Thursday, June 15, 2017

Rebeldias

Disse noutro post que há uma linhagem de mulheres escritoras a que se devia dar atenção, em altura de prémios, e também do Prémio Camões, considerado o maior.
Não que à partida se deva proceder por critérios de paridade - só por si já seria ofensivo - mas simplesmente de qualidade literária e originalidade.
Cristina Carvalho tem uma produção regular que atesta da sua íntima ligação à escrita, talvez porque tem no ADN os genes de uma Natália Nunes e de um António Gedeão. 
É romancista, é biógrafa, escreve para adultos e para jovens numa prosa cujo estilo se reconhece pela marca (rara entre nós) da simplicidade directa, e não hesita em aceitar um desafio como o que a levou a escrever sobre os animais da Tapada de Mafra, com fotografias de Nanã Sousa Dias. Um ano a andar de noite à descoberta do que podia ser interessante para o seu leitor.
Cristina Carvalho tem essa disponibilidade generosa de dar atenção ao leitor, e reconhece a importância de dar a conhecer, aceitando uma agenda de convites das Escolas, que por vezes adivinhamos que possa ser carregada, num ou noutro momento da sua vida. Tem esta marca, também genética, de Rómulo de Carvalho, seu pai, o professor ilustre e muito amado por muitos que se escondia sob o pseudónimo de António Gedeão.
Cristina escreve, e pela escrita divulga, fala com os mais velhos ou com os mais novos, dá a conhecer o livro, a leitura, a descoberta do prazer da palavra. Cristina tem o seu mundo aberto à condição da palavra: mas que não seja hermética, que se diga por ela o que se tem a dizer, de forma quanto mais simples melhor. Nela a palavra é descrição, mas acima de tudo comunicação: de alguma ideia, sentimento, emoção...mas que se entenda. 
Nas suas páginas o português que lemos é mais do que escorreito, é perfeito no domínio do vocabulário utilizado. A mão parece rápida, mas é mão cuidadosa, que detalha, e a narrativa torna-se intensa, e quando necessário, por vezes até brutal.
Há rebeldia, na sua escrita, há a liberdade que só os rebeldes assumem, nos temas, nas situações em que as personagens se envolvem e no vocabulário usado, coloquial sem que deixe de ser o que é: literatura. Escreve para ser lida, e ser lida regularmente, adivinhando nós que a seguir a um livro publicado outro estará já na sua ideia. Também aqui uma forma de rebeldia. Quem desejasse sossego, dela não o espere: está viva e está presente. É esta a sua forma de criar, sempre em desassossego, um pouco ao modo de Pessoa. Ao ler este seu romance, Rebeldia, publicado agora, nas ed. Planeta, depois de ter recebido em 2016 o Prémio Autores/RTP pelo romance de Modigliani, fico a pensar quem seriam os autores que ela escolheria para antepassados literários: Camilo, mais do que Eça; dos neo-realistas ( de cuja prosa e atmosfera social encontro ecos) Alves Redol, um dos Mestres; Maria Velho da Costa, entre as portuguesas das célebres Cartas. Teria de lhe fazer uma entrevista: o que leu, o que mais gosta de ler, até ao dia de hoje. Ou o que relê, quando não lê...
Tudo o que lemos deixa marcas. Por vezes encontro frescos balzaquianos, na descrição das situações, das personagens, casas, janelas, jardins, vielas mais escuras onde o perigo espreita. Escreve, quem escreve por entrega, o que se vive e guarda na memória das sensações. Não é por acaso que Proust evoca o cheiro da "petite madeleine" e a partir dessa sensação
viaja pelas memórias do seu tempo de outrora, que a sensação arrasta.
Cristina deixa também ela a sua marca nas memórias recuperadas ou ficcionadas ao longo dos seus escritos. Em vez de afirmar "viajar, perder países", diremos de Cristina : viajar, ganhar países, os conhecidos, ou os da alma, sempre por desvendar.
Não foge a temas complexos, com o argumento de que são temas da moda. Vira-os do avesso, lança-os à nossa cara. Há ímpetos de violência no processo. Mas haveria rebeldia possível, sem algum momento de violência, mais ou menos cruel? Aborda a arte e alguns dos seus mais eminentes criadores, como Chopin, ou Modigliani. E como nos diz neste seu novo livro "desenha pessoas". Desenha-as como escritora, observando "o interior dos cérebros, os pensamentos, as idiossincracias, manias, hábitos, sentimentos. É isto que eu desenho" afirma.
Tem a reacção de um analista, e a pulsação que a leva a desenhar, seja em esboço mais rápido ou  com o cuidado de um retratista fiel, é o que dá outro impulso à escrita, e à leitura.
Uma última palavra:
Cristina é presença frequente, desejada e divertida, no facebook. Conversadora nata. Dialoga e tem gosto nisso. Comunicar, a sério ou a brincar é com ela.
Mas não nos iludamos: há uma seriedade muito severa e atenta à circunstância do outro, dos outros, na sua obra. E de si própria.
De vez em quando sentimos, ao lê-la, neste livro, que pode não haver mais vida, pode não haver perdão.


