procuro fazer isto ou aquilo; parto ao acaso na folha de papel, e não sei o que vai aparecer. Só depois de ter feito quatro ou cinco de seguida espero por vezes ver chegar por exemplo umas caras. Há caras no ar. De que género? Não faço a mínima ideia.


Mas depois de meses, de semanas, se olho para elas...
Não, não quero fazer de detective.
A obra deve ficar a black box (caixa negra). Viva ou morta. Mais nada. Se não fôr assim, cesto de papéis!
O problema daquele que cria, problema sob o problema da obra, - é talvez por ter orgulho ou por ter vergonha secreta - o do renascimento, do perpétuo renascimento, pássaro fénix renascendo periodicamente, espantosamente, das suas cinzas e do seu vazio.
A contratempo, com a incessante esperança de o matar, - e que conseguem reduzi-lo - os incapazes de criação apresentam-se e propõem a análise do ovo.


O aviso. Faz falta a perturbação. Ao menos a perturbação. Perturbo primeiro o papel. A seguir, outra perturbação, um não sei o quê de que não quero tomar consciência nem em palavras, nem em pensamentos, nem em vagas recordações.
Do que me aproximo não quero saber, nem procurar. Felizmente tenho má memória, tanto na calma como na indecisão.
Papel perturbado, de que saem caras, sem saber o que estão a fazer ali, sem que eu o saiba. Exprimiram-se antes de mim, saindo de uma impressão que não reconheço, de que nunca saberei se antes fui atravessado por ela. São as mais verdadeiras.


Sinais que regressam, não são os mesmos, nada do que eu queria fazer, e ainda menos tendo em vista uma linguagem,  saindo do tipo homem, onde braços e pernas e busto podem faltar, mas homem pela sua dinâmica interior, torcida, explodida, que submeto (ou que sinto submetida) a torções e estiramentos, expansões em todos os sentidos.
Em forma de raiz? Homem mesmo assim, um homem que conta com o cego subterrâneo para depois chegar à luz do dia.
Em centenas de páginas, um a um, enumerados (quatro ou cinco por folha cada um à parte num nicho invisível, sem comunicarem um com o outro)  o homem chega a mim, volta a mim, o homem inesquecível.
Sobre a página branca maltrato-o, ou vejo-o maltratado, flagelado, homem flagellum (sic).
Sem cabeça, cabeça para baixo, cabeça maciça, cabeça de transportar coisas, homem desmembrado correndo não se sabe para o quê, alucinado não se sabe pelo quê.
Em expansão fluídica, erguido, triplicado, transformado em ancinho, fino, desenrolado, desdobrado, desligado, perdido, longilíneo, mais raramente maciço (acontece) em cápsula,
ou espalhado, derramado como alcatrão.
Depois vimos que chegavam dois a dois. 

Reunindo-os cuidadosamente podíamos ter feito um catálogo (com muitas repetições) catálogo de atitudes interiores, uma enciclopédia de gestos invisíveis, metamorfoses espontâneas, de que o homem ao longo doa dia necessita para sobreviver...? Duvidoso. Demasiado incompleto.

Muito mais tarde começam interacções entre as formas, entre as personagens... e temos os quadros.
Em que altura deixei de os desenhar com o pincel? Demorou tempo, até que eu comecei a servir-me da tinta, sem cerimónia. Com gestos bruscos entorno-a em torrentes do frasco aberto. Que se espalhe agora...

Acabou-se o pincel.
A torrente que cai, soberana, parece impudente.
Ou - pois cai com bastante lentidão - torna-me impudente pelo seu negro bárbaro.
Negro de desagradado. Negro sem vergonha. Sem compromisso. Negro que vai com humor colérico.
Negro que faz uma poça, que choca, que passa por cima do corpo de...que ultrapassa todos os obstáculos, que salta, que apaga as luzes, negro que devora.
O entusiasmo aqui, decididamente maior do que o abandono, torna-se cada vez mais necessário, mais imperioso, mais no lugar que é o seu.
Negro mau do que recusa, do que nega. Do invasor que vai ultrapassar as fronteiras.
PINTAR PARA RECUSAR !

Esta suja onda negra, que se espalha, demolindo a página e o seu horizonte, que atravessa cegamente, estupidamente, insuportavelmente, obriga-me a intervir.

