Friday, December 20, 2019

Archipelago


Archipelago (ouvindo Luís Tinoco)

corre aquele mar entre as ilhas,
batem as ondas nas rochas,
fogem anjos que se escondem
nas cavernas mais profundas
ainda desconhecidas
com suas pedras preciosas
cânticos de maravilha
não há sereias
nem príncipes
não há nada a transformar
ali só se podem ouvir
esses segredos do mar



Thursday, December 05, 2019

Ingmar Bergman por Cristina Carvalho

O Caminho contra o Vento.

O livro de Cristina Carvalho sobre  Ingmar Bergman é para ler devagar, sobretudo por quem conheça a imensa filmografia deste génio. Não é como os anteriores romances biográficos que já fez, sobretudo aqueles em que entra pelas páginas dentro como voz directa do biografado. Assume a sua voz, anuncia-se como sendo ele mesmo a tomar a palavra, a fazer a confissão de amores, escolhas e maldições. Contudo quem conhece a sua filmografia sente que ali nada destoa: a infância torturada, o ódio a um pai, Cónego Protestante, que não hesitava em deixar os filhos de castigo a  pão e água, a bater-lhes e até chicoteá-los, se possível fosse.”O meu querido pai era uma besta...
          Para nós, miúdos, era uma besta desumana e estúpida, digo eu já muito longe e sem conseguir vê-lo. Com a minha mãe também tinha comportamentos idiotas. Fazia-a chorar ou choramingar quase todos os dias...Ou porque a casa não estava arrumada como devia estar, ou porque os miúdos, nós, éramos muito mal educados, ou porque o pão estava frio, ou por isto ou por aquilo...Ela sofria bastante com aquela figura irascível e rígida”.
          A descrição da tirania continua: de repente todos à mesa, à espera de jantar, a sopa quente e o pai desata primeiro a ver as orelhas de cada um, se estavam limpas. E não ficava por aqui, no medo que incutia às crianças: que os ciganos as roubavam, ou compravam para o circo, e quem gostaria de ser o primeiro”.
“O meu pai era padre.Parecia-me quase impossível ele ser tão bonito e tão mau”.
Assim surgem as primeiras memórias, de um princípio de vida que não parecia auspicioso, para um futuro génio como Bergman. Mas ele saiu de casa aos 19 anos, para fazer teatro, daí para o cinema, e só agora tudo isto, aos 85 anos, na sua ilha fechada, lhe ocorre contar. Já tinha feito os filmes por onde toda a sua vida, ou o seu pensamento interpelador do Bem e do Mal tinham passado. A difícil, mesmo impossível relação de amor entre os seres, filhos e pais. Bergman, um pensador do incomunicável, excepto num ou noutro caso. Mas até no milagre da Fonte daVirgem, DEUS parece esconder-se, assiste sem interferir ao sacrifício brutal, antes que nasça a fonte...

Só a velhice permite, como ele diz, regressar tão profundamente a um passado longínquo, que devia estar completamente afundado na treva da memória. Porque foi infeliz, frequentemente, entre os intervalos da casa da sua avó, as filmagens que corriam a seu gosto, o enorme prazer de comer bolachas Maria todo o tempo. Sofria do estômago, um mal que atribuía ao pavor das maldades do pai. E as bolachas eram um lenitivo.

