Thursday, January 09, 2025

A CASA

 

A CASA

Devagar já tinha começado a desfazer-se.

O chão, as janelas, a porta. 

Não era preciso bater

já nem sequer a chave funcionava

era só empurrar

e  ver quem vinha lá.

Não vinha muita gente

não era sequer esperada

sentia-se a presença

 de quem já tinha estado

e não estava mais.

9 de Janeiro, 2025


Thursday, January 02, 2025

NEXUS

 NEXUS, de YUVAL NOAH HARARI - começa uma nova leitura, como se começa uma nova aventura. Sem saber onde conduz, ou se por incapacidade nossa se tem de ficar a meio, mas sem ter de voltar atrás. Ficar a meio, se já se leu o bastante para ter noção disso, não é mau.

Mau é não fazer o esforço de ler, porque ali, nesse livro, se discute o futuro (possível? provável, certo?) da humanidade como a conhecemos até agora. E mesmo este agora o que significa para uns e para outros?Homo Sapiens foi o título da primeira obra que chamou a atenção dos leitores críticos da obra e do mundo.

E Harari logo questiona o termo Sapiens. Porque irá discutir o conhecimento e capacidade tecnológica adquiridas pela comunidade humana do conceito de Sabedoria, sapiens, sapiensia, desse conhecimento. Este foi o que deu poder, veja-se a ciência em todos os variados  domínios, medicina (ainda que primitiva, das primeiras comunidades formadas e detentoras do conhecimento de ervas, de plantas, de animais) mas o poder não conferiu o Saber da existência, do seu sentido profundo, o que deixa o ser humano, no dizer de Harari, numa crise existencial. No decurso do livro percebemos que se pretende chegar, depois de séculos de progresso, ao problema da Inteligência Artificial com os riscos que nos faz correr, se o poder que se possui lhe fôr entregue sem mais. Discute-se então liberdade e regulação que não permita à IA um poder absoluto, destruindo pela sua capacidade tecnológica o orgânico que nos constitui, e ao mundo. 

E levanta-se logo outra questão: se somos tão sábios, como nos tem sido impossível parar a nossa auto-destruição, que se foi tornando cada vez maior e mais visível? O conhecimento não deveria sustentar a sabedoria? Aumentando-a em vez de poder levar a toda a destruição do que fomos sendo, enquanto criaturas, organismos dotados de vida, corpos em busca de um caminho, de um sentido? 

Harari quer uma resposta que não tem sido dada à grande questão da vida : "quem somos? a que devemos aspirar"? (Prólogo, xii). E continua, com um pensamento mais simples "o que é uma vida boa? e como a devemos viver? "

Assistimos no século XX a grandes catástrofes como o Nazismo e o Stalinismo, apesar da evolução desde o homem das cavernas, que nos deveria ter conduzido a uma sociedade e uma vida bem diferentes. Não diria felizes (o que é isso de felicidade?) nem perfeitas, pois duvido que nem em Deus exista perfeição. Contudo em que melhorou com a evolução gradual, milenar,  a compreensão de nós próprios e do nosso papel no universo? Pergunta sem resposta, ainda hoje.

Somos competentes a adquirir informação e poder, mas muito menos a adquirir sabedoria. Harari recupera a ideia de antigos mitos de que algum pecado original, algum crime profanador da essência dos deuses, um excesso da ambição de lhes ser igual ou ainda mais poderosos (basta recordar Platão e o mito do Andrógino, ou Phaeton a querer conduzir a carruagem do sol: Helios, seu pai, adverte que não é possível aos humanos controlar os celestiais cavalos que puxam a carruagem  e que não será bem cedido, fazendo incorrer em grande perigo tudo o existe ali, à roda do seu pai, como vem a acontecer, fazendo com que até o mundo quase se extinguisse nas chamas desencadeadas, queimando tudo o que existia, até que Zeus intervém e restaura a ordem nos céus. Aqui temos castigo, mas há uma ordem superior que surge e corrige os estragos. Em resumo, é nos antigos mitos que se procuram as primeiras explicacões para o mistério da existência do universo e do homem nas suas imperfeições.