Com os movimentos de cólera que me causa contenho-me, contenho-o, divido-o, desmembro-o, mando-o passear. A grande mancha que naturalmente se forma babando não a quero, recuso-a, desfaço-a, espalho-a. Agora é a minha vez! Os grandes gestos que faço para me desfazer das poças ajudam-me naturalmente a exprimir grandes nojos, grandes exasperações. São expressivos. É preciso ser rápido. Os sombrios pseudópodes que num instante saem das manchas inchadas de tinta exigem que veja com clareza de imediato, de decidir num instante.
Debatendo-me com a mancha, há combates. Prontamente reificadas, as raivas, os exageros,
transformaram-se em combatentes, silhuetas de combatentes prontos para a luta, para o assalto,
transformaram-se em fugitivos, ou companhias desfeitas, em debandada geral.
Afasto-os.
É isso que sente e vê aquele que olha estas tintas? Não.
Quantas vezes me descreveu o que sentia e que era quase o contrário. De resto afastar é igualmente desfazer, partir as cadeias, recuperar a sua liberdade, é o vôo.
Não agarrar, "afastar" aquilo que não é e o que não vai ficar. 

Caroço de energia, (é por isso que o seu objecto ou a sua origem me interessam) é o obstáculo e o trampolim mágico que vai dar-me a minha rapidez de libertação.
A arte é o que ajuda a sair da inércia.
O que importa não é o afastamento, ou o sentimento gerador, mas o tónus. É para se dirigir até lá que nos dirigimos, consciente ou inconscientemente, um estado com um ímpeto máximo, que é o máximo de densidade, o máximo de ser, máximo de actualização, de que o resto é apenas o combustível, - ou a ocasião.
É ela agora, essa densidade, que atrai e excita, longe de causar repulsa (excepto em alguns, sim, mais clarividentes! ).
Também como contra a minha natural inércia, a que me arranca, é o mais enérgico meio interior de que disponho contra o próximo ou o distante meio que me rodeia, o que me recarga  mais, que responde a cem situações, porque muitas vezes sou submergido, na vida, ou poderia sê-lo, sem isso.
Mas também não quero saber disso; de momento estou a combater, tenho mais que fazer do que pensar.
E depois?


Pois bem, vejo sobretudo os movimentos. Sou daqueles que amam o movimento, o movimento que rompe a inércia, que baralha as linhas, que desfaz os alinhamentos, me desembaraço das construções. Movimento como desobediência, como retoque.


Vemos, pela tão clara exposição dos sentimentos e das técnicas usadas, que Michaux continuou a usar o acaso, o aleatório, os momentos esperados das explosões incontidas depois de grandes, por vezes, pausas de inércia, como diz, a que tem de ser arrancado e se atirar quase com raiva aos gouaches, às aguarelas encharcadas para depois ver se nelas se encontram, ou se descobrem as caras escondidas que ele procura, para se exorcizar do seu sofrimento que ainda continua.
Sofrimento também do fazer e do desfazer sendo que é neste que melhor se revê. Acontece agora o mesmo impulso, pelo qual espera o tempo que fôr preciso com os quadros da negra tinta da China, é agora o negro o tempo da realização, manchas como nos anteriores quadros, atiradas ao acaso, sem intenção prévia, o pincel conduzia a mão e impedia que se pensasse, tudo seria rápido, inconsequente, até o pintor, ao rever o que tinha feito, sem intenção, decidir se ali havia algo que se chamasse de obra. Podiam não ser caras, apenas sinais preenchendo ou espalhando-se  pela folha branca do papel como asas de pássaros, sinais, dispersões - tudo menos obra coreografada, préconcebida, alinhada com uma qualquer ideia prévia.
Explosão de liberdade total, nenhum laço a coisa alguma, do passado ou do presente. Só assim a folha não iria juntar-se a outras no cesto dos papéis.
São imensas as obras feitas deste modo, como se apenas o negro fosse agora a sua capacidade última de expressão. Compactado em manchas de leitura difícil, ou de sinais tão leves que voavam à solta na folha, contudo sem a obrigar a ser lida, entendida, Michaux continuava de todas as maneiras a evitar que qualquer sinal, qualquer sentido, lhe pudesse ser imposto de fora para dentro.
Dentro era o seu caminho, o tal caroço a que aludia, quando o gesto violento de se atirar a uma nova tentativa de criar, como um deus que se enterra na raiz do ser, para chegar a ser, tomava conta de si, arrancando-o à inércia que por vezes, dizia, tanto o paralisava.