Pessoas como eu, a chegar à velhice, como ele chegou, serão mais sensíveis a estas outras páginas que Cristina dá a ler. Contudo, sendo ambos criadores, de verdades e ficções, o que será que melhor me vai atrair, ou desafiar para ir ampliando a minha própria narrativa (pois tendo visto todos os seus filmes, e lido alguns excertos dos seus diários em inglês) que fios me vão conduzir por aqui, no sentido de entender melhor a sua obra, aprofundar a complexidade de um pensamento ao mesmo tempo tão crítico e tão sensível à Beleza e às situações em que se expõe?
Conta como sempre foi independente de espírito, nunca gostava que lhe dessem ordens ou fizessem reparos. Com o pai já tinha sofrido demais...e agora gozava plenamente do seu direito de ser, diferente, e não puro espelho de outros. Professores que não seguia, e sem eles aprendeu tudo o que lhe fazia falta para a sua arte do cinema:”luzes, câmaras, fotografia,  sistemas de sons, etc.” Para que depressa e sem outras opiniões, quando lhe surgia uma ideia, poder rapidamente pô-la em prática. Assim, nessa pressa, nasceram os seus guiões. Um artista completo, e reconhecido como tal.
Mas dá-se, na narrativa, agora um  salto para a velhice:
“Agora sinto a velhice. Conheço pessoas assim, a sentir a velhice. Enfim um tanto amalucadas. Vestem-se como se tivessem menos cinquenta anos, querem saltitar, mas são ridículas; pretendem poder comer de tudo e vão dizendo que nada lhes faz mal, mas é tudo mentira: os seus velhos  órgãos vitais já não respondem, não são os mesmos, estão mirrados, os seus sonos  são curtos e cheios de pesadelos. Eu sou velho e sinto a velhice a pisar, a calcar, a tentar esmagar-me, mas ainda não me dei por vencido. (...) E o pior de tudo é a ideia da morte, essa ideia instalada em mim há tanto tempo e que agora acorda e passa todo o dia comigo”.
Evoca então, depois de se comover com essa ideia, a morte que se aproxima, a casa da sua avó. E nesse espaço, que agora parece de magia, o seu crescimento de jovem adolescente, a natureza à volta, a água, os barcos, os peixes, um mundo que o vento leva consigo, enquanto ele, ainda vivo caminha contra o vento.
Escrevi algures ( e muito do que Cristina me dá a qui a ler, por via de um Bergman que foi de paixão, no meu tempo ) que o vento é o Pensamento.
Imagem que bebi numa gravura alquímica de Michal Maier, o médico e hermetista do século XVII, que conviveu com todos os grandes do seu tempo.
 Na verdade, ver os filmes de Bergman (sou eu a falar) é ver um pensamento em movimento, o tal vento que o leva.
E é pena que se limitasse apenas a jogar o Xadrez da morte, em vez de antecipar, com o seu olhar severo, o que viria a ser o xadrez do envelhecimento.
Mas surge finalmente nas páginas em que se ocupa precisamente do envelhecer, pela mão de Cristina Carvalho.
Envelhecer é muito aborrecido, dá trabalho. Colide com as rotinas antigas, obriga a rotinas novas, como esta, aparentemente tão simples mas tão irritante de acordar cedo e não poder ficar na cama, porque “ se começa com pensamentos sinistros a propósito de tudo e de nada”.
Outrora, quando se era mais novo, o pensamento era ideia criadora, novo argumento, novo guião, novo filme. Agora podendo gozar de um tempo imenso, o tempo todo, prefere não falar de si, nem da sua obra, nem desta sua velhice, com ninguém, nem sequer com o seu melhor amigo ainda vivo, Erland Josephson, cinco anos mais novo.
“ Sabe-me bem o paladar do silêncio”.

