Sunday, April 24, 2022

DIAMANTE, de António Carlos Cortez

Passo de um conto breve e cheio de misterioso simbolismo (quantas vezes mais terei de voltar a lê-lo...porque se enterra alguém num caixão que é um barco (uma canoa justa ao corpo) e se deixa vogar entre as margens do rio que dividia os espaços da aldeia e sua comunidade familiar,partindo sem explicações e só voltando já velho, e mesmo assim sem que o filho,feito homem o fosse substituir, depois de apelos sem fim). De um conto breve que não decifro, para um livro de poemas em que o título define do que se trata: de uma pedra que também ela nasce das águas de um rio por onde correm muitas outras pedras e mãos apressadas se estendem para as apanhar. Pedras que serão lavadas, olhadas com cuidado (o afinar dos ritmos, do estilo)e depois cortadas com precisão geométrica, calculada, para que de cada face se possa extrair todo o brilho, toda a luz que contém.Falo do mais recente livro de poemas de António Carlos Cortez, cuja obra extensa já é bem conhecida de quem o aprecia e gosta sempre de o ler.Podemos abrir ao acaso e começar a ler: desde logo sobressai da leitura, sobretudo se a fizermos em voz alta, um ritmo camoniano, de pulsar emotivo, correspondendo à emoção expressa no verso que foi escrito. Há algo de lamento, nesse verso, e o ritmo, como numa composição musical, terá de respeitar o secreto compasso.Numa das badanas do livro alguém recorda outro, Jaguar ( escrevi no blog, outrora)e a conclusão de que "a poesia é o eco do vivido". Do vivido e do teorizado vamos encontrando ao longo das páginas e dos capítulos em que o autor dividiu a obra, muita matéria de reflexão. A.C.C. é um erudito, um poeta, crítico literário e professor que se ocupou com cuidado e muito amor da sua língua-pátria e nada mais natural do que encontrar nestas páginas expressões que brilham na escuridão de uma melancolia quase recorrente, e já expressa noutros mais antigos poemas. A epígrafe que abre NO PAÍS DO DRAGÃO,da autoria de Gastão Cruz, seu poeta e amigo de eleiçaão, (infelizmente falecido este ano)resume o queAntónio sente: "acreditar no tempo/o erro mais terrível". Pois Camões já tinha dito, "mudam-se os tempos mudam-se as vontades" e os nossos poetas bem dizem agora, sem problemas e com total entrega e sinceridade, mudam-se os tempos (ou mudam-se os corpos)mudam-se os desejos,e dessa entrega ou dôr pode nascer a arte. No poema TUA VOZ,um belo soneto,onde à voz da amada é devolvida a chama que nela arde, na articulação, nos seus acentos, na sua inflexão em que o poeta se distende, e se desnuda, terminando : "E aqui vem desaguar a tua voz:abertas fricativas, as líquidas que usas para me dares a voz que te cinzela..." (p.21) São variados os poemas em que as referências são linguísticas, como neste que citei, "vogais fechadas, consoantes nítidas, obtusas" ou adiante "abrir vogais" para resgatar "desse dia a outra música"(p.24) mas nunca a perfeição de uma gramática outra que não a poética se impõe na nossa leitura. é um poeta que fala, que procura, e usa o que de melhor tem, a sensibilidade de uma emoção aberta, entregue ao correr dos dias, que por vezes o diálogo com outros lhe permite e amplia (referi Gastão Cruz, mas há Sena,há Ruy Belo,há Fiama Hasse Pais Brandão,semi-escondida, Manuel António Pina, entre muitos).Na verdade, todos partimos de uma herança que pode até ser desconhecida, mas nos corre no sangue, nós que lemos. E António Carlos Cortez, que tem uma indiscutível vocação de erudito que estuda e lê como arte de ser,sempre voltado para o diálogo com outros, partindo ou regressando como quem volta a si mesmo depois de sofrida viagem que só o poema lhe permite evocar,repelir,absorver, talhando assim a pedra que só brilha depois de muito polida pelo que chamarei a dôr da vida.