Pela minha incapacidade, pelo menos rica de surpresas, surpreendo-me a mim mesmo. Mais do que noutros casos tornado jovem, por ser jovem no saber. Pelos choques, os erros, (e nunca fixado no resultado tal qual é, mas para saber o que virá a seguir. Pintura étapa).
Pintar para manipular o mundo, (as suas formas), apalpá-lo de mais perto, directamente. Devia sem dúvida encontrar a pintura. A pintura é uma base por onde se pode começar do zero. Suportar quem menos deve aos antepassados. Pelo menos rebento com uma das tampas que me retinha.
Seguir em frente, com força e sem recuo, o traço na pasta colorida, enterrando-se ligeiramente, avançando como a lâmina de aço de uma charrua que não fosse lenta, mas de igual modo erguesse à direita e à esquerda a superfície mole e lamaçenta que se ilumina nas margens...e um imperturbável e imperativo rasto que será traçado e nunca mais será tapado.
 Uma vez mais posso ser espontâneo, totalmente, sem emendas, sem segundo estado, sem ter de retomar de novo, sem retocar. De repente, ali.
O imediato, os imediatos...o recém-chegado...in statu nascendi...desbloqueando em mim não sei bem o quê, quebrando as contenções, as reservas, festejando um transformar-se, um inesperado "transformar-se": gouaches. 


Avançou-se então assim para uma nova étapa, que passará a ser descrita, ou não, como libertadora. Michaux e Asger Jorn foram amigos e percorreram em parte um idêntico caminho de mudança libertadora. Michaux pintou um quadro para Jorn, que podemos encontrar num dos seus conjuntos de imagens alinhados até no google, de fácil acesso. Jorn conta como num dos seus desafios sobre a questão da criatividade e reacção dos artistas em cada caso (numa prática que se aproximava da surrealista) acaba por concluir- tendo mostrado a mesma imagem ao conjunto dos que o rodearam- que não houve uma reacção que fosse igual a outra. Cada um sentiu e interpretou o que viu de modo muito próprio e muito diferente, perante uma imagem que foi sempre a mesma e da qual se poderia inferir que despertaria reacção igual em todos.
Conclusão: na verdadeira arte não há, nem haverá nunca uma opinião igual. A igualdade de reacção seria prova da banalidade da obra, da sua uniforme nulidade, ou seja, do seu merecimento do cesto do lixo e não da elevação e acrescento de um indicível, "fora dos caminhos" como diz Michaux.

Traço fora dos caminhos, seguro do seu caminho, que nunca se poderia confundir com qualquer outro.
Traço como uma bofetada que põe fim às explicações.
Pintura para a aventura, para que dure a aventura do incerto, do inesperado. Passados muitos anos ainda e sempre a aventura. 
Operação-criação.
No princípio: insularidade.
Depois uma certa tensão. Uma tensão que cresce. Uma tensão que não acaba. Necessidade crescente de expansão.
Primeiro problema: onde encontrar o terreno para a expansão? ( Papel, pedra, argila, tela, palco). Encontrar o seu terreno, o terreno para o exercício de uma vida, de uma outra vida, no caso uma nova vida a viver, hic et nunc, uma vida que não tinha estado ali antes.

Terreno encontrado, chega a operação de mudança. Não para confundir. Não para busca de sublimação, nem sequer de aviltamento, nem mesmo para compensação, mas para uma essencial deslocação. Uma só e única necessária operação.
Para poder interessar-se verdadeiramente por ela, por uma vida actualizada. Um autor não é um copista, é aquele que antes dos outros viu, que encontra o meio de desbloquear o que está entalado, de desfazer a situação inaceitável. Mesmo falhado, nunca falhado, entre os míopes satisfeitos.
Ao desbloquear a sua situação desbloqueia centenas de outras, situações de época, ou da época que apenas está a despontar.
O artista é de futuro por isso arrasta consigo...
Estar sempre a olhar para trás é compreender algo móvel enganando-se no sentido!


Um escritor procurava, para experimentar a mescalina que lhe tinham dado, um lugar conveniente onde ninguém o pudesse incomodar. Talvez na minha casa...ia participar. 
Fazendo cerimónia, sem ver como evitar, aceitei.
Sem vontade nenhuma. Não esperava nada. Seria um falhanço. Em mim não teria efeito.
No dia marcado, na penumbra, já tinha passado quase uma hora...
De repente um formidável golpe de gong, o da côr, da quantidade de côres, fortes, fortes, que se abatiam sobre mim, apressadas, perfurantes, dissonantes como barulhos Martirisantes. E ainda só estava a ver o mais superficial. Este impacto não se parecia com nada conhecido.


Se alguma vez existisse um espectáculo para pintar seria este, que de início quase continuamente, depois por fases, durante oito horas me foi dado como foi dado a imensos outros.
Verdadeiro, formidável, espectáculo óptico. Mas infligido mais do que oferecido.
Estava sobrecarregado, inundado.