Com um mundo envelhecido, sobretudo na Europa, que deixou de ter filhos, não me espanta que um Hermann Hesse escreva os seus ensaios sobre a arte de envelhecer, ou o Cardeal Ratzinger as suas meditações sobre a morte.
Mas Bergman, o criador da imagem, não propriamente da meditação sobre ela, que aqui nos é descrito, também tem os seus momentos: “ Assim aguardo a minha morte, entretido a construir um caos organizado, a expulsar da minha alma todos os monstros que lá abriguei por tantos e tantos anos”.
E adiante, pela mão de Cristina, cuja escrita esmerada não se perde em floreados:
"Aqui há tempos, numa entrevista, perguntavam-me se eu tinha ou não tinha medo de morrer. (...) Disse-lhe que não tinha medo nenhum e, por outro lado, sentia muita curiosidade e pensava poder ser até, uma situação interessante. (...) Acredito, na verdade, numa outra vida, sempre acreditei.É impossível? Como saber? Quem sabe? Ninguém.(...) Sempre considerei essa situação da morte como uma passagem para um qualquer outro estágio”.
Sendo o universo tão vasto, por que razão há-de ser a morte uma aniquilação total em vez de uma dispersão, como folhas ao vento, uma explosão de energia, a que a alma continha aprisionada num corpo, numa matéria densa, despida já de si mesma?
 Bergman volta à questão do Envelhecimento, já a caminho do fim do livro ( e tal como eu, que escrevo desde 2013 para combater, sem mais, esse envelhecimento e os seus cruéis tropeços) pede que lhe perdoem, se já disse o que vai dizer. “Volto a falar”. E para dizer o que já dissera, que não o assusta. Não tem medo, o que tem é saudades:
“Sinto saudades, é isso. E sentir saudades, isso sim, é um sentimento terrível (...) sinto saudades de ontem, de hoje, sinto saudades de amanhã”.
Foram sentimentos destes, deste género, sentimentos e verdades desgraçadas, impositivas, que tentei transmitir em toda a minha obra cinematográfica”.
Saudades de amanhã. Para mim tem uma leitura simples, ou simplista, se quiserem apreciar menos do que eu o que ele diz: deseja que o amanhã traga consigo não o temor da morte, adiada, mas o sorriso feliz de um presente que continua actuante enquanto a hora não chega.
 Afirma que não há salvação (da morte? ) para ninguém. Mas não é preciso invocá-la, basta sentir o vento suave no rosto, se acaso se foi à janela, ou se se ficou deitado na cama mais tempo do que o habitual, o sopro leve chegará na mesma, à hora certa, levando para um Longe infinito (seria esse o nome de um Deus real, numa outra esfera? ) a etérea substância do corpo que já se abandonou.
Não falarei da imensa lista de mulheres amadas, das situações de prazer ou de dôr, de separação, de reencontro, o leitor poderá seguir até ao fim os pormenores de uma vida que Cristina Carvalho visitou como deve ser, antes de ficcionar: ou seja, com o respeito e o cuidado que toda a vida, mesmo a dos génios mais difíceis, nos merece.



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Thursday, November 28, 2019

Castanheira - Pessoa, um vôo pelo espaço
Fui ver a exposição sobre o Fausto de Pessoa, do José Manuel Castanheira, à Galeria da Graça.
Iniciativa de Junta da Freguesia, que só posso louvar.
 A galeria é na rua da Graça, luminosa, e os quadros são belos, intensos e perturbadores, deixando-nos entregues ao sentido da vida, da eterna disputa das forças do Bem e Mal, um Diabo-Mefisto que tem na mão o nosso globo azul – agora cada vez menos – e o envolve num abraço carregado de maldade, de posse, de certeza ( ou haverá ainda dúvida) de que Pessoa, relidos Marlowe e Goethe, perderá, junto com eles a grande aposta sobre a salvação da espécie humana?
Não sabemos, e nunca saberemos, porque não foi Pessoa que publicou a obra, mas Castanheira que deixou, na sua pintura, o que havia de possível, na visão cósmica da eterna batalha: “aquele que sempre luta será salvo.”
Ou as forças do universo, negras e poderosas, já arrebataram para longe, para esferas a nós inacessíveis, naquelas asas espessas, poderosas, a essência que Goethe e os seus Anjos chamaram de “crisálida”, e cujos laços foram chamados a desfazer, permitindo que ascendesse ao sublime e Eterno Feminino.
Mas Pessoa não é Goethe, poeta solar, choca em parte com o Pessoa lunar, o que vê e não vê, crê e não crê e no último quadro de José Manuel, que desceu tão fundo naquela interpelação de um deus que se retira e cala, o que nos é dado a contemplar é o cais das colunas, escadarias que no meio de um nevoeiro mítico se abrem para o mar: o mar, o das águas profundas, delas sairá talvez um Dom Sebastião  que ainda hoje nos faz sonhar.