Harari recorre à sua enorme bagagem cultural para dar seguimento à aventura da busca de um saber inacessível, como no Aprendiz de Feiticeiro, (ou mais seriamente no Fausto digo eu) e chega às perplexidades modernas, não menos misteriosas e sobretudo inquietantes, porque possuindo um poder que antes a magia de uma poção ou de uma vassoura não poderiam dar.

Onde fica então o Sapiens de que se falava? Era outro mito? 

O que é afinal a sabedoria?

Talvez muito simplesmente o ter adquirido um conhecimento que nos levou à concepção e construção de uma Inteligência Artificial que em muito (esperemos que não em tudo) nos pode substituir, aliviar ou corrigir os nossos erros, aumentar gradualmente a sua capacidade e inteligência e cada vez mais o poder que tem de se aperfeiçoar até ser uma criatura tão próxima de nós que nos possa representar em todas as circunstâncias -  a sabedoria seria então não permitir que tal aconteça. Porque com a ilusão ( ou realidade de um poder "indestrutível" se pode acontecer o melhor, pode acontecer o pior, a autodestruição da própria humanidade, que fora a criadora...

Em regra é o que tem acontecido, podendo ser possível acontece o pior. E aqui no caso a história dos mitos clássicos bem o demonstra, como se fossem lições para um futuro já presente. 

Outra questão que nos interpela, tendo a ver com a comunicação - que a IA também nos coloca - é se agora, no mundo globalizado que permite uma teia rápida, para não dizer instantânea de interacção afinal comunicamos mais ou menos uns com os outros, e  importância que isso pode ter, na qualidade de criaturas orgânicas que ainda somos. Beneficiamos com tanta informação e tanta rapidez como seres que ambicionam, por enquanto vir a ser sábios? Ou a sabedoria fica pelo caminho e somos apenas contentores de conteúdos avulsos, abundantes, até demais, em excesso e que nos afogam nesse excesso que impede uma ideia própria, independente e solta do lixo que a abundância traz consigo, por não acrescentar nenhum sentido que ajude à progressão, sim, mas da sabedoria verdadeira. 

Num dos capítulos, THE NETWORK IS ALWAYS ON, define-se bem que o facto da internet que é uma teia perniciosa para a nossa mente, estar sempre ligada, é algo que além de ser viciante, na realidade não acrescenta qualidade ao pensamento (sabedoria) mas antes o reduz ao instantâneo, que impede que se distinga entre o bom e o mau, o útil e o inútil, o pleno de uma ideia sólida e o vazio de coisa nenhuma. Eis um dos perigos que Harari aponta, na transição que já está feita para a IA, pois é-lhe conveniente que tal excesso e tal velocidade, a ela IA, ajude ao seu progresso em matéria de poder. O indivíduo que não tem tempo para pensar, escolher, decidir é a vítima fácil e desejável de um algoritmo qu foi concebido para o Poder, para mandar sem que nada o questione. 

O capítulo 9 é para mim dos mais interessantes. Aborda a democracia, somando algo que lhe está na raiz : CAN WE STILL HOLD a CONVERSATION?

Ainda somos capazes de ter uma conversa? Subentenda-se que seja reflectida, com sentido, perseguindo um fim útil à sociedade, para uma escolha do poder que o tempo da solução ganhadora, transitória ( por não se tratar de uma ditadura onde não haveria escolha, apenas obediência dispensando o pensamento) implica. 

Harari não garante que sim, ainda somos capazes de conversar uns com os outros, sem manipulação. Mas a manipulação está em todo o lado, desde os anúncios dos produtos de televisão, escolhidos por um algoritmo e não por uma pessoa como nós, aos media em geral - é uma tão grande poupança não ter de discutir ordenado com o editor - e agora a nova invenção dos influencers - veja-se a rapidez com que em Portugal e no mundo se adoptou o termo! Temos equivalentes, mas não se perdeu tempo a ver.