Fenomenal ajuntamento, agudo, exaltado, de cores distintas, empurrando-se umas contra as outras nos seus limites, sem nunca se confundirem, sem abrandar o seu ziguezaguear de movimento sem fim, sem que se pudesse adivinhar a escala de grandeza, fosse microscópica fosse "metrópole", fosse cósmica ou mesmo situada talvez num outro mundo...
Esta inundação, esta invasão, que não era como um quadro, ou uma superfície coberta, ou mesmo um aspecto colorido que se queira contemplar, era uma resposta, a reacção de um nervo profundo nas vias ópticas agredidas, martirizadas (o espectáculo colorido é secundário)...
A impressão era que me arrancavam cores de mim, da minha cabeça, de um determinado lugar no fundo posterior do meu cérebro.
Havia sem dúvida uma invasão colorida (que, como uma inundação, tinha desde logo um lado
excessivo, que metia medo, que fazia com que nos quiséssemos desembaraçar dessa manta de cores ondulantes que nos tapava) mas eu não podia esquecer que eram cores que violavam a minha integridade. Era eu que sem querer me estava a ocupar dessa colorofabricação.


Irritação extrema como a de uma pele quente e febril que faz com que nos cocemos, mas irritação puramente de brilhos, de crepitações luminosas, punctiformes, terrível infinito de fotões, mas sem luz...e...sem fotões.
Selvagem titilação de um nervo no escuro. Imagens como resposta. Imagens como energia. Imagens como injecções.


O dia, o dia quase todo passado em visualizações.
Nessas horas alongadas eu recebia constantemente de olhos fechados a prova de que a imagem é um certo imediato que a linguagem não pode traduzir senão de longe, e que tem no espírito um lugar verdadeiramente à parte, matéria prima para o pensamento.
A passagem de uma para a outra, o desaparecimento de uma na outra (onde se completa) aqui (muitas vezes) era possível ver, oferecida em espectáculo.


Eu também tinha visões.
Julgava ver aparições.
Assistia - de modo exaltado e perturbado - à minha função imaginogenea. 
Se durante as horas seguintes, em que me sentia ou me julgava libertado, apesar de cansado, e ainda que me custasse um esforço muitas vezes pouco recompensado, punha-me a desenhar, e então nos primeiros traços esboçados via outros que se sobrepunham, zigzagueantes, minúsculos, em quantidade, muito mais rápidos do que eu seria capaz de esboçar, presenças não convidadas, personagens ou pequenos animais, vanguarda de uma considerável e apinhada multidão em direcção a mim ou à página ou ao lugar do desenho.
A página branca não ficava branca durante muito tempo;   mesmo se no princípio, pelo efeito de uma rápida lassidão não conseguia traçar mais do que meia dúzia de traços, eram o suficiente para que de todos os lados - em  súbitos fluxos toda uma massa se pusesse em movimento.
Espaço - ocupado - sobreocupado, - ocupação sem cessar renovada, espaço pululante  de novos recém chegados.
É espantoso então como de todos os lados abordavam o espaço branco e eu não poderia, mesmo estando muito activo, segui-los com o lápis até a um mínimo canto da página.


Mais do que uma vez, antes da sessão, para mergulhar numa atmosfera oriental, começava a ler textos sobre a Índia, a Indonésia, a China, com algumas ilustrações de motivos de arquitectura, decorações e desenhos explicativos.
Enquanto eu esperava, em sossego, sem fazer nada, o efeito do alucinogéneo absorvido, de repente sobre alguns objectos banais diante de mim, vasos, mesas, maples, ou sobre a chaminé Luis XV, esses mesmos motivos se pousavam, mas ampliados, multiplicados, em inúmeras linhas, já não estáticas mas imortais, agitadas, activas, fluindo, animadas de uma vida própria, num zigzag de grande velocidade, sobre as superfícies reais como se tivessem sido projectadas ali cinematograficamente.
Nenhuma linha seguia à parte, independente, pelo contrário estavam presas, estivessem onde estivessem, no mesmo ritmo geral, como peças mecânicas comandadas por um motor único, que as fazia andar todas com um mesmo movimento.
Faziam lembrar um fraco murmúrio sussurrado, e era um, não em palavras apenas em traços ligeiros. Fenómeno da repetição - atenuada, incoercível - como o que se observa nos doentes, nas pessoas muito agitadas, aqui também presente, mas de modo precipitado. Repetição que eu não conseguia impedir-me de fazer, maçadora, activa, rememoração inconsciente, em que erradamente eu não sentia  que estava a tomar parte e que em imagens aparentemente desligadas dançava para ninguém, num espectáculo gratuito que se refazia infatigavelemnte em todas as superfícies presentes na sala silenciosa capazes de servir de écran... 
Fenómenos do visual, sempre numerosos.
Ultrapassando a visualização, ficando aquém, ficando dentro, fazendo parte do ser, era tão mais importante o sentimento de presença.
Presenças à nossa volta, não tanto vistas como evidentes, que eu sentia, que sabia que estavam ali, prestes a aproximar-se, em grupos ou isoladas no meu quarto ou num espaço à parte que por momentos coexistia com o do quarto, e noutras alturas o dissipava, substituindo-o com o maior à vontade...Bastava um nada para que aparecessem realmente, presenças quase como pene-presenças.
A impressão era mais forte do que a das alucinações, mais ambientadas.