Tuesday, June 13, 2017

Prémios Camões


O Prémio Camões deste ano 2017 foi atribuído a Manuel Alegre, pelo mérito de uma obra e de uma vida.
Não se discute.
Prémios não se pedem, não se recusam.
Mas a propósito de um comentário que li, em que se listava um conjunto de outros possíveis candidatos, ocorreu-me, ao ler, que não se tinha incluído nenhuma mulher.
Durante anos, no Pen Club, que eu ainda frequentava, a minha proposta era, para o Prémio Nobel, Agustina Bessa Luís. Nunca aconteceu, o meu voto ficava pendurado.

Ao receber ontem o último livro de Maria Teresa Horta, cuja obra acompanho desde os primeiro poemas publicados na Guimarães Editores, penso que ela poderia ser a boa proposta para o Prémio Camões da próxima edição. 
Poesis, é o título deste livro que já comecei a ler. De um primeiro culto do corpo como matriz do ser e do existir em plenitude (numa época em que era pecado sequer em tímida alusão a mulher referir o seu corpo, um corpo que a cultura do tempo mantinha coberto e anulado) foi crescendo a luz do seu Verbo sobre o corpo da escrita, da palavra que é dada - mas somente aos poetas - e Teresa é acima de tudo uma poeta. Alumia a palavra num dizer que nada oculta, nem do corpo nem da alma, uma palavra que abre o centro das emoções inesgotáveis nela, de prazer, desejo ou contemplação.
Ao mesmo tempo sensual e rara, ei-la, neste último livro abrindo o cofre dos segredos. Um cofre cheio de amor fiel, que não se esconde, nem tinha que se esconder. Mas que também não se renega, em nenhum momento de algum dizer mais cru, ou mais cruel. É genuína, na sua entrega, como foi genuína outrora na sua recusa de um país que a fechava.
Ah, a poesia! exclama ela, na abertura, "Com o seu coração / de liberdade e sonho".
E partilha connosco o seu início:
Ab Initio
Primeiro escrevi
com breves murmurações
e lentos cuidados de asa

desabituada

do voo das das palavras

Depois ganhei pé

na fundura de mim mesma
na ousadia dos versos

onde se colhem

os êxtases
no corpo da escrita

Em seguida comecei

a assombrar os verbos
e a reinventar metáforas 

a sintaxe do fogo

os ícones do tempo
as dúvidas, os dilemas

Escrevendo poemas


e seguimos com ela, sua mão, sua escrita:

A Mão e a Escrita

Deixo a mão

correr pelo meu sonho

num sobressalto

sedento
no invento da palavra

pelo avesso da pena

e a lisura da pagina

Devagar vai contando a pulsão da espera: quem nunca a sentiu não poderá entender que assim termine:

...
no reverso do verso
no remorso fechado
num silêncio depressa

alucinado


Ou deste outro modo:

E se em cada poema
invento o voo
com a minha voz poética

eu escolho a lava


Que não se espere desta voz a suavidade mesmo que da paixão, acomodada.

Voa com asa livre, arde no fogo, não petrifica na lava.
Entre outras, esta evocação de Emily Dickinson é especialmente definidora de uma situação que se reconhece na diferença, apesar da igualdade (sendo ambas mulheres, com a sua circunstância...):
De mim tu és 
o avesso
sem eu saber qual o lado

que de ti me atravessa

Se o alumbrado
se o asceta
do nosso excesso o contrário

Se o todo numa mistura

do teu existir com regras
e o meu viver arbitrário

Não é só nas longas estrofes dos poemas anteriores em que fala das mulheres, das escritoras e do seu escrever, que a condição de ser mulher e escritora a surpreende e faz com que nos interpele, enquanto a si mesma se interroga. Ali estamos todas, com Emily, a quem Teresa honra com a sua companhia.
A não perder...