Harari não aborda aqui a questão do tempo, mas a da comunicação entre os seres - uma pergunta, uma resposta - uma concordância, uma discordância, chegndo ou não a alguma conclusão final. Não, Harari aponta o problema, grave, de que se perca essa capacidade, o algoritmo da IA resolve e dita, sem questionar os resultados que da escolha possam advir, negativamente, para a espécie e para o mundo. Faz o historial das democracias, como surgem e evoluem, e das ditaduras, sublinhando o seu receio da fragilidade das democracias tal como se formaram. É o olhar de um historiador atento às vicissitudes da evolução política e da espécie, num mundo caótico.

Valeria a pena, sendo assim, pensar numa vida melhor e mais feliz, e o que seria neste caso esse difícil conceito de felicidade que desejaríamos viver? 

 

 



Wednesday, January 01, 2025

 A CRIAÇÃO

Deus não foi generoso.

Não deu àquele par ainda unido

tudo o que podia dar.

Uniu

para melhor dividir.

No Jardim que se diz belo

fez o mesmo: frutos contrários:

de um se poderia comer do outro não.

Obediência ou castigo,

as formas que Deus deixou para escolher.

Iludiu, como a serpente, as duas Criaturas

com as duas ideias que ainda prevalecem:

Conhecimento ou Vida eterna - sabendo que a vida eterna

nunca seria concedida e o conhecimento uma causa perdida.

Perdidos, expulsos até da sua unidade primeira

assim condicionou Deus a sua Criação.

Nunca Deus perderia o seu Poder de fazer e desfazer

e nunca daria o porquê a conhecer fosse a quem fosse

maculando o mistério dito da Criação.

Fora tirada de um Nada, espaço ainda não desenhado

até que Deus pensou nele e a Criação nasceu.

Mas nasceu, de maldade, deformada.


1 de Janeiro, 2025

 

 

 

 

Sunday, December 29, 2024

Yuval Harari

 Numa entrevista do Youtube vi que Harari, o grande sucesso do momento começava pelo princípio e fiquei a ouvir.

Por que razão existe o universo? Quem o criou e para quê? E como surge? Da mão de um Deus que só pode ser necessidade nossa de uma explicação? E como pode surgir do nada ? ex nihilo?

Pode alguma coisa surgir assim do nada?  De que modo, que até hoje, passados milhões de anos não conseguimos entender, nem explicar?

De um ponto negro que se amplia, como disseram alguns, até uma imensidão que uma circunferência  rodeia, sendo este círculo uma conferência que denominamos universo?

Mas o ponto negro onde se encontrava, para surgir de repente?

E mesmo aceitando estes pressupostos primordiais, não se responde à pergunta: para que serve este universo, esteja ele em expansão ou em contracção? A existência não tem uma função, por modesta que seja, não tem um sentido, de que falava Heidegger nas aulas sobre o que é Pensar? Pensamos para dar sentido aos sinais que nos rodeiam. Ou deveríamos fazê-lo. Será o universo um gigantesco sinal? E é cedo para o decifrar? 

Para que um deus (imaginado por nós) nele se reveja, se contemple e o leve à criação do homem? Quer isso dizer que o universo, que deus, precisaram do homem (e ainda precisam) para se conhecerem revendo-se nele ao retirarem a sua existência do nada? 

Harari explica que em Platão haverá uma resposta, a da cadeia do ser: the chain of being. Mas a cadeia do ser, por transmitir a imagem da circularidade da existência, pode antes levar-nos aos conceitos budistas ou hindus da eterna existência, morte e ressurreição, morte e renovação, eterna repetição, mas pouco ou nada dizem sobre o modo e justificação de um universo que surge do nada, não sabemos como.

Quando Harari refere a cadeia do ser julgo que está antes a sublinhar que a espécie humana, as criaturas em que nos tornámos ao fim de milhões de anos sobreviveram e evoluíram por funcionar como um todo unido - a cadeia - e que foi essa união que tornou a nossa presença neste planeta (não digo já universo) possível, até ver.