Depois de muitos falhanços consegui fazer a negro, com a caneta, uma espécie de tradução gráfica do vibratório (sic) a que tinha assistido, de que tinha sido tanto vítima como sujeito oobservador e voyeur.
Cores? Não, impossível.
E no entanto as cores, as luminosas, cintilantes, selvagens imagens coloridas, tinham penetrado bem em mim, brutalmente e claramente, como um grande polegar de operário numa argila mole, e me tinham por vezes feito sofrer bastante, iridescentes, brilhantes, deslumbrantes, descaradamente apoiadas...


E as interrupções? Parcialmente ia dando a vê-las, (talvez porque me tinham espantado de tal forma ou porque os meus esforços repetidos em vão para lutar contra elas e triunfar) as interrupções: ligados às quebras incessantes, às mudanças de sentido, a uma regular inversão espasmódica, regular como a alternância na corrente eléctrica alternativa, regularidade inflexível e infinitamente repetida, esta espantosa característica conduziu-me à simetria, de que tinha sido até então um adversário decidido, sempre pronto a entrar em guerra contra ela.  
Ao desenhar  fazia agora com naturalidade pequenos alinhamentos iguais e paralelos. 


E a perda do lugar?
Tantos outros aspectos e estruturações...não era capaz de continuar.
Tantos acontecimentos do visual...e tudo o que abarcam, como lhes fazer frente? Como voltar a vê-los? Como transformá-los em pintura?


Outros melhor preparados do que eu poderiam fazê-lo e já tinham começado.
Quadros psicadélicos, " cinéticos, vibrantes, animados por um fervilhar incessante".
Pelo menos tendiam para o ser, tinham necessidade do ser.
Mas tratava-se sempre do impossível, de dar a ver o lugar sem lugar, a matéria sem materialidade, o espaço sem limitação.
O objecto, como apresentá-lo quando ele tinha deixado de ter peso, deixado de ser impenetrável, deixado de ser objectivo, deixado de ser fixo; intacto e no entanto estragado.

Ali onde antes reinava a fixidez, apenas havia fluidez, fluxo atravessando indiferentemente o mais duro como o mais maleável, fluxo como aquelas partículas cósmicas que atravessam a terra sem parar, nem sequer abrandar.
E perdida toda a medida, toda a dimensão, todo o definitivo anulado.


E o tempo?
O tempo igualmente atingido, a duração tornada elástica, de repente anormalmente longa, todas as dimensões agora flutuantes, incertas. Se o padrão em platina iridiada do metro estivesse aqui, este modelo dos modelos da fixidez seria demasiado comprido, ultrapassando de muito o metro que devia representar e de que se teria tornado o agente incapaz de oferecer o valor de medida, como a gravidade não é sensível na ausência de peso (l'apesanteur).

Esta escrita sobre o impossível das vivências sofridas faz com que Michaux mais do que uma vez nos confronte com uma sua muito específica reinvenção do vocabulário usual, que refiro neste exemplo, como já o poderia ter feito lá atrás, desde que descreve recorrendo a uma inovação muito sua, depois dos temas da Mescalina. Para vivência inusitada, irrepetível, palavras igualmente inusitadas, mas que só elas representam bem o que foi sentido e vivido e impõe explicação para que se entenda. É a marca do criador -escritor, poeta inicial, que ele mesmo pintando nunca deixou de ser. Tão misterioso o acesso à pintura, a partir do leve correr do lápis, como o acesso à imagem, provocação e contemplação indiscreta de um abismo que não devia ser acessível a uma pessoa normal. Mas Michaux não era, nunca foi, uma pessoa normal. Criador em busca de uma revelação que fosse apenas única e sua não cabendo nas definições mais vulgares de escritor ou de pintor. Navegando no negro para chegar à luz.
L'apesanteur: a ausência de peso, assim expressa. Uma indicível leveza que torna mais transparente ainda a sensação que depressa se esvai, do mergulho na química da Mescalina.


