Tuesday, December 21, 2010

José Gil,O Devir-Eu de Fernando Pessoa

Já falei deste livro noutro post anterior, mas volto a insistir.
Deixo a ideia de uma prenda de Natal, ou de Ano Novo, ou de Dia de Reis, para os amantes de Fernando Pessoa. Como se poderia dizer de brincadeira, Pessoa primeiro estranha-se e depois entranha-se....para sempre.
No caso de José Gil, como de tantos outros pessoanos, é o que se verifica: o retorno aos grandes temas, com as suas perplexidades, que pedem mais reflexão sempre que os abordamos.
Da cidade e do quarto de Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, ao sensacionismo programado da Passagem das Horas, em Álvaro de Campos, discutindo pelo meio a relação com Ophélia, José Gil traz de novo aos seus leitores e aos leitores de Pessoa uma abordagem própria, lúcida, com a distância que o tempo cada vez mais permite.

Monday, November 29, 2010

Provérbios, Fernando Pessoa

Numa bela edição, a Ática regressa ao eterno amor que é Fernando Pessoa, em Portugal e no mundo.
Lembro-me de ler, quando jovem estudante em Coimbra, o heterónimo Ricardo Reis, na edição da Ática. Eu lia nessa altura sobretudo Pessoa e Sophia de Mello Breyner, além de Jacques Prévert, mas este não constava ainda da esfera da gente culta do tempo.
Pela mão deste investigador, Jerónimo Pizarro, que fez da obra de Pessoa o centro da sua actividade, e ainda bem, pois houve uma altura em que o espólio quase parecia esquecido entre o sono e o sonho, caros ao poeta vão saindo novidades, como esta.
O primeiro mérito, que saúdo, é ter recuperado para uma editora como a Ática, nesta chamada Nova Série um espaço que espero seja alargado a outros, poetas e prosadores.
Recordo Helena Cidade Moura e David Mourão-Ferreira como ilustres consultores no início dos anos sessenta, quando eu mesma, pela mão deles, ali publiquei poesia e romance.
Era um tempo em que os editores nos liam, falavam connosco e não apenas com o mercado. Nenhum deles, apesar de eu ser ainda tão nova e estreante me perguntou que tiragem média acha que pode vender?
Foi também nesses anos, e pela mão de Helena e de David, que li pela primeira vez Herberto Helder, e desde aí sempre, e festejo agora em pensamento os seus 80 anos, e um disco, lançado hoje, contendo poesia sua. O disco, para quem tenha curiosidade, é de Joana Machado e chama-se Travessia dos Poetas- Rosapeixe.
Mas basta de saudade e vamos ao Pessoa:
O grande interesse desta edição é mais uma vez verificar como era incessante o trabalho do poeta, tentando, pela escrita, pela tradução, pelos inúmeros projectos dos quais muitos nunca chegariam a bom termo, fazer pela vida ( para usar um termo já usado por António Mega Ferreira ).
Mas fazer pela vida sempre num espaço seu e muito próprio, o das letras, nacionais ou estrangeiras como seria aqui o caso.
Útil para o estudioso ou o simples leitor é a recolha paciente: são os provérbios portugueses que Pessoa foi encontrando em variadas fontes, de que J.Pizarro nos vai dando conta.