Segue-se outra questão, a do mundo global em que vivemos, e que tudo transformou nesta nossa vivência, melhor diria existência. É um facto, que o mundo tenha mudado. Para melhor? Para pior? O futuro irá dizendo, se a espécie tiver futuro. Pois tem hoje na mão um imenso poder, o de se auto-destruir querendo destruir o outro a que não reconhece direito à existência (veja-se o Médio-Oriente). A questão como Harari explica com uma clareza indiscutível, é que o problema não reside no território, - há que chegue o bastante para dividir - nem na comida, nem na água que abunda do mesmo modo e sim na IDEIA. A força de uma ideia entranhada por más razões, mas sobrevivendo ao longo dos tempos e das gerações que se sucedem é invencível e nenhum argumento, por generoso que pareça ou seja, a poderá derrotar, no espaço fechado da mente que a assimilou de uma vez para sempre. Estamos no questionamento do poder da mente, e aqui entrará a questão da Inteligência Artificial.

Até que ponto algo de verdadeiramente novo na evolução humana, e que ainda não conhecemos por completo nas suas implicações futuras poderá modificar, manipular (para o melhor e para o pior) modular o lado orgânico, humano, da espécie que somos?

E agora pergunto eu, de que modo passaremos ou não a entender o cosmos, de que mão nasceu, pois sabemos que não é daquela que Miguel Ângelo pintou, como surge e para que fim ignorado ainda?

Triste seria que fosse para uma sub-humanidade de plástico ou metal, imitação da anterior, cruelmente falsificada, e em vez de ter atingido alguma forma de sentido e felicidade apenas se movesse num circuito fechado, existindo sozinha e apenas para esse isolamento, num cosmos que continuaria sem ser compreendido.


Thursday, December 19, 2024

António Carlos Cortez, CENAS PORTUGUESAS, ed. Caminho, 2024

 Tenho à minha frente, há algum tempo, as Cenas Portuguesas, os contos do António Carlos Cortez, numa bonita edição da Caminho, bom papel e letra que felizmente por enquanto ainda leio.

Já escrevi sobre o António Carlos, em quem descobri uma voz, no caso era poesia, finalmente inovadora e original no nosso panorama, carregado de matéria feita de modo rápido, de clichés, que matam à nascença a vontade de ler. Estava a preparar um doutoramento, que entretanto acabou com brilho, sobre a obra de Gastão Cruz, que conheci bem, e logo me agradou pela escolha.

Mas agora é o Conto, para mim de todos o mais difícil dos géneros que se praticam na literatura. Pela concisão que exige, ou se transforma em novela ou em romance...

A arte da contenção na narrativa exige ao mesmo tempo uma ideia que se tem de desenvolver - ou não há narrativa, não há há história - e uma capacidade especial de trabalhar com as palavras certas, acertadas, escolhidas com cuidado, nem a mais nem a menos que ajudem à progressão do conto sem que se perca a curiosidade de o ler, mas sem nos forçar a deixar a meio, por desfastio do excesso, o que se tinha começado.

São cenas portuguesas, logo aqui há uma indicação de leitura: cenas, contos, pequenas histórias, episódios com alguma significação; e portuguesas, ou seja que tenham algo a ver com o nosso país, a nossa sociedade, o nosso meio, por assim dizer. Melhor ou pior, julgo que neste momento que vivemos antes pior do que melhor.

A prosa, directa e escorreita como já não se espera, ora mais crítica ora mais irónica define personagens que pululam no nosso dia a dia, cujos atributos são descritos num tom camiliano, muitas vezes, de tão pormenorizados, não escapando a uma formação que o realismo moldou, e define neste caso um tom mais popular, mais perto do que se vive na Lisboa ainda feita de bairros, que se foram perdendo.

Não cairia no exagero de afirmar que há aqui uma névoa saudosista, mas antes um olhar atento ao mundo real, ao gosto de o descrever com as palavras certas, que não se arrastam em vestes do passado. António é um autor moderno, sem ser saudosista nem modernista.

Não tenta inventar o que ele, criador culto e muito lido, sabe que já foi inventado. Segue no seu caminho, com a sua voz própria, que define o seu estilo. Como eu gosto: simples e directo, agradável de ler, ampliando informação. Na contenção de um conto...