Já nenhum objecto comprido parava no seu comprimento natural, um novo alongamento tomava conta dele.
Na escrita, algumas armações surgiam desmesuradas, falsificando a palavra, saindo da palavra, a grafia levada à parte pela sua energia própria, e também pelo apelo exigente da representação e da figuração daquilo de que se tratava e de que, desajeitadas e insuficientes rompiam as súbitas, rápidas tentações, os esboços interrompidos cedo demais. 

E a intensidade das cores? Apercebidas em visões interiores (ou em visões directas) iam tentar os pintores, tomados de um novo desejo insaciável. 
Não podiam como antes contentar-se com efeitos medidos, aqueles que tinham visto as cores, libertas, à parte, de fogo, num estado privilegiado, verdadeiramente fulgurantes, quando por exemplo se destacavam da primeira página de um jornal, fios ardentes, colados às letras capitais ou lagartas luzentes tremendo contra as linhas ( violação do olhar, nada a ver com o género impressionista).
As linhas movediças em que também eles tinham reparado, que se dobravam, se desdobravam, se enrolavam, se desenrolavam; se transformavam em nós, desvios de ancas, enlaços ou desenlaços, serpentinos, leques, guarda-chuvas, caudas de pavão, formas desavergonhadas, pedidos de socorro, sarabandas, estrelas fulgurantes, em anéis, estrelas do mar, rosas do vento, segmentos caindo, desdobrando-se, desdobrando-se sem fim...agora tentavam retomá-los e transformá-los por uma prodigalidade de entrelaços, zebramentos, franjas, ornamentos sobre ornamentos , linhas que erradamente se tomavam como decorativas e supérfluas, quando eram a devolução enfraquecida do que tinham sofrido, expressão de uma incoercível , infernal repetição.

Para a expressar  - o cinema - dotado de movimentos - seria melhor sucedido.

Novos criadores fizeram idênticas tentativas: criadores de meio-ambientes Travessias de fragmentos e em todos os sentidos de linhas sinusoidais, salas móveis no chão e no tecto, sabiamente se desagregam e "encantam" a consciência dos que entraram nelas.


Um tipo de desenhos, em forma de mandala, como este, foi exposto, não parecendo ter nada de comum com os precedentes e contudo tinha a mesma origem.
Lembrava e reproduzia o nível mais profundo, quando toda a variação, toda a hierarquia, todo o problema menor tendo desaparecido, o ser abraçava de uma vez um extremamente grande conjunto.
O sujeito tinha, então,  ou antes "sentia" um conhecimento total do mundo.
Se uma certa visão o acompanhava nestes momentos, mostrava algo assim:  um círculo, dentro dele um quadrado, um quadrado que se tinha tornado mágico, que abarcava tudo, abarcava um círculo, que continha um outro quadrado, que por sua vez continha um círculo, que continha um quadrado, que continha um círculo, que continha um quadrado, e assim por diante, sem nunca acabar, tendo em cada plano um ou mais atributos de significados primeiros, ou segundos, para ler, para decifrar sem nunca perder de vista a verdade última, na qual nos afundávamos, nos afundávamos, hipnoticamente atraídos, esvaziados, arrastados, para o fundo sempre a recuar para o indefinidamente diferenciado, mas sempre na unidade, pela repetição regular de ritmo único.
Dentro e em direcção ao imutável.  
Com o indefinidamente, periodicamente , estranhamente mutável, l'Immuable, mantinha-se através de uma estranha homeostasia. Mesmo o seu carácter de imutabilidade se via reforçado.
Construcão de Infinito. à falta dele Constituição. Resumo gráfico de uma situação de conjunto, das mais metafísicas.
Pintura por esquecimento de si, e do que se vê ou poderia ver, pintura do que se sabe, expressão do sue lugar no Mundo.
Este tipo de desenho, praticado desde sempre na Índia, é realizado mais pobremente, mas não menos rigorosamente por alguns alienados.  
Estes têm necessidade de ter uma visão pensada da situação, daquela, inexplicável para os outros, onde se encontram...e que põe tudo em causa.
Mais do que tudo, mais do que um filósofo, todo o tempo e sem repouso, precisam de marcos de referência essenciais, marcos que respondam a tudo.
(Mesmo que não tenham sempre os meios é outra coisa. Mas a sua intenção só por si torna o quadro extraordinário).
Aquele que conheceu os estados devastadores e luminosos da experiência psicadélica sabe, ao ver aquelas pinturas "reflectidas" de que espaço partem e falam, sem poder ou sem querer sair deles.
Aquele que espectacularmente por uma única metamorfoseante sacudidela em menos de uma hora mudou totalmente a sua Weltanschaung sabe e reconhece.
O que antes tinha sentido, essa alienação perante o limitado, o diferente, e em geral dos objectivos
medidos da vida e das instituições humanas ali estava, feita obra.

