Thursday, December 17, 2009

Mário Avelar, a ficção

Mário Avelar publicou este primeiro romance em 2008.
Mas não podia ser mais actual a sua leitura nos dias conturbados que correm.
O tempo de que ele se ocupa, da Revolução de Abril vivida por jovens entre o Liceu e a Universidade, nascidos e criados em famílias burguesas uns e famílias politicamente mais evoluidas e activas outros, entre eles o jovem herói, faz reflectir sobre o tempo que vivem agora os jovens do século XXI, num Portugal que não assimilou por completo as lições da tão aguardada Democracia .
A verdadeira história de vida que se desenha na obra, e lhe confere um interesse acrescido de memória social, justificaria plenamente a recomendação de leitura.
Mas há mais: a narrativa distingue-se por uma qualidade que lhe é muito própria, correndo a um ritmo tão veloz quanto o das aventuras e das surpresas vividas, numa linguagem simples e directa, não descartando o coloquial, distanciando-se quanto baste com sentido de humor, o que faz do nosso exercício de acompanhamento uma aventura prazenteira.
O autor é um erudito (da área dos estudos anglo-americanos) que não exibe a sua erudição, mas nos deixa em subtexto a experiência e a grande cultura transversal que possui:
dos romances de um Sterne, por exemplo, de um Melville, de um Joyce que fez o seu retrato quando jovem, de um Faulkner cujo realismo foi chegando à modernidade portuguesa, de uma Virginia Woolf (autores que M.Avelar traduziu) - e fico por aqui, pois muitos mais poderia citar. Nós somos o que lemos, disse alguém. E um escritor é feito das suas muitas leituras.
Há uma outra dimensão, crítica e humorística que também distingue esta obra, sem que se perca no entanto o verdadeiro sentido do que nela se deseja preservar:
a memória de uma Revolução que atravessou uma sociedade envelhecida e à qual os jovens da época ( entre a surpresa, o entusiasmo ou as lágrimas, a militância, a distância ou a descrença) emprestaram as suas vidas, entregaram o seu futuro.
Nem que fosse apenas por esta razão, nós, os leitores mais velhos, que vivemos com outra idade aqueles tempos e nos reconhecemos nos episódios descritos, devemos recomendar uma nova edição, para novas leituras dos novos adolescentes e não só.

Friday, December 11, 2009

Mário Avelar, o jazz ao fim do dia


Mário Avelar, Académico, poeta, ficcionista com paixão confessa e manifesta em muitas das sua obras também pela Belas-Artes, sem excluir o Cinema, suprema arte dos tempos modernos, oferece aos seus leitores um pequeno livro de poesia por onde passa Coltrane, um dos míticos jazzistas que o inspira, entre outros vários músicos e pintores.
Editado na Black son Editors (2000) o título já é indicativo das escolhas dos autores e obras preferidas: PELA MÃO DE MUSSORGSKI,NUMA GALERIA COM ANJOS
Haverá música dentro dos poemas, haverá pintura para encantar os olhos enquanto se ouve essa música, abrindo as sensações à passagem de um tempo que mais do que nosso é dos anjos que pouco a pouco se darão a conhecer.
Os anjos, formas subtis, formas sublimes, que indisciplinam a alma.
Num dos poemas inspirado em obra de Ilda David (Encore-Incubus) Mário escreve:
"Às vezes sento-me na sala a ver Coltrane
no canal Muzzik.Vigil, 1965

Electricidade estática...
agita-se o modem...

www.whatisthematrix.com

Delette! Silencia-se o nome...
Már..má...my residual
self image.

E todavia não inflamei
o templo da deusa. Herosta...?
Pena idêntica:
a rasura do tempo.
Delette."
...

Continua o poema, atravessado por um quotidiano que interrompe, distancia, não vá o leitor esquecer-se do que é a condição actual do poeta (entre o real e o imaginário):
contempla, ouve, escreve, mas mais do que sublima interpela, apaga ou recupera, uma identidade que não deseja perdida na memória.
Os gestos e as fracturas que as rotinas impõem ajudam ao distanciamento que torna mais presente e mais premente a necessidade do poema, a sua escrita, a sua voz de substância ainda que descontinuada.
Descontinuar- para melhor perpetuar- é o ofício presente do poeta.
Ah, e os Anjos:
Estão no poema X, A PORTA DOS BOÁTIROS DE KIEV- ESCADA PARA A LUA
(Georgia O'Keeeffe)

"Afinal, tudo parece
girar em torno de anjos,
de sopros...ténues carícias
...
um sorriso ou um timbre...

que seria das palavras
sem o afago dos anjos?"


Mas eu recordo, com Rilke, que se alguma vez entre nós ecoasse a voz temível do Anjo, ou se ele nos tomasse nos braços, morreríamos sufocados de tanto desejo e ansiedade.
Todo o Anjo é terrível e o toque da sua asa uma ferida mortal.
Mas recordo ainda com Borges (citação de acaso): o que nos faz é mais o que lemos do que o que escrevemos.
Com Mário amplia-se a lição: o que vemos, o que ouvimos... tudo isso faz de nós o que somos e um pouco mais ainda.

Friday, December 04, 2009

Michel Giacometti


Album de homenagem a Giacometti, o sábio vindo de fora que gostava das coisas pequenas e grandes da terra, da nossa terra.
Um olhar de Outro mais atento, mais cuidadoso, mais carinhoso para o país solitário que Portugal ainda era.
Um olhar solidário.
São de MiguelTorga as palavras com que o livro começa:
"Não sei que vento o trouxe de terras estranhas. Sei que há muito aportou aqui e que, afortunadamente, criou raízes. Como que a dar-lhes alimentos, estuda as várias manifestações da nossa cultura popular, desde a música às danças, aos adágios, à culinária, às próprias mezinhas com que nos curamos.Foi desses tesouros - alguns definitivamente salvos pelo seu carinho - que, de resto, falámos largo tempo. ele a discretear e eu a sentir, emocionado, que tinha diante de mim um livro aberto da pátria".
A edição é muito bela, a arte da fotografia recupera a eternidade no tempo, o ser num espaço quase a deixar de existir.
Pena não haver um cd das recolhas de música popular que Giacometti fez ao longo dos anos, a acompanhar a edição...
M.T., Diário, vol.XIII