No primeiro, MORTALIDADE, evolui da constatação de que todos somos mortais para uma tentativa mais conceptual do que se pode entender dessa tão real realidade, e de como lidar com ela, com os mortos e com os vivos que a ela reagem. E eis que de repente, fazendo-me lembrar a Babel de Julián Ríos, em LARVA, agora já em tradução portuguesa, tantos anos depois da edição de 1983, anos oitenta criativos e felizes para tantos de nós, fazendo lembrar, dizia eu, o gosto de brincar com a língua, compondo e decompondo as sílabas, brincando apenas, mudando a sonoridade, cantável e descartável como a própria vida ou a presença de uma morte sentida e consentida, no conto.  António terá lido, e se leu certamente apreciou  A VIDA SEXUAL das PALAVRAS, de Julián, que existe (espero) na Quetzal da maravilhosa Piedade Ferreira, tão pioneira em tudo o que nos deu.

As palavras têm corpo, são matéria palpável, em Julián Ríos. Não vai tão longe António Carlos, o que se justifica também pela diferença de gerações. Sente-se nele o gosto da reflexão ensaística, ao longo do que escreve. De Carlos de Oliveira vai contar uma história que diz respeito a esse tão grande e pouco falado poeta e narrador de ficção numa escrita densa, cerrada, como em FINISTERRA, a minha obra preferida, além da obra poética da antiga Portugália. E então, se dermos atenção, o conto é um mini-ensaio de mão corrida que nos ensina algo mais do nosso meio literário, recheado de histórias. António Carlos Cortez não foge à sua vocação de Professor, tem a vida preenchida pelo amor da profissão que escolheu, o amor da língua e da escrita em que se revê, seja no verso seja como aqui, na prosa.

Discreto, não direi dele o que Julián, castelhano, assume: que as palavras têm sexo, e para que vivam e se reproduzam há que fazer amor com elas. Mas sendo poeta, quem sabe o que faz António no silêncio da noite...



 




  



Thursday, December 05, 2024

 NAMELESS, ou a Velhice...

 A ideia já lhe andava na cabeça há algum tempo. A falta de uma ideia que agora sentia e nunca tinha sentido antes. Tinha de arranjar maneira de corrigir essa falha. Falha grave no pensamento e que iria a breve prazo fazer dela o que ela nunca tinha sido, uma forma vazia de conteúdo.

Supondo que uma ideia então lhe ocorria, uma ideia qualquer sem importância. O que fazer? Tentar um desenvolvimento que a ampliasse e lhe desse mais corpo?

O pior é que nenhuma ideia surgia que  a entusiasmasse bastante para o sacrifício - pois era um sacrifício - esse esforço da escrita.

 

Lembrava pequenas coisas. Mas não conseguia lembrar-se de como tinham começado. Por exemplo, como tinha ido parar a casa daquele jovem estudante alemão que conhecera no lar onde passava férias junto com outros colegas da Faculdade.  Ele fugira da RDA, o tempo era ainda o da Alemanha dividida e o seu sonho era partir para os Estados Unidos e ficar lá a tirar um curso de astrofísica. Começou a namorar, por carta, com uma jovem americana que estivera também a passar férias naquele mesmo lar onde ela agora estava. Esperava casar com ela e obter a nacionalidade americana para seguir com os estudos e com a vida. Enquanto esperava recebia estudantes na casa que lhe sido atribuída por ser um refugiado. Uma casa simples, mas com o conforto suficiente para se poder viver nela. Um quarto, aquecimento central, uma cozinha com o essencial e uma casa de banho. Ficava perto do lar onde se recebiam estudantes no Verão, e era aí que ele acabava por conhecer um ou outro que depois ficava mais tempo, saindo do lar e alugando-lhe um quarto mais barato.

Sim, mas ela que tinha de regressar a casa, no seu país, como acordara ali ao lado dele, na cama, depois de um sono tranquilo que ele não interrompera, com grande delicadeza. Pois bem podia ter-se aproveitado daquele sono. Ela lembrava-se de que a dada altura se tinham abraçado, procurando o calor um do outro, dois corpos numa cama estreita, só com um cobertor e que por isso pedia aquele abraço, terno mas cauteloso e sem mais consequências. As cabeças na almofada única, também próximas uma da outra. A lembrança ficava por aí.

Não houve outros dias ali, nem noites.