Wednesday, November 20, 2019




Notas de um diário
(para o Sérgio Ninguém)

Escrevi no blog de simbologia e alquimia sobre o último livro do Sérgio Ninguém, da Eufeme, uma cuidada e belíssima edição, livro pequeno, como gosto tanto de os ler, O PESCOÇO NA NAVALHA, poemas de 2016 a 2019.
É o livro que o salvou, ou o fez atravessar, pela palavra poética, uma funda depressão. Todo o imaginário é negro, e o seu dizer, puro e seco não se esconde em formas mais elaboradas e suaves ( o que seria um desastre) tentando envolver o seu discurso numa elegância fictícia.
Aqui não há fingimento. Não esconde, não disfarça, não facilita leituras.
Sérgio Ninguém pertence a esta nova geração de poetas libertos que agora vou descobrindo, com um prazer enorme. Não se pode ser todo o tempo um repetidor de Pessoa, ou de outros dos nossos grandes, dos vários movimentos, do Modernismo ao Surrealismo e ao post-Modernismo que inovou, provocou e também se esgotou na devoração que se fez de um Herberto Helder, por exemplo.
Não, com esta geração a que Sérgio pertence, descubro novas linguagens, não estão presas, nem querem, ismos de qualquer espécie. E por trás da linguagem o que ela significa: uma nova e por vezes brutal relação com o mundo, os outros, sejam eles quais forem, e acima de tudo consigo mesmo. O poeta já não se esconde, expõe-se, como diria Celan ( aquele que a seguir a Pessoa mais me tem interessado e influenciado : traduzi-lo foi uma aventura que me ensinou a chegar ao osso da palavra, a lavar o cadáver do corpo poético com que nos confrontamos de cada vez que escrevemos. Uma a uma ir despindo as palavras que cobrem o cadáver.
E expô-lo assim, na sua nudez tão afrontosa. Que não haja piedade, pois não há homem nem  deus que nos ensine a ter piedade.
Sérgio coloca o pescoço na navalha. Imagem cruel, a que não poupa o leitor: a cada momento poderá dar-se a morte, esse corte suicida, e o sangue por ali se escorrerá, fazendo poça no chão, o mar da vida assim interrompida. Este conceito, ou este sentimento – afinal a poesia também é sentimento – da interrupção é importante no discurso poético. Não fomos feitos para uma edénica eternidade bem-aventurada? Que crime, que traição, que pecado tremendo nos deu um castigo de que o próprio deus, depois se arrependeu, dando o seu próprio filho em oferenda?
Vem logo à memória o célebre poema de Blake nas Songs of innocence and experience, tão terrível, de garras que se cravam tão fundo, e o tornam quase intraduzível, TIGER:

Tigre, tigre, fogo ardendo
na escuridão da floresta,
que olhar eterno ou que mão
tão temível simetria desenhou?

Em que céus ou profundezas
arde o fogo dos teus olhos?
E ele, que asas deseja ter?
Que mão ao fogo se atreve?

Qual o ombro, qual a arte,
Que o teu coração torceu?
Ao começar a bater,
mão terrível, pés de horror,

que martelo e que corrente?
O teu cérebro, em que forno?
Que bigorna e que tormento
te prenderam ao temor?

Quando as estrelas suas lanças depuseram
e o céu com as suas lágrimas molharam,
sorriu Ele perante a obra?
Ele, que fez o Cordeiro, também a ti concebeu?

Tigre, tigre, fogo ardendo
na escuridão da floresta
que olhar eterno ou que mão
tão temível simetria em ti ousou?

