Sunday, June 28, 2009

Manuel Aurora, O Menino o Homem e o Rio


Perto das férias de Verão, com mais tempo para ler, a minha proposta é que se escolham livros de História, Biografias ou Autobiografias, Memórias - algo que tenha a ver com uma transmissão que ajude a recordar o que foram determinados tempos, as pessoas e as suas circunstâncias, na aventura sempre apaixonante da vida.
Escolhi desta vez uma autobiografia, a de Manuel Aurora, por várias razões: fala de si com muita simplicidade, descrevendo como nasceu e onde, como cresceu, que educação recebeu, e de que modo a sua vida primeiro se integrou e depois, por assim dizer se desintegrou nos tumultos variados do PREC (Processo Revolucionário Em Curso, como foi designada a tentativa de conquista do poder pelos comunistas a seguir à Revolução de Abril).
Manuel escreveu como quem fala, à noite, à roda de uma mesa de família ou de amigos, contando como faziam os antigos contadores de estórias. 
Diz dessa autobiografia que foi "romanceada": mas o artifício serviu apenas para encobrir os nomes verdadeiros das pessoas com que se cruza, ao longo dos anos de outrora e de agora; de resto podemos considerar o seu relato o relato fiel de um homem que precisou de fazer um balanço de vida, o seu, para nessa espécie de espelho ver reflectido um país e os seus naturais, a evolução-revolução-degradação ( ele assim entende o estado do país neste momento) as boas e más decisões tomadas por uns e por outros, as questões de lealdade, amizade e carácter - tudo o que ainda hoje se discute com paixão justificada, porque algumas desilusões, para quem teve esperança, foram demais.
Este é um livro cuja oralidade de estilo logo atrai.
O Menino, o Homem e o Rio.
Um livro escrito para os seus filhos, família, amigos e para aqueles leitores que tenham a curiosidade de saber como viveu quem de repente, nos piores momentos da Revolução de Abril, viu cerceados e perseguidos os seus direitos a um pensamento livre, ao exercício honesto da sua profissão, tendo de fugir para o Brasil com a família. Do Brasil, que ficou a conhecer como ninguém, temporária pátria  de que nos fala ora com algum sentimentalismo ora com distanciado humor, são muitos os momentos que poderíamos escolher para dar a ideia do que ali o autor viveu: desde a marmita que leva para o almoço, num primeiro trabalho, até à quase orgíaca degustação de vinhos com um outro patrão que gostava de partilhar com ele as aparentes subtis apreciações que ia fazendo pela noite fora. E Manuel sem se coibir: se sabia o que dizer dizia, se não sabia inventava, e tudo para mais uma noitada de boa disposição (ou saudade adiada):
" A minha defesa era dissertar sobre o pouco que sabia de vinhos, misturando a conversa com a criação de cavalos lusitanos, passando pelo porco preto alentejano, e ao de leve sobre os rojões e as diversas formas de fazer bacalhau. Mais uma taça, e eu agora dissertava sobre a indústria têxtil do Norte ou sobre os vidros da Marinha Grande, e entretanto já havíamos pasado pelos uísques, depois eram os champanhes e eu, quanto mais falasse menos conseguia beber. Pela meia-noite já estávamos nas despedidas à porta de casa, cada um com o seu copo na mão, a discutir , filosoficamnete, se a Alice no País das Maravilhas era virgem ou atrasada mental..." (p.255).
Entre momentos dolorosos e momentos jocosos se vai estruturando uma narrativa que nunca deixa o leitor aborrecer-se, nem perder-se no caminho: o caminho de uma vida.
De regresso a Portugal, ainda que sem fazer acusações nem guardar ressentimentos, decidiu falar desses como de outros assuntos, sendo  muito especialmente interessantes as descrições da cidade do Porto dos seus anos de menino, a cidade de Lisboa já dos anos 60, e a sua eterna pátria do coração, Ponte de Lima, com o seu rio e as muitas aventuras que as suas águas foram presenciando.
Rio que ele mantém vivo, a embalar-lhe o destino.
 