Ele ajudou-a a encontrar um quarto na casa de uma senhora de idade, muito simpática, que também recebia estudantes em casa. Havia regras, não podia receber rapazes. E banho, só um por semana, se queria mais tinha de pagar, estava-se ainda na fase difícil da recuperação, depois da guerra.. A casa era no centro da cidade, onde ficava a biblioteca, e ela queria aproveitar para ler um autor sobre o qual estava a preparar uma tese.

Continuaram a ver-se, durante o dia.

Ele ia buscá-la, tomavam juntos o pequeno-almoço, ficavam na biblioteca até à hora do lanche e à noite viam o que havia no único cinema da cidade.

Foi aí que ela se lembra de lhe ter pegado na mão pela primeira vez.

À saída ele pôs-lhe a mão nos ombros, carinhosamente. Está frio, terás de comprar um casaco. Depois digo onde se pode, não são muito caros.

Ela sorriu e aconchegou-se melhor contra o seu peito.

Passaram a andar de mão dada, como dois namorados? Não se lembrava. Também não se beijaram. O que lhe acorria à memória era a procura daquele calor dos corpos que se sentiam bem, um contra o outro, sem pedir mais.

 

O que teria esse domingo tristonho, em que se viu em casa sozinha, sem filhos e sem netos, e a acabar uma tradução que poderia continuar mais tarde, com outra energia, para a fazer lembrar-se de repente daquele encontro de outrora, aos vinte anos - agora tinha oitenta e vários como gostava de dizer a brincar - um encontro que não teria continuação mas lhe trazia à memória pequenos momentos felizes, de aconchegamento e ajuda, sem mais nenhumas consequências que no seu país diriam que podiam ser perigosas?

Não tinha resposta.

Mas sentia de novo o calor desses momentos tão antigos, já passados, e que pareciam agora fazer falta de novo.

A solidão? A velhice instalada? Um dia mais vazio do que os outros?

ou a constatação de que ali, naquele tempo, tinha sido amada por ele e que ele trocaria a sua América por ela, se ficassem juntos, os dois, a partilhar as interrogações que a vida sempre lhes traria. Seria amada e amaria de volta.

Era a velhice que agora a deixava com esta perplexidade: foi mesmo amada, ao longo da sua vida?  E ele, foi bem sucedido no que desejou fazer? Alguma vez se lembrou dela? Teria como ela, oitenta e vários anos, filhos, netos?

Os abraços tão ternos, e ao mesmo tempo tão cuidadosos e tímidos, teriam ficado na sua memória, como acontecia com ela, neste preciso momento?

Estaria vivo, mas já entregue num lar?

E por que razão estaria ela neste momento a recordar tudo isto?

Que presença, que abraço, que gesto carinhoso lhe faltava ?


5 de Dezembro, 2024, fragmento de uma novela.


 

 

 

 

 

 

 

 

Tuesday, November 12, 2024

João Paulo Esteves da Silva, No Outro Mundo, ed. Averno, 2024

 De João Paulo Esteves da Silva, tudo o que nos chega não é do outro mundo, é mesmo deste e é sempre surpresa. Pois só deste mundo nos podem chegar surpresas, melhores ou piores, mas ainda não conhecidas....

Como os seus temas, quando se senta ao piano, que acordes nos chegarão aos ouvidos, mais intensos, mais líricos, ou tão subtis que não chegamos a ouvi-los, ficaram escondidos na sua cabeça, como as caras que Michaux procura em aguarelas desfeitas e nem sempre as revela ou as encontra e prefere destruir.

Não sei se é porque tanto gosto desta sua poesia secreta, ou porque estou ainda influenciada pelas Emergências de Michaux que traduzi há uns dias, que agora me ocorre trazer os dois poetas a esta página.

É na página branca que surge a palavra, ou o desenho, e logo na capa do livro o que temos é precisamente a mão, que alguém desenhou para que de longe, o tal outro mundo do título se manifeste, ao alto. Com garras, como se quisesse ir buscar o que não estava a ser dado, e certamente com João Paulo, o secreto e o severo nunca iriam a sê-lo. Desafiante, longe dos imediatos sucessos, seria preciso abrir mais aquela mão que aponta mas não agarra. João Paulo não pertence à geração da moda do querer ter, e ter logo, sem grande esforço. A sua obra é feita de uma procura difícil, muito lenta e paciente, de um alfabeto antigo, primordial, em que o sinal desenhado contivesse um som e um sentido.