A interrupção tinha sido fatal. O Tigre, mais do que a Serpente, tornou-se dono e senhor da criação, e agora Sérgio, que está atento, socorre-se do Apocalipse de São João, que no seu delírio visionário descreve a Besta e o seu número sagrado, 666, ironizando pelo meio dos números da criação (os seis dias que durou, descritos no Génesis) com uma canção popular inglesa, a dos ratinhos cegos, que me dispenso de citar aqui. Porque a imagem com que o poeta nos deixa é para levar a sério, são ratos, e não ratinhos, e são manifestação dos mortos que os Mestres deixaram para trás (“ Já não sei se os mestres ouviram os mortos....”) são ratos cegos “que procuram o tiro na cabeça”. Brutal esta imagem com que termina o poema.
Não hesita em gritar que não há salvação, talvez nunca tenha havido.
A interrupção causada pelo drama que teve lugar no Génesis foi ferida sem cura. A serpente apontou o caminho de um Conhecimento que estava proibido. E na verdade, hoje como ontem, continua fora do nosso alcance.
Termino com um último poema, que pertence já ao ciclo do Epitáfio:
Sou um interior sem vida -
uma pedra sofrida
num poço sem cobras encantadas.




Saturday, November 09, 2019

IMPROVISANDO, para ouvir melhor e sempre, A NOVA GERAÇÃO DO JAZZ


Hoje foi um dia feliz: recebi o livro da Cristina Carvalho, sobre Ingmar Bergman, e o livro do Jazz da nova geração, de Nuno Catarino e Márcia Lessa, IMPROVISANDO. Capa e design gráfico de Cláudia Rodo, terceira mão de artista, que por aqui também entra, com o seu swing de cores alegres. A mão protectora foi de Inês Cunha, Presidente do Hot Clube de Portugal.
Vivi muitas noites de grande música de jazz, nos anos 60, quando pela mão de Luís Villasboas vinham a Portugal, e ao Hot, os maiores músicos do mundo, e era a ouvi-los que as gerações aprendiam, ou melhor, sentiam, o que eram as linguagens musicais variadas, originais, diferentes. A ouvir se evoluía, e a participar, o que por vezes acontecia (os grandes eram generosos, e as noites eram longas) se crescia musicalmente.
Neste livro temos o testemunho da mais recente geração de jazzistas que Filipe Melo, na contracapa, define como a mais livre criativa e dinâmica da actualidade. O que move estes criadores? O que moveu todos os outros, de antes, e moverá os seguintes: o prazer de tocar, o trabalho e a curiosidade. Penso como é importante, em todos os domínios, este factor da curiosidade: querer mais, sempre mais, para depois a voz de cada um se tornar firme, e original, com um som que é assinatura própria, e logo se reconhece mal se sentem ao piano ou levem à boca o seu sax, o trompete, ou o que fôr.
Filipe Melo, o pianista que nos veio de longe, dos EUA onde tudo acontecia, é um grande exemplo da importância de saber e querer sempre mais, no domínio da Arte, musical ou outra: é ainda realizador de cinema e autor de banda desenhada.
Como ele diz, "o futuro, a partir de agora, não tem limites". E porquê este agora? Porque tudo evolui, tudo se tornou global e convivial, e com mais conhecimento (aqui entram trabalho e curiosidade) o jazz das novas gerações improvisa sem medo, arrisca, corrige, se fôr preciso, retoma o que tinha perdido...e segue em frente.
Que venham a seguir mais entrevistas, mais jovens como estes (fotos lindas...) mais um livro.