A terceira margem do rio, de João Guimarães Rosa

Neste conto, da colectânea das Primeiras Histórias, há um homem que sem saber como nem porquê decide enfiar-se numa canoa, ir para o meio de um rio que atravessava a sua aldeia, e nunca mais voltar a terra, vogando por ali, envelhecendo com o passar do tempo enquanto o filho perplexo tentava perceber que decisão e sentido aquilo podia ter.Foram anos assim. Há um sentido oculto, nesta súbita decisão. Não podia ser mero capricho. O homem que fizera essa escolha, deixando para trás mulher e filho, era um homem transformado. Mas em quê ? No guardião do Rio? Por imposição dos deuses, ou do seu íntimo deus, que lhe dera tal missão? Que terceira margem era essa para onde ele se retirara, esse entremeio de vida, que se tornara o único possível? Era um entremeio de pura espiritualidade, pois ele não pescava, para se alimentar das águas,nem ninguém das margens normais lhe enviava regularmente comida.Como Caronte, vivia ali o seu destino eterno, mas sem obrigação de transportar ninguém. O RIO EXISTIA PARA SI, OU ELE SOZINHO E EXCLUSIVAMENTE PARA O RIO. Tratava-se pois de uma viagem, uma travessia da sua vida mais secreta e mais profunda, em que o afastamento das margens separadas era o objectivo da escolha feita: diremos uma busca, que seria bem ou menos bem sucedida, do seu inconsciente, onde o todo do sentido de uma decisão de mudança de vida lhe seria revelada. Passa o tempo, ele é já um velho,de cabelo e barba comprida, desgrenhada, desagradável à vista, a ponto de a dada altura, quando finalmente acede ao apelo do filho, o assusta de morte e o filho não vai ter com ele, foge aterrado para bem longe. Podemos dizer que a união das duas margens (os opostos dos alquimistas) não tiveram ali a união que o terceiro elemento (a terceira margem) teria permitido. Se pensássemo na arquetípica doutrina da alquimia, a terceira margem seria aqui o sal vitae, o sal da vida, sendo as outras duas o enxofre (masculino) e o mercúrio (feminino). Mais símbolos se poderiam procurar na magia oculta deste texto. A questão da terceira margem (invisível aos outros, mas vivida pelo homem) sobrepõe-se à imagem do rio e do seu barco, salientando deste modo a importância de um inconsciente que aspira a manifestar-se e no pleno isolamento e no silêncio que a margem invisível lhe permite assim o fará atravessar a vida. Pois é da vida que se trata, tanto como da morte. A vida, espiritualizada, como no célebre Axioma de Maria, sobre o qual Jung e seus seguidores tanto gostavam de meditar : do um nasce o dois e do dois nasce o três como quatro (ou como quarto, segundo outros). Sendo que o quatro é o número da completude, o número da pefeição, da Pedra sublimada. Leia-se Pedra como vida... Nas margens do rio, a mulher e os filhos, havia um irmão e uma irmã, corria com a normalidade possível. Veio mais família para ajudar às lides da subsistência a vizinhança, por muito que quisesse ajudar não conseguia. Não se falava em loucura do homem que encomendara a sua canoa bem justa ao corpo, bem talhada em boa madeira resistente, canoa que podia ser caixão.O filho preocupava-se com ele. Como se alimentaria, se vestiria nas noites frias, como escaparia a algum bicho maldoso. O filho era seu alter-ego, seu duplo, seu Eu ainda não solto do mim.O homem entretanto envelhecia, a vida era o que o levava para cá e para lá, mas sempre longe, sozinho e mudo, no rio. Pensou o filho: estará ele a cumprir uma Promessa ? Feita no alvor dos tempos? E correu para ele e gritou que já bastva de tanta entrega a tão grande sofrimento, ele, o Filho iria substituí-lo na canoa. O homem pareceu responder e começou a aproximação à margem onde se encontravao filho. Mas o filho não estava preparado para a morte, essa aproximação era o que significava, era a morte, de modo que se assusta e foge, tomado de pânico, e depois se arrepende: pois a morte exige que nos preparemos, mais ainda do que a vida, e daí o apelo fatal dessa terceira margem...