Vejamos o primeiro poema desta recolha feita de 2019 até 2022:

Milagre Matinal

O jovem melro ainda não sabe voar.

O tempo vem mas passa lento e ele perde a paciência,

lança-se do ninho e cai redondo no chão.

O cantor pega nele com duas mãos extremamente cuidadosas,

aproxima-o da boca, sussurra-lhe algo ao ouvido e abre as mãos:

o melro sai a voar como um príncipe.

Parece este poema o comentário ao que eu  estava a dizer, imperfeitamente.

Há um princípio e um tempo certo, é preciso com paciência saber esperar.

O vôo que o cantor lhe ensina, quando o apanha do chão, é dessa lição que fala, do tempo e da paciência. São o segredo da alma, a energia secreta, tão ligeira que apenas se pode sussurrar, e assim lhe liberta o vôo desejado.


Em Quelques Regrets a narrativa é citadina - sim, um poema pode ter e ser narrativa - não é afinal tudo o que dizemos, tudo o que sentimos, narrativa? Explícita ou implícita? O que se diz, ou não se chega a dizer, sem um tal esforço não existe. O esforço é o do tempo em que temos de pacientar. Neste poema, o acento deve recair sobre o que se procura, a música, e não o materializável imediato:

...enfim,  eu não queria brincar, nem mesmo sonhar,

queria encontrar a música nas coisas palpáveis, 

queria ir ter com ela, na vida, e depressa.

Demasiado depressa.

Alguém que ia com ele não o acompanhava e dá-se uma separação dolorosa.

Mas da separação pouco se fala, este não é um poema de amor infeliz e carregado de lágrimas, "baba e ranho", ao modo realista de que o poeta se afasta, embora possa ter alguma pena do sofrimento causado.

Não, mais uma vez é da música e do seu tempo - o tempo certo  - como para Michaux foi da pintura, para lá da palavra, que sempre se tratou, juntamente com o tempo. O tempo certo.

Noutro poema adiante, numa viagem, incómoda mas apesar de tudo prazenteira, entre aldeias, ouvia uma evocação de Mozart, o Ave Verum Corpus, entre a brutalidade de um berbequim que furava o universo e o partia.

Assim, em plena vida moderna, vive o poeta a sua vida, musical e solitária, que por vezes corre entre montanhas altas onde chove música e como nascem sóis. E prefere ainda assim o dom  da Lisboa que lhe é dada e o leva a querer mais. (RELEVO).

Continuando a leitura, iremos descobrir o quotidiano, a evocação da família, dos namoros da adolescência, estes com humor que bem podiam dar um conto, mas João Paulo é como se deve ser, uma vez dito o que havia a dizer está dito e basta um ponto final, como a última nota de um acordo perfeito.  O menos, e retomo o eterno Celan, é mais.

 Este livro abre as mãos sobre uma Lisboa (e uma vida) muito citadina e contudo interrompida por um olhar que comenta e apesar de amar, a critica.  Nem o célebre pénis de Cutileiro que a tantos ofende, a ele lhe move um centímetro de reacçaõ  indignada, apenas se limita a comentar que não é arte.

Esta espécie de olhar que observa e descreve é para poder retomar a seguir o que lhe move a alma: a música.  O resto são narrativas, estão ali, podiam estar noutro  livro, noutro espaço, o da velha casa de onde saíram e onde por vezes ia passar um fim de dia, até ouvir a mãe falar com ele.

Havia memórias naqueles espaços, coisas aconteciam, que ele recolhia nas suas mãos estendidas. 

Contudo estamos perante uma poética de distanciamento, como a brechtiana, que sem nomear ele pratica. É a sua marca de estilo, é o que o distingue de tantos outros autores que por aí proliferam em busca de empatias e de sucessos rápidos, mas a quem falta o secreto sussurro do Cantor no ouvido.