Sunday, October 27, 2019

Fausto, de José Manuel Castanheira, um livro de artista




José Manuel Castanheira: Fausto revisitado em Mefisto...
O mito de Fausto, que no século XVI pela mão de Marlowe adquiriu dimensão universal foi ampliado com Goethe muito para lá da tentação do poder da Magia e da perseguição do Belo, oferecendo à nossa reflexão um poder maior: o da Livre Escolha entre o Bem e o Mal, e o da transformação do mundo pela crença no valor do Trabalho, no Serviço dos outros, já na segunda parte da tragédia, onde está cego e Mefisto espera vir a roubar-lhe a alma.
Se nas primeiras formas, nos primeiros momentos, tudo se centra no egoísmo do desejo (Fausto irá, ainda que sem se dar logo conta, sacrificar Margarida ao seu desejo) já na segunda parte da tragédia Goethe, bebendo nos ideais do século XVIII de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que adoptou como maçon, orienta o seu pensamento para uma esfera em que Mefisto, o demónio tentador, não poderá penetrar. E assim se salva o herói, e é Deus, que no seu alto trono ganha afinal a aposta, feita no homem e nessa qualidade só dele de querer sempre mais, numa luta incessante pelo Conhecimento.
É por aqui que seguirá Fernando Pessoa, o poeta da interrogação e busca permanentes. Evoco os versos que já em 1913 traduziam um pendor filosófico marcante, em Além-Deus:
Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando –
O que é ser-rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?
( I, Abismo)
 A interrogação sobre o Eu, esse eu que se perde num devaneio que súbito permite uma iluminação (o encontro com Deus) é muito semelhante às interrogações de Fausto, em quem Pessoa concentra perplexidades e interpelações, negação e busca permanente, nos fragmentos que nos deixa. Se tivemos em Marlowe, ao gosto renascentista, a perda da alma em troca de uma beleza antiga, a da Helena clássica por quem tantos deram a vida, e em Goethe a aquisição de um saber alquímico, hermético e profundo, figurado no Eterno Feminino, e no valor do Símbolo como portão do Uno e do Todo, Pessoa, que leu Goethe (está na sua biblioteca pessoal) não consegue elaborar um verdadeiro sistema que contenha uma lição paralela à dos outros, ainda que de pendor modernista, logo mais céptico e de leitura mais aberta. O que nos deixa, e só podia mesmo ser  desafio incompleto, fragmentário, é um conjunto de interpelações, de interrogação sobre a essência do ser e do eu, a que os seus versos não darão nunca resposta.
Podemos aqui louvar a arte do fragmento, como fez Novalis, o grande romântico, contemporâneo de Goethe, ou a utópica busca da flôr azul, também ela, como Deus, mistério inacessível. Mas na inquietação de Pessoa há mais do que isso. Um Fausto que é seu alter-ego, e cuja busca assumirá outras formas, outros nomes (os múltiplos heterónimos) dos quais terá sempre consciência, enquanto a de si próprio se esvai. O que é ser ele, e estar ali diante do rio, a vê-lo? Ou seja, o que é ver o rio (ter consciência de outro, de outra coisa) enquanto em simultâneo desperta a consciência de si?
Consciência é a palavra-chave, a porta que se  abre para o conhecimento.
Entre os papéis que se encontravam na famosa arca, e que tanto trabalho deram a alguns estudiosos que organizaram e decifraram uma letra por vezes muito difícil, há um conjunto que nos interessa especialmente, para este caso do Fausto :
” O conjunto do drama representa a luta entre a Inteligência e a Vida em que a inteligência é sempre vencida. A Inteligência é representada por Fausto e a Vida diversamente...” ( Teresa Sobral Cunha, Fausto, ed. Relógio d’Água, p. 11).
Falemos da Vida, como faz Mefisto, numa conversa com o estudante que procura a sabedoria junto de Fausto: “ Pálida, amigo, é toda a teoria / mas a árvore da vida é verdejante” (Paulo Quintela, ed. Universidade de Coimbra, p.89).