Em ano de celebração da República vale a pena distinguir o fac-simile da Bibliotheca do Povo, n.45, de Novembro, que Pizarro reproduz.
Sim, houve um tempo em que se dava especial atenção ao povo e às escolas, e se ofereciam, em pequeno formato, algumas boas bases de tradição e memória.
Na sua introdução, muito informada e cuidada, o autor faz o percurso comentado das fontes, tanto das que Pessoa citou explicitamente como daquelas que utilizou.
E seguem-se as transcrições do espólio, nas duas línguas.
Que a letra de Pessoa é difícil de ler e logo aí quem o transcreva merece prémio (se existe) e elogio - não há dúvida.
Mas quanto à capacidade de tradutor do nosso poeta, já ponho algumas reservas.
Nem sempre dar a conhecer ao mundo tudo o que ficou num espólio, mesmo de um grande, como é o caso, favorece a sua imagem. Pessoa traduz muito bem do inglês para português, como se vê pelas traduções de Poe, ou do mago Crowley; seria magnífico se nos tivesse dado algum Shakespeare, ou um Whitman, tanto do seu agrado (veja-se a biblioteca).
Mas já não consigo dizer o mesmo da "retroversão".
Provérbios, bem como frases idiomáticas, sabemos que não se podem traduzir à letra de uma língua para outra. Há que encontrar as formas equivalentes, próprias da tradição, memória e uso corrente de cada língua, de cada país para o qual se tente fazer esse trabalho.
E ao contrário do que muitos ainda e sempre defendem, Pessoa não era um bilingue-nato e não era perfeito, nem no inglês (nem no francês). Não me admira que o editor inglês, delicadamente, não tenha dado andamento ao projecto.
Falta que Jerónimo Pizarro, a quem de novo felicito pelo seu trabalho, nos diga se encontrou na biblioteca de Pessoa algum dicionário de provérbios ingleses que pudesse ter dado ao poeta a indicação correcta de como melhor traduzir, neste caso adaptar, os nossos exemplos aos outros, mantendo um pouco do ritmo, para já não dizer do sentido e da ideia.
Peço ao poeta que lá na sua esfera luminosa e distante me perdoe, nos perdoe.
Alguém devia fechar a arca, respeitosamente, como quem fecha um caixão...
Damos a lume o que ele talvez, se fosse vivo, pensando melhor, queimasse.
Dirão: mas o estudioso....é verdade, para o estudioso tudo é útil, daí o mérito do editor.
Mas haverá assim tantos estudiosos?
Se há, na era da digitalização, essa devia ser a forma ideal escolhida.
Escolho só um dos muitos maus exemplos possíveis:
"quem anda na guerra dá e leva", " who is in the war gives and takes".
Um nonsense total, para o hipotético leitor inglês.
Porque se no coloquial português sabemos que dar e levar é "dar e levar pancada" (porrada seria o termo mais popular) os termos "give and take" em inglês não têm este significado, e imagine-se a cara de espanto do nativo: gives what? takes what?
Enfim, acho que me fiz entender, em português corrente.