Anos mais tarde, sem tomar nenhuma substância halucinogénica, fica-nos um chamamento para a fragmentação. 
Os desenhos que começo vejo-os por vezes decompor-se, dividir-se, dividir-se sem fim.
Deram-lhes o nome de "desenhos de desagregação". Apesar da analogia, são antes de reagregação.
Acabada a química a intervir em contra-corrente, em processos de interrupção e aniquiladores na máquina do espírito. Acabada a voltagem atroz.
O massacre peremptório, ou delicioso ou terrível do ego e das suas unidades constructivas fazem parte do passado.
No entanto, quando volto a pegar na caneta fina, que conduz ao linear finíssimo, passado algum tempo solicitado também por uma ligeira vertigem que faz com que se sinta a tremer as linhas leves e o espaço que elas suscitam, volto a encontrar-me (já não, é certo, forçado, mas apenas convidado)
num mundo fugidio, bem conhecido, imenso e imensamente perfurado, onde ao mesmo tempo tudo é e não é, mostra e não mostra, contém e não contém, desenhos da essencial indeterminação, onde deslizam faces entrevistas ora com uma expressão ora com outra, em aspectos indefinitamente indeterminados não definitivos.
Regressado aos gestos, à massa de um bloco, a uma certa amplitude.
Então vejo que acabou; o gestual, neste caso, é um teste.
Apesar de um certo movimento, não morto, lembrando uma efervescência conhecida que não conseguiu ser inteiramente, definitivamente tapada.
Uma transposição, um levantamento vindo de uma outra causa diferente e mesmo da simples descoberta de uma certa técnica nova poderá voltar a abrir a porta ao que eu já não queria, e parecia ter desaparecido.


O número das personagens em movimento aumentou. Reina uma multiplicidade nova. Não é sem relação - que as testemunhas observam melhor do que eu - com as experiências psíquicas precedentes. Ressurgências, que demoram a chegar, inesperadas, e que depois durante muito tempo desaparecem.


Desejo mais do que gestos em movimento. Queria que não fossem apenas feitos de raiva e de fúria, ou de esperança de me libertar, mas que representassem movimentos reais, e de toda a espécie de movimentos ainda inimaginados.


Alguns olhando para essas pinturas julgam ver batalhas. Mas batalhas de um desorganizado, de um desordenado como nunca se viu, de uma deslocação infinitamente continuada , diferente, em todas as direcções, e todas plausíveis. Batalhas e travessias de rios ainda tumultuosos.
E também naufrágios, múltiplos naufrágios, em altas vagas, raivosas, súbitas, torrenciais. Ao olhar para elas caminhamos para uma vertigem.
Desmantelamento geral que lembra um desregramento essencial. 


Mais do que antes, há coisas, subidas, travessias, trambolhões e algo como corridas fazendo por isso um espaço diferente, um espaço que se espalha, desconhecido, um espaço com espaços, de perspectivas sobrepostas, intercaladas, polifónicas, espaços que há muito tempo, tanto como as formas, eu tinha esperado ver um dia, ver deslocar, desfazer, dividir, despedaçar, levantar, embebedar...


Volto a encontrar alguns dos meus problemas.
Para lá de me exprimir mais, graças ao desenho, queira, julgo, imprimir em mim o mundo.
De outro modo e mais fortemente.
Para servir de contraponto a uma transcendência que não se realizava. Em parte, por provocação. 


Pintei para tornar o mundo mais "marcante", recusando ao mesmo tempo o "realismo" dos comportamentos e das ideias. Abria assim um lado, mantendo o outro fechado.
Sinais, a minha primeira procura.
O mundo reduzido ao máximo.
Alguns reduzem o mundo ao ininteligível, o que é, em parte, rejeitá-lo como se vê nos espíritos abstractos, cada vez mais abstractos, cada vez mais repressores.
Pesado, espesso, embaraçante em verdade é o mundo.
Para o tolerar, é preciso recusá-lo de um modo ou de outro. Todos o fazem.
Eu fi-lo especialmente cedo, demasiado cedo. À minha maneira. Aspirando a mais transreal,  a viver sempre aí. 


