Wednesday, May 28, 2008

Memórias do Holocausto


Com o título de DIE ZEICHNUNG UEBERLEBT , O Desenho Sobrevive, publicou Maike Bruhns uma obra com os testemunhos de presos do campo de concentração de Neuengamme ( Ed. Temmen, 2007 ).
São presos oriundos de vários paises: Dinamarca, Alemanha, França, Holanda, Noruega, União Soviética, Hungria, todos têm em comum o serem ou judeus, ou ciganos, ou comunistas ou simplesmente resistentes activos contra o nazismo e sua ideologia perniciosa, que não desejaríamos ver reproduzida sob nenhuma outra forma, manifesta ou  oculta.
Aquele que, por se sentir todo poderoso ( ilusão que os tempos, a prazo, se encarregam de destruir ) se permite ofender, perseguir até à violação dos mais íntimos direitos e preceitos da dignidade humana, da relação com o outro, merece que o denunciem.
Estes presos, que tinham o dom de saber desenhar cumpriram esse dever da denúncia, no desejo de que a memória perpetuada não voltasse a permitir tal horror. 
Encontram-se nesta obra exemplos comovedores, pela capacidade de resistência (marca do homem profundo). 
Mas chegou a hora de apontar para as imagens que agora e repetidamente as televisões de várias partes do mundo nos dão a conhecer: as crianças morrendo à fome no Sudão são uma parte do que o Ocidente está a permitir, em muitos pontos da África sofredora. Como permitiu, durante um tempo, que se morresse nos campos de concentração. 
Nós, entre nós, discutimos neste momento a fome em Portugal: está nas cinturas de Lisboa, ou mesmo no seu coração. Está fora dela, no chamado Portugal interior. 
Que mão irá desenhar esses rostos, esses corpos, esses olhos que já não olham de frente?
Não tanto para compaixão como para alerta? E só agora se deu por isso? 
Os novos campos terão outro nome, mas serão à mesma campos de abandono e sofrimento inenarráveis.
Na imagem vemos um preso doente a ser obrigado a mostrar aos guardas se ainda tinha diarreia. Se tivesse voltava mais um dia à barraca hospitalar; de qualquer modo, passado esse dia, estivesse melhor ou pior voltava ao trabalho ou era gazeado, se demasiado fraco.
Nós que fazemos com os fracos ? Que país é este?
 E que Europa é esta, já que dizemos que é tudo culpa da Europa?




Saturday, May 17, 2008

Os poemas de Jayro


Chega-me às mãos, enviado por Henrique Chaudon, poeta amigo, o livro de poemas de Jayro José Xavier:
POEMAS, 2007.
Abre com duas Epístolas, cuja elegância clássica nos conduz, pelo embalar do verso, até aos nossos mitos culturais de raiz mais profunda. Evoca Ovídio, um dos  grandes Mestres, mas é de Orfeu que recolhemos o lamento:
" Este é um tempo sem mitos
onde Orfeu sufoca.
Inútil pretender
a primavera, o brando 
rumor dos remos nas 
águas. E aqueles deuses
claros, aqueles deuses
de uma era sem orvalho".

No Brasil como em Portugal, sem nenhuma necessidade de acordo ortográfico (que parece imposto por razões que nada têm a ver com nossa mútua cultura) a poesia cresce nos seus lugares naturais, onde é amada e lida, cá e lá. Sempre li os autores brasileiros de que me ia informando e cuja leitura me apaixonava. Recordo Clarisse Lispector, era eu muito jovem ainda. E tantos outros. Penso: o que fará o acordo a um autor como Guimarães Rosa ? E se agora, por um acaso feliz, de mão de amigo, leio Jayro, direi com ele, no seu poema :
Eu Me Defendo com Sintaxe e Rosas

"Eu me defendo com sintaxe rosas
de teorias e teocracias,
quais, por aéreas brisas, fugidias
e quais, por duros ventos, desditosas.
Com soprarem as duas, enganosas,
de trevas são as trilhas destes dias,
daí a minha espada- de- utopias
ferindo o mundo (e mote) em novas glosas.
Fará meu verso a fábula fecundo
e, um dia, um trovador de Sagitário
o reino que habitemos mais jucundo.
Terçar armas com reis é temerário;
pior, porém, é repensar o mundo
sem alma de poeta visionário".