Friday, November 19, 2010

De Frente para o Mar

Este livro, concebido e coordenado pelo poeta e orientalista David Rodrigues, com o belo título que nos faz olhar de frente para o mar, seja na vaga inquieta da emoção ou num embalar mais suave de alma, é a minha escolha de momento.
Precisamos da meditação que a arte do Haiku japonês nos ensina : olhar atento, distância, aprofundamento, na era de vertigem que é a nossa.
Encontro, junto de David, amigos de outrora e de sempre.
Também o reencontro é algo de benéfico: fala da vida continuada.
Abrir o livro e ler, em páginas de acaso, permite descobrir como a escolha foi cuidadosa, como a unidade é íntima, é perfeita, em todos os elementos.
Uma tal sensibilidade e elegância merece, da nossa parte, o destaque e a gratidão.




Tuesday, November 02, 2010

Mais Ismos, evocando Hein Semke





Uma recente exposição de Gauguin, o Fauvista por excelência que vemos com os seus nús de jovens tahitianas quebrar alguns tabús epocais, fez-me pensar noutros artistas, com iguais "marcas" de estilo, sobretudo pela força do colorido e da expressão - no sentido do Expressionismo tal como foi definido pelos seus cultores, no início do século XX.
Afinal os "ismos" são de todos os tempos e de todos os espaços: a violência da côr, a velocidade da forma, a intensidade e espessura do traço podem ser encontrados num pintor como Hein Semke, por exemplo, no seu "exílio" português.
Como poderemos defini-lo, a ele que não gostava de definições?
A liberdade a que aspirava, no exercício da sua arte, transparece em todas as áreas que escolhe como campo de trabalho: as cerâmicas, as pinturas, as esculturas, os livros.
Só uma limitação, aquela que o material a usar lhe impõe : o barro ou o bronze não são o mesmo que o papel ou a tela.
Contudo e volto aos ismos, a modernidade da obra de Semke está patente em toda a obra produzida: formas livres, até mesmo libertárias (num Portugal que à época, anos 50-60, desviava com falso pudor o olhar pequeno-burguês que fingia não deitar sobre a arte); livre na obra, livre nas amizades, a maior parte do círculo dos surrealistas que a seu modo foram sacudindo arte e costumes enquanto viajavam entre Lisboa e Paris, e Paris e Lisboa; e com tudo isso, a permanente alegria da côr: nos corpos, nas paisagens de horizonte mais largo ou mais estreito, nas flores, nas árvores, fazendo da côr um verdadeiro elemento de suporte expressivo e simbólico, um meio de nos transmitir a energia de alma que era a sua.
Falarei de misticismo?
Talvez, pois houve sempre e manifesta-se sobretudo nas Esculturas e nos Livros uma dimensão filosófica no seu pensar de vida e obra.
Veja-se a terceira imagem que escolhi, de S.Francisco de Assis, um gesso policromado, de c. 1937. Mas se falarmos de misticismo teremos também de remontar a Lutero, à sua livre discussão do lugar do Homem no Mundo e de Deus no Homem.
Teríamos de falar da Consciência de Si na Arte, e da consciência do Outro em Si - a relação que dá universalidade à obra que se produz.
A recente exposição, na Galeria PERVE de um Cadavre-Trop-Exquis que reuniu Cruzeiro Seixas (que foi um dos amigos de Semke e de sua mulher, a poeta Teresa Balté) com Isabel Meyrelles e Benjamin Marques, fez-me pensar em como estes exercícios de rara elegância e beleza do mais puro surrealismo teriam ao tempo, com Cesariny ainda, fascinado o pintor que da pátria alemã trazia, como trouxe, a energia das raízes plurais.
E voltando aos ismos do nosso Modernismo, aqui e ali e acolá - o que mais importava era o que cada um por si próprio era capaz de oferecer aos outros: fosse nas tertúlias de casa (e relembro Natália Correia) dos bares ou dos cafés, fosse nos bairros antigos ou nas ruas por onde se passeavam os plurais de Fernando Pessoa, os inimigos de estimação de Almada Negreiros, ou outros do mesmo modo.
E Semke, até 1995, no meio deles.Podemos dizer que trouxe à melancolia nacional o seu animismo expressionista, a sua alegria solar.
A nota biográfica do Museu do Azulejo, muito completa, revela um artista de largo e universal convívio, onde não falta um Picasso, por exemplo, uma Vieira da Silva ou um Arpad, entre tantos outros.
Se tivesse de escolher agora um quadro em que se espelhasse a memória da totalidade de alguém como Hein Semke escolheria A TERRA E O CÉU, tinta da china sobre papel, de Cruzeiro Seixas.
Neste quadro, da cabeça coberta de penas de um guerreiro sai um cavalo que será voador, como o pensamento que voa, atravessando os céus. Esta cabeça, de rosto parcialmente coberto por fina mão, feminina no gesto, será a terra, ou o seu emblema; mas o cavalo é o céu, o espaço das Ideias do Belo, do Bom, do Verdadeiro, as energias da alma que Platão descreve no seu Fédon.
Evocar Hein Semke, a propósito dos fauvistas, dos expressionistas, e aproximando-o aqui dos ismos surrealistas, é evocar as energias da alma.
Deixo aos leitores a sugestão do catálogo da sua escultura, organizado pelo Museu de José Malhôa.