Já Fausto se declarara, de ínício, cansado e farto de tudo o que tinha estudado ao longo dos anos, e o tornara sábio em matérias várias, como a filosofia, a teologia, a medicina, o direito, para concluir que não passava de um tolo: “ Eis-me aqui agora, pobre tolo, / tão sábio como dantes! “ (p.29).
Reconhece afinal, como Pessoa, que nada conhece, e que é chegada a hora de outra coisa:
“ Teu mundo é isto? Chama-se a isto um mundo? “ (p.30).
Espera, da contemplação do signo do Macrocosmos, uma revelação que o ilumine. Mas não há ali ajuda. Segue-se o sinal do Espírito da Terra:
“ Tu, ó Génio da Terra estás-me próximo!” (p.32). E por fim, a invocação do signo do Espírito, que lhe surge numa chama avermelhada, mas a que Fausto, aterrado, não resiste:
 “Sinto / que o teu aspecto suportar não posso!” (p.34).
E Goethe deixa-nos então com o enorme desalento do seu herói, tão ambicioso de início, tão desapontado agora:
Fausto- Tu, que o mundo vastíssimo circundas,
Quão perto sou de ti, potente Espírito !
Espírito- És igual ao espírito que entendes,
A mim não!
 Com este imenso anseio de alcançar algo mais, muito mais, do que um saber cinzento, se expôs Goethe a Pessoa, que o leu , entrou em diálogo com ele, por assim dizer, e tentou ir seguindo o seu caminho. O da Inteligência, como diz, que a Vida iria derrotar. Iria, mas não foi. Em Goethe ganhou a vida, no final da tragédia, luminosa e simbólica na sua integração. Em Pessoa não se chegou a uma conclusão final, os fragmentos deixam indícios do possível, mas permanece sempre a interrupção de uma inteligência que interfere, reflecte e obriga a reflectir, mas não ilumina nem resolve. No poeta a consciência é disruptiva, não é unificadora. A sua dedicação ao esoterismo, a sua curiosidade imensa, que nem a magia de um Crowley satisfaz, leva-o a ler, a ler tudo o que encontra nestes domínios, mas ao contrário do herói de Goethe o Fausto de Pessoa não se entrega, e quem não se entrega não recebe nada de volta, a não ser inquietação, dúvida, e por vezes revolta. Mas até para a revolta é preciso convicção...
 Retomo, porque me agrada uma versão um pouco mais fiel, a minha tradução da afirmação de Mefisto ao estudante que pretende ser orientado pela sabedoria de Fausto, e que o diabo ali finge ser, ocupando o seu lugar:
“ Cinzenta, caro amigo, é toda a teoria, / ...e verde a árvore de ouro da Vida. É importante a afirmação de que é de ouro a árvore da Vida, e que se contrapõe ao cinzento de toda a teoria. Em Goethe o ouro é o ouro alquímico dos filósofos herméticos, o verdadeiro símbolo da alma sublimada, que também Pessoa tinha lido, nos volumes de A. E.Waite ( The Hermetic Museum, Londres,1893, reed. 1994).
Falemos agora de José Manuel Castanheira e das sua pinturas sobre os fragmentos do Fausto de Pessoa que melhor apontavam os segredos e os anseios da obra do nosso poeta maior.
1
Logo na primeira,  a escolha da côr com mistura de treva, para um diabo que sob asas imensas abraça um mundo que é seu, como que define José Manuel o tema central de toda a obra: a aposta de Deus no céu e do seu apesar de tudo fiel companheiro, pois conversam à vontade sobre a espécie humana, e o mundo que ela habita. Será este globo azul o da purificação? Ou o da morte negra, da ilusão esvaída, do Nada em que tudo cai e se desfaz?
Esta é uma primeira imagem–resumo de um sentido simbólico, profundo, que será necessário ir descodificando, com a ajuda dos outros. Deus permitiu que o Diabo tomasse conta do mundo e da espécie que o habita e Fausto-Pessoa-Mefisto vai interpelar?
É uma figura ambígua, hermafrodita, ainda presa ao céu por umas cordas, que a consciência de si que o poeta–adepto adquire poderá romper. Ou com ela afundar-se, aniquilado pela sua impotência, proclamada (como naquele fragmento em que contrasta Inteligência e Vida).