Como não sentir o eco camoniano, doloroso, neste soneto que os tempos e o tempo tornam tão actual ? 
O livro de Jayro lê-se de um fôlego, e depois torna-se a ele para recuperar o gosto das nossas próprias emoções perdidas. 
Ele diz, como Pessoa diria: "Sou um bicho que pensa.E a quem oprime/ a solidão de ser, sem nenhum crime" (in Dois Sonetos do Último Verão).

Deseja-se um Acordo? Publiquem-se em Portugal estes poetas das novas gerações.O seu sopro é moderno, nem podia ser de outro modo, e a sua cultura é universal.
 

Thursday, May 15, 2008







Está de saída O MARINHEIRO de Fernando Pessoa, na belíssima encenação de Alain Ollivier. O bom gosto da encenação define-se pela simplicidade elegante, contida, do design de luz, dos tons de cena, cortina inicial e final como que tecida na própria névoa do texto, máscaras que unem a diversidade, ainda que só aparente, das três irmãs veladoras, mas acima de tudo e isso tem de ser sublinhado e aplaudido, a indicação do modo de dizer o texto pessoano (difícil quanto baste): as vozes correm leves e fluidas, como um sopro, adquirindo só a dado momento a intensidade que permite delimitar o sonho, o medo, a comoção, ela própria como que retirada de si mesma e contida, como tudo o mais.
Uma encenação centrada na essência e na respiração do que o texto diz e desdiz, ou simplesmente deixa adivinhar, e apoiada na capacidade exemplar das intérpretes, que nunca sobrepõem ao dizer o exercício do seu virtuosismo, que é notável. 
Está de parabéns, o Teatro de Almada. Assim estivessem de parabéns os nossos leitores-espectadores,os nossos professores, os nossos estudantes.
Como lemos e estudamos hoje a obra de um grande autor? Por pequenos resumos, simplificados ?
Nada é simples na obra de uma grande autor, mas cabe ao seus intérpretes, neste caso o encenador e os seus actores, tornar mais acessível, mais inteligível, mais legível, a obra que apresentam.  
Assim, logo nas máscaras, de penteado quase aterrador, de tão carregado de noite, somos levados a compreender que estamos ali diante de algo mais do que meras veladoras de um cadáver.
Houve mão de Mestre, nos penteados que ornamentam as cabeças e que numa primeira impressão poderiam evocar as antigas Erínias. Estamos de facto perante formas antigas, mas não as vingadoras.Ali não houve crime, não houve abuso nem excesso: houve apenas ausência, regresso, sem que se saiba logo a que outra esfera.  Estamos perante as Mães, na imobilidade só aparente do seu Reino, o que fez tremer Fauso e Mefisto, só à menção do nome. Já o nome é sagrado, é divino, é princípio e fim de um outro mundo: ali onde a própria Urform,  origem primordial, terá lugar, se forma, se tece, e por fim se desvanece regresssando à poeira de que veio.
Poeira cósmica, abissal, nuvem galáctica que o sonho de alguma vela inexistente  atravessou, sem chegar ao possível espaço desejado. 
A obra é feita de espera, mais do que de desejo: algo definidor das marcas de Pessoa, no que escreve. Vive-se (espera-se) no intervalo de ser. A grande marca (o grande marco ) é o tempo, em suspenso. O Ser e o Tempo podiam ser balizas nesta peça, antecipando a magna obra de um Heidegger. O Tempo eterno flui: contém o passado, o presente e o futuro, ainda que ignorado. Mas o Ser, ou melhor, a consciência de Ser, petrificou: é o cadáver velado, é o quarto elemento que faltaria para completar o Todo da existência. 
Esse cadáver que nos interpela, como interpela as veladoras, é o que, por associação de imagens e ideias (no fundo o verdadeiro modelo estruturante da peça, a associação deslizante de imagens e ideias) confere às figuras hieráticas que vão quebrando o silêncio dessa noite espectral em que tudo podia acontecer e nada acontece a não ser o já acontecido- é o que confere, dizia eu, uma forte carga simbólica a um texto que ficará para sempre como texto emblemático da criação pessoana. 
Definido como drama estático, podíamos defini-lo, como faz Teresa Rita Lopes, como extático. Só que a experiência aqui não é a do divino a que a alma em êxtase se une, fundida numa mesma luz primordial. Deus é o nome da ausência, nunca se presentifica, ou se  actualiza, em movimento que leve da potência ao acto. O acto não existe, nem sequer o sonho dele. E se a palavra se constitui, nesta peça, em desejo algo impossível de dizer é porque sem palavra, sem Verbo, não há vida. 
E apesar de tudo é feita da Palavra, do permanente desejo e busca da Palavra, a vida de Pessoa. Goethe falou na Ur-Form, Pessoa responderia com a Ur-Wort.
Ele teve só uma pátria: a da língua portuguesa. 
   