Talvez porque mais tarde frequentemente me senti abatido, senti o grande perigo de permanecer assim. A pintura de repente aos vinte e seis anos pareceu-me adequada para abalar o meu estado e o meu universo.
Ao mesmo tempo eu queria mostrar do mundo concreto a sua pouca realidade.
Com o passar do tempo, esse famoso mundo acabou por se imprimir muito mais? Progressos, mas não espectaculares.
Parece que não encontro o concreto no "seu" terreno.
Mesmo nas caras, um dos lugares mais reais para mim, objecto que se tornava sujeito tão failmente, faltava ainda  realidade que passava.
Mais do que os traços, era a sua evanescência que vinha ter comigo, fantasmas que uma esponja apaga. Ou então era eu que ia ter com eles, como áreas de circulação, recreios, fontes, jardins. Tão pouco fechados. Tudo atravessado, partilhado, dissolvido e dissolvendo, um rosto; ou é no invisível  que tropeçamos. E ficam sempre os olhos carregados de um outro mundo.


Mas mesmo assim alguma coisa não ficou igual. Caras menos enterradas. Um certo abandonismo deixou-me.


Chega alguma coisa que ainda não é sólida, mas é já imperiosa, que procura o combate, e acima de tudo um maior foco. Onde? Como?
Mais cedo ou mais tarde, sem dúvida, a pintura irá mostrar... por via dos seus caminhos.


Houve uma primeira versão, inédita, que podemos agora recuperar na edição da Pléiade. Mas se Michaux a deixou assim, foi por alguma razão. Muito grande, de muito elaborada reflexão não ajudaria à busca do essencial na obra, que isso sim era o que ele pretendia. Para se fazer entender, e acima de tudo para se entender a si próprio, chegar àquele ponto único que na consciência, como na visão dos místicos, se ampliaria em muitos e desconhecidos mundos novos - como a inicial aparição do cosmos, na sua imensa e misteriosa, infinita dimensão.  O mundo a partir de um ponto único.
Mas como? E por onde? 
Ainda hoje em cada criador a interrogação permanece, e é esse o impulso que o condiciona e o vai levando por diversos caminhos.


Y.C.
Novembro, 2024

Tuesday, October 29, 2024

Henri Michaux, Émergences, Résurgences

 Como se formam nele os processos de criação, desde a ponta inicial do lápis no papel, até ao momento das obras maiores, étapa por étapa, sem descartar as experiências abissais da Mescalina. Origem, evolução, e descrição que só um grande escritor poderia fazer. Virei aqui deixar a tradução, com alguns comentários, quando acabar. É uma obra maior, e vi que já está on line para quem não tenha este luxo que eu tenho do volume em papel.

Quase posso dizer, agora que também se pode trabalhar com a edição da Pléiade, que o papel salva sempre, porque é matéria que permanece.



Sunday, October 27, 2024

As Mães de Odair

 in memoriam

São tantas as mães de Odair

tantas por todo o mundo

onde nascem as crianças

que as mães embalam

ao colo 

o carinho que lhes dão

 ajuda a adormecer

esquecer a fome que sentem

lá fora a guerra a correr

são tantas as mães que sofrem

ao embalar os seus filhos

tão belos quando nasciam

talhados para viver...

As mães sempre a rezar

para afastar os papões

o medo do anoitecer

que venha roubar o sono

 de cada filho no colo

já com sina de morrer.

Tantas as mães de Odair

e nada para dizer

os grandes não estão ali

ali só há mães e filhos

os homens preferem fugir

os homens preferem fingir

que tudo terá solução 

só as mães ainda desejam

filhos pequenos ao colo

uma pausa no seu tempo

de nascimento feliz

elas são as mães de Odair...

27 de Outubro, 2024



 

 

Friday, October 25, 2024

Outono

 


Acabou o Outono

acendem-se as lareiras

o crepitar da lenha

a ondulação das chamas 

aquecem-nos as mãos. 


25 de Outubro, 2024

Monday, October 14, 2024

Romãs

 

Um poema de romãs

que me enviou uma amiga

trouxe-me da infância

os recados da avó: romãs sim, 

mas depois das primeiras chuvas

porque senão adoeces.

Eu olhava na ramagem

a bela romã quase aberta

ia espreitar se chovia

não me fazia de esperta

a avó não gostaria...

era melhor esperar

 que finalmente chovesse

e eu apanhava a romã

que para mim já sorria

os belos bagos vermelhos

brilhando como rubis

em coroas de princesas

quase me arrependia

de estar ali a comê-las...




Dores

 

Não é às cinco

é às seis

que se dá o parto da dôr.

Quem diria, em tempos de outrora,

que as dores se instalariam

com o seu horário próprio

condicionando as horas

e os dias

dores do parto de um tempo

de que nada se sabia

escondido como a serpente

num Éden já tão distante

mas aguardando essa hora

que deus já lhe definira

hora de dôr e demora

que um dia nos chegaria...


14 de Outubro, 2024