Esta primeira imagem com que o pintor nos inicia à sua leitura da obra do poeta, merece um comentário mais aprofundado, do ponto de vista simbólico. Este demónio vindo do céu, ou preso ainda a ele, remete para arquétipos primordiais, da criação do mundo, da criação de um Adão ainda hermafrodita, de cujo corpo feito de lama, e a seu pedido, Deus irá moldar, esculpir, várias mulheres, imperfeitas e que o primitivo homem recusa.
Terrível é aquela que é remetida para um longe que assemelhamos às treva do inferno, um espaço de castigo, de afastamento que a levará a congeminar as piores vinganças contra quem a afastou. Com esta imagem quase brutal, na força que as asas segurando o mundo nos revelam, teremos de contar. É o aviso, é o que diz Castanheira, que tratará a narrativa pessoana de forma aberta e livre (nem de outro modo poderia ser) mas deixando sempre em fundo a pulsão de uma consciência que se procura e se esgota em perpétua interrogação. A relação de Goethe com o Feminino, é a de um desejo que se vai sublimando. A relação de Pessoa com o Feminino é complexa, de difícil aceitação, como a do homem primitivo na discussão com Deus. Teria de trazer para este nosso diálogo uma nota escrita há algum tempo, no meu blog de simbologia e alquimia, citando um belo estudo de Robert Graves, Les Mythes Hébreux (1987) sobre como os arquétipos do Feminino se constituíram há milhares de anos, no imaginário da espécie. E se para alguns o Feminino conduz e ilumina, até hoje pode ser para outros objecto de pavor e recusa.  Não é integrável, é antes disruptivo de uma consciência, como a de Pessoa, que se interroga em dúvida permanente. Outra leitura aconselhável seria, de Siegmund Hurwitz, LILITH, the First Eve, sobre o Feminino negro (ed. Daimon Verlag, 2009).
 2
O reflexo no espelho traz, como em Oscar Wilde, no Retrato de Dorian Gray, o negro escondido da alma, o horror recusado.
Mas não por muito tempo.
3
Fausto aspira ser mais do que é, na contemplação do Cosmos, na evocação do Espírito com o qual se sente identificado, algo que a voz do Espírito brutalmente lhe nega: ele é só o que é, e não mais. Falta-lhe centelha divina. Essa luz poderá vir mais tarde, pelo sacrifício de Margarida, pela revelação do Eterno Feminino desejado e alcançado, definido como o canto estelar do Símbolo.
 4
Dormir abraçando o mundo...
Entregue a uma vida maior, feita de busca  e quem sabe talvez um pouco de amor, que não seja o cavalgar de uma noite de Walpurgis, de uma Mefisto enganador...
Leiamos o texto DORME, pois no sono, mais do que no sonho, se escondem os mistérios, os arquétipos da Vida, que derrete o gelo da Inteligência...
 5
E sigamos com a divisão que o sonho introduz no sono...ou não fosse o poeta a súmula de tudo e dos seus contrários, tentando na divisão o Uno e o Todo que Hermes já definira na Tábua de Esmeralda: “o que está em cima é como o que está em baixo” fazendo deste mundo, que o Diabo não abandona, o reverso espelhado do mundo celestial, de onde afinal desceu, e do mundo infernal, a que a Barca da Vida o pode conduzir.
 6
Há nos textos que também vamos seguindo, uma alusão às Tecedeiras, que em Goethe são as Mães, e que todas tecem a Vida. No escuro dobam, enrolam, cortam os fios que serão do Destino: Inteligência (Conhecimento) ou Vida? Negro chumbo ou ouro puro?
 7
A consciência de ser ( “o que é eu estar a ver o Tejo a correr?” ) não impede o naufrágio da Vida, são demasiados os escolhos, poucas ou nenhumas as escolhas, que afinal se oferecem. A Água, elemento salvífico, dilui, mas não sublima.
A sublimação virá da última magia das pétalas das rosas com que os Anjos, dispostos a salvar a alma de Fausto, vão seduzir o Diabo. Mas em Goethe, não em Pessoa, o do desassossego sem fim. Retomando a linguagem da simbologia alquímica, Goethe era solar, Pessoa era lunar, e nesses opostos se uniam...