 

Monday, May 12, 2008

Brecht, As Canções de Teatro


Aceitei o comvite de um bom amigo para fazer versões livres das canções que B.Brecht escreveu para teatro e foram musicadas por compositores como Weill,Bruinier, Hindemith, Eisler, Dessau, Britten, Adorno,entre vários outros, e cantadas por Brecht ele mesmo, Lotte Lenya, Helene Weigel, Gisela May, Milva, David Bowie, etc.
Tratou-se de uma proposta irrecusável, que me deu o maior prazer.
Em breve, e isto é só o anúncio, começarei a blogar, poema a poema, ou canção a canção, as versões que serão cantadas por Luís Madureira e Teresa Gafeira, acompanhados por um Mestre: Jeff Cohen.
A promessa está feita, o trabalho quase acabado.
Para quem possa ler alemão, deixo uma indicação bibliográfica preciosa, cuja tradução ao menos para inglês deveria existir e ainda não existe: 
de ALBRECHT DUMLING, LASST EUCH NICHT VERFUEHREN.Brecht und die Musik, ed. Kindler, 1985.
Magnífico guia para a aventura musical de Brecht através da sua vida e da sua obra, num verdadeiro percurso de gigante, comparável ao de um Shakespeare ou de um Goethe.
Ah, e como são actuais as suas propostas de revolução numa sociedade dolorosamente adormecida como está a nossa!

Monday, May 05, 2008

Pina Bausch


CCB e SÃO LUIZ oferecem ao público português um Festival Pina Bausch.José Sasportes diz tudo sobre a sua obra, ao defini-la como " acções para bailarinos".
São de facto acções, pois todo o movimento implica uma intenção que é acção. 
Mas não são acções ao acaso, arbitrárias; são acções com sentido, um sentido que se apura na extrema exigência e no extremo rigor do desenho no espaço de trabalho.
Por trás de cada gesto, excessivo ou contido, a reflexão cuidada, a justificação, ainda que sub-liminal, da escolha feita.
Quanto menos se revela, mais se diz.
Há algo da mística oriental (até mesmo na ironia que irrompe e rompe algum acontecimento) na meditação e na prática bauschiana.
Corre-se muito ? mas o importante é mesmo estar parado.
Fala-se? Mas o importante é mesmo estar calado.
É-se feliz, por momentos?
Mas a dôr não deixa de estar presente, com o seu rasgão, com o seu grito.
A natureza é fértil, resistente, é a Mãe abundante?
Mas o choro das crianças faz-se ouvir para sempre.
Numa realidade fragmentada, de múltipla leitura, fica a imagem que se guarda melhor,  e o Todo poderá ser lido nela : o do cego correr da vida, do quotidiano onde por vezes uma louca ânsia de Perfeição e Beleza deixará a sua marca. 
Pequeno Poema das Crianças de Lodz

Em Lodz
o guarda chamou as mães:
peguem nas crianças 
levem-nas para o jardim
sentem-nas viradas 
de costas para mim.
Ensinem-lhes o jogo 
do 1, 2, 3 !
À contagem do três
não olhem para trás:
ficarão a dormir 
numa cama de folhas
quem sabe sem sofrer.