Friday, June 19, 2009

O Milionário de Lisboa



Com este título editou agora José Norton a biografia ficcionada do Conde de Farrobo, figura ilustre do nosso século XIX, injustamente votada ao esquecimento: a capital, como escreve o autor, não tem sequer uma rua com o seu nome. 
Há já alguns anos que entre nós as ficções de inspiração histórica se tornaram frequentes: mas nem todas possuem a alta qualidade de um trabalho prévio de investigação, feita em arquivos, nem sempre de fácil acesso, como é agora o caso.
A extensa e útil bibliografia revela que a documentação estudada ajudou a dar corpo e substância a esta obra, em que José Norton não cedeu à facilidade de, a coberto do género ficção, ignorar a realidade histórica e social que a suporta. Fez assim uma verdadeira biografia, ainda que ficcionada, desta personagem singular cujo nome conhecemos talvez por causa dos jardins do Conde Farrobo, do Jardim Zoológico, mas pouco mais.
Cito a nota da capa:
" A vida luxuosa do homem mais rico de Portugal.Uma existência repleta de histórias de amor, beleza, ostentação, pequenos luxos, prazeres e traição. Um final inesperadamente dramático, ao estilo das melhores óperas do século XIX".
Deixo de imediato uma sugestão: que o José Norton escreva o guião para uma série televisiva, ou o libretto para uma ópera...neste momento em que à cultura e à arte tudo parece faltar .
Referi o cuidado da investigação, mas sublinho agora a qualidade da escrita: fluente, elegante, misteriosa quanto baste no desenho e desenrolar da intriga, e acima de tudo amiga do seu leitor. 
(ed. Dom Quixote/Leya, Lisboa, 2009)

Friday, June 05, 2009

Hein Semke (1899-1995) por Teresa Balté


Em terceira reedição ampliada, Teresa Balté apresenta agora a vida e obra do pintor Hein Semke  que, desde a chegada a Portugal vindo da Alemanha, fez do nosso país a sua pátria, o seu permanente espaço de criação. Uma criação que abrange pintura, escultura, desenho,  cerâmica, gravura - já para não falar da sua escrita filosófica e poética, num natural complemento do seu longo e multifacetado percurso artístico. 
Como escreveu José Augusto França impunha-se conhecer esta documentação, "para a história": mas impõe-se mais, conhecer a sua obra, para a verdadeira história da criação artística europeia e portuguesa.
Semke chega a Portugal com a herança e a marca de um expressionismo feito da revolta e do idealismo místico que encontrávamos, nas primeiras décadas do século XX, na poesia e na produção dramática mais marcantes da Alemanha do tempo. Penso em Kokoschka, por exemplo: e vejo ecos da sua intensidade na côr e no dramatismo de alguma pintura de Semke. Mas há outros, como Barlach, muito de sua preferência, e esta linhagem tem de ser apreendida pelos críticos para fazerem jus à sua obra, no que tem de herança e de ampliação original.
A sua cultura era imensa e abarcava a filosofia, a literatura, o pensamento religioso de muitas e diversas tradições, que o levarão a fazer grandes livros de arte de que destaco o da Índia, entre outros.
A sua curiosidade pela tradição popular leva-o também a estudar as formas da criação dita primitiva - interessou-se aqui pela obra de Rosa Ramalho, a criadora de Barcelos que se tornou célebre com os seus Cristos, os seus animais, os seus Presépios e Ceias, hoje peças de colecção. Picasso fazia o mesmo em Paris, estudando as formas da estatuária africana.
Interessante é ver como a um artista todas as manifestações interessam - não há arrogância no olhar de um criador, há curiosidade e interrogação: ele interroga o mundo, que lhe responde, e das muitas respostas será feita a sua obra.
Como escreve Teresa Balté no prefácio, esta reedição foi pensada para 2005, por ocasião dos dez anos passados sobre a morte de Hein. Mas o tempo não conta, para a divulgação da arte e de um artista.Encontramos aqui muita matéria para ler e meditar: " trata-se de uma cronologia - de factos, textos e imagens " como diz a autora, contibuindo para o essencial do levantamento da obra.
Trata-se, na minha opinião, de um valioso documento histórico  e sociológico, pois o Portugal do meio artístico é aqui dado a conhecer, através dos artigos e críticas do tempo, no que têm de melhor e de pior.
Pois não nos iludamos: se nunca é fácil o caminho do artista, mais difícil se torna ao enfrentar, num país pequeno, à época fechado ainda sobre si mesmo, a mesquinhez de uma sociedade inculta, pouco viajada (não podendo por isso "comparar"  e conhecer é comparar), não podendo e por vezes não tendo mesmo querido, reconhecer a importância da originalidade da criação e das múltiplas formas e técnicas de abordagem que Hein Semke, o Wanderer tranquilo, à época foi expondo e propondo ao nosso meio cultural e artístico.
 Agora temos o livro, num gesto de evocação merecida.
Termino com um fragmento de um seu poema de 1949:
...
Não sou artista
Nem sou poeta:
Sou sonhador
E tudo o mais também.

É isto que nos faz falta, no século agora XXI: a coragem do sonho.

(colecção arte e artistas, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa 2009)