Saturday, May 06, 2006
A musica de Tabucchi
TRISTANO MORRE, de António Tabucchi, trad port. D.Quixote, 2006
" A história é como o amor, é uma música, e o músico és tu, e ao tocá-la revelas um enorme talento, és um intérprete que sopra a plenos pulmões no trompete ou faz deslizar arrebatadamente o arco sobre as cordas...admirável, uma execução perfeita, palmas. Mas não conheces a partitura.Só a decifras mais tarde, muito mais tarde, mas entretanto a música evaporou-se..." (p.91)
António Tabucchi publica, se bem me lembro, desde a década de 70.
O primeiro dos seus romances que li, e segui como quem viajasse com ele, nesse mesmo nocturno, já musical e muito "pessoano", foi NOCTURNO INDIANO, de 1984.
Depois vim encontrar em AFIRMA PEREIRA um país, uma Lisboa, um conjunto de personagens que faziam parte de uma história social e política de que não estávamos afinal ainda muito longe. A Revolução tinha alargado o horizonte habitual, mas a pequena rotina, o espírito burguês do pequeno e assustado funcionário agora iludido com um outro poder, mantinha-se, e fazia daquela história que devia retratar um passado recente, um presente ainda indefinido.
A música era tocada, por muitos, por todos, mas não se conhecia a partitura.
Com TRISTANO MORRE encontra-se outro país, mas na verdade o que nele se descreve é um espaço universal, o da condição humana, consciente e sofredora. Passa nas páginas do livro um sopro de melancolia dolorosa, que a coragem dos lutadores contra o nazi-fascismo não chega a fazer esquecer.Esses morreram bem, sabiam por que viviam e por que morreriam.A sua vida tinha razão de ser. Ainda que pobres, nada lhes faltava.
Mas aos heróis da vida de hoje, que o são apenas porque estão vivos, tudo falta.É essa a razão de tanta melancolia e não as cefaleias atrozes :
"Sabes o que significa cefaleia?...Para já é um leve ruído, porque é assim que começa, uma campainha esquisita que é como um silvo ou um lamento agudo, um sonar, chega de muito longe, das profundezas, dás por ele, e de repente as coisas assumem contornos ameaçadores,como se aquele silvo se tivesse introduzido na vista, aguçando-a, distorcendo-a, e ficas com a sensação de ter um prisma no lugar dos olhos, porque os contornos, as arestas, os objectos ampliaram a sua existencia no espaço, dilataram-se, mudaram de geometria, e ao mudarem deixaram de significar aquilo que significavam...e a partir daí tudo ondeia, o espaço cresce como uma maré...o chão liquefaz-se, e um pulmão que parece todo o universo respira à tua volta, ou melhor, dentro de ti, e tu estás em cima dele e ao mesmo tempo dentro dele,és um grão de pó ..." (p.89).
O leve ruído da cefaleia, que depressa se transforma num conjunto de sensações infernais, é a antecipação do cântico da morte.
E relembro, não sei porquê, mas relembro, Rilke, nos Cadernos de Malte Laurids Brigge:
" Antigamente sabia-se (ou talvez se pressentisse) que se trazia a morte dentro de si, como o fruto o caroço.As crianças tinham dentro uma pequena e os adultos uma grande. TINHA-SE a morte, e isto dava às pessoas uma dignidade particular e um calmo orgulho.
Meu avô, o velho camareiro Brigge, a esse ainda se lhe via que trazia dentro de si uma morte. E que morte! durou dois meses, e era de voz tão forte que se ouvia até lá fora na quinta. "
E segue: " Era uma VOZ, a voz que sete semanas atrás ninguém conhecia ainda,porque não era a voz do Camareiro..."
Era a voz da morte do Camareiro, uma voz atroadora e exigente. Exigia, e "exigia mesmo morrer. Ele morreu a sua morte difícil " (trad.Paulo Quintela)
Será essa a razão de tanta melancolia ? Já nem a morte se poderá escolher, o progresso , com o seu excesso e a sua vacuidade, não nos deixará TER o pouco que sempre foi nosso.
Há mais um grito, nas últimas páginas do livro de Tabucchi, e não é por acaso:
"Eu sou voz, e a tua é mera escrita, a minha é voz...a escrita é surda..estes sons que ouves agora no ar sobre a tua página hão-de morrer, a escrita fixa-os e mata-os."(p. 164)
Contudo sabemos que neste jogo especular e crepuscular ao mesmo tempo, nem a voz nem a escrita morrerão.
O avô de Malte," espacializou " a sua morte: não cabia no quarto, nem na sala, exigia que o seu corpo fosse arrastado de um lado para o outro e explodia em cóleras terríveis se os espaços se tivessem esgotado antes do dia terminar.A casa precisaria de asas para se alargar e conter uma tal morte.
Podíamos dizer, com Wagner, que ali o tempo se tornava espaço, mas não um tempo edénico e sim o seu inverso, infernal.
Tabucchi faz o contrário: "temporaliza" o espaço, se assim se pode dizer. O espaço pemanece imóvel, e é na memória do tempo, dos muitos tempos, atravessados pelas vidas de uns e outros, e também dos muitos nomes -que afinal são um só - o da paixão que também ela morre, que a história da morte de Tristano se vai desenrolando.O espaço ali torna-se tempo.
A cefaleia cruel que começa com um ruído inquietante, culminará na distorção do espaço, precisamente porque não é do espaço que ele deseja tratar, mas sim do tempo, uma verdadeira aventura da consciencia que se procura recuperando no mais fundo da memória o que ainda lá está guardado, à espera de ser contado, revivido, para desse modo adquirir uma eternidade desejada, e que só uma tal "voz" permite.
O que não é dito não existe.
"O espaço cresce como uma maré...o chão liquefaz-se..", Tristano sente-se dentro e fora desse pulmão gigante que é o universo inteiro, e ei-lo transformado em grão de areia, no centro do universo. Pelo SOPRO conhecerá finalmente, como um místico, a primeira e última realidade que é a sua.
Para terminar, um poema de Lindley W. Hubbell :
I am not a person.
I am a succession of persons
Held together by memory.
When the string breaks,
The beads scatter.
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