Tuesday, October 26, 2010

Infâncias


Mão amiga ofereceu-me este livro, obra-prima de invenção e bom gosto, de todos os pontos de vista: o objecto-livro, com o papel, o design da paginação e da letra, tudo agradável ao leitor que pega nele e o abre, ao acaso.
E a seguir o imenso prazer da descoberta de um autor que primeiro dissera que queria publicar três livros, um da infância, outro da mocidade e um último da velhice.
E que afinal, depois de ter escrito os primeiros textos, simplesmente conclui: "eu só tive infância".
Ah, poeta feliz, de escrita tão inteligente e tão subtil!
Com a sorte de ter na filha a ilustradora que nos oferece para cada texto poético belas iluminuras, também elas inspiradas, oníricas por vezes, e sempre coloridas com os tons mais íntimos e discretos da imaginação: também ela, por certo, dirá com o pai que sempre teve infância.
Manoel de Barros, que agora descubro, faz-me lembrar por vezes o imaginário de Guimarães Rosa.
Ambos nos dão a conhecer outras linguagens, outros seres de paisagens que nos são ao mesmo tempo longínquas e muito próximas: gente de sabedoria herdada, sem contaminação.
Como não invejar alguém que se dá ao luxo de poder afirmar:
" Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos.Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação (...)Então eu trago das minhas raizes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina (...) Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. Era o menino e o rio. Era o menino e as árvores"(p.187).
Penso na mística comunhão de um São Francisco de alma pura.
E tabém penso num Alberto Caeiro - o tal que Fernando Pessoa desejava ser, mas não era: o místico que pastoreava pensamentos, em vez de se estender simplesmente na terra, a olhar as copas das árvores, sendo de verdade a terra, o sol, o rio com a sua água.
Lição que Manoel nos dá, de sermos, em vez de querermos ou de fingirmos ser.
Leio, e agradeço esta prenda que vem do Longe.

Alfredo Margarido

Leio hoje num jornal de referência uma longo artigo de Diogo Ramada Curto evocando a memória de Alfredo Margarido, um universitário que se quis sempre à margem da rotina académica mais medíocre, por feitio, como se diz no artigo, mas não apenas por isso.
O sistema académico - sim, também no meio académico há sistema, não é só no futebol - não promovia no nosso tempo os melhores, mas os mais cordatos, os mais pacíficos, os mais seguidores de modas e mestres que nem sempre o eram.
Alfredo, insubmisso, com uma insubmissão que me faz lembrar, na poesia, Herberto Helder, não se podia dar bem com a tradicional Academia portuguesa.
Possuidor de cultura política vasta, bem como de cultura literária e filosófica, dificilmente se deixaria enquadrar nesta ou naquela imposição doutrinária. Havia ordem? Ele desobedecia!
Nas suas aulas obrigava a pensar, a estabelecer "pontes" que à primeira vista podiam não se ver (como no Conto de Goethe) : era necessário estudar para as construir, num discurso mais subtil e mais elaborado. Era preciso ter capacidade de entendimento e de conhecimento.
Faltou, nesse justo texto de evocação, uma referência não menos importante ao seu contributo, nas letras portuguesas, para o que se chamava de nouveau roman, com um romance pioneiro e de há muito esgotado ( e ignorado?): guardo-o, na estante que chamo "dos amigos" junto com outros que foram e são igualmente marcantes, embora não os reeditem: os editores são, como o resto do país, uma gente ora inculta ora ingrata.
Refiro-me a A Centopeia, de 1961, hoje em dia impossível de encontrar a não ser por sorte em livreiros antiquários.
Mas fica a sugestão: reedite-se uma obra pioneira pelo tema, a experiência africana, e sobretudo pela inovação da escrita.

Saturday, September 04, 2010

Anthero Areia e Água


De Armando Silva Carvalho um livro inspirado, de poesia ao mesmo tempo de reflexão severa e grave melancolia.
Com uma capa de Mário Cesariny, bela de tão sóbria, mais uma vez obriga a que se felicite a editora Assírio e Alvim pelo seu requinte e bom gosto.
Quanto ao titulo, que logo "agarra" e comove, resulta dessa capacidade que alguns poetas têm - como é o caso de Armando - de encontrar, com facilidade aparente, um título que seduz e ao mesmo tempo dá uma indicação subtil de orientação de leitura.
Sabemos que se trata de Anthero de Quental, poeta tão esquecido dos nossos manuais escolares e que foi um dos mestres de Pessoa. E a escolha das imagens da areia e da água são a síntese subtil de um percurso, o de Anthero, mas também o deste poeta que o está a ler e enquanto lê entra em diálogo com ele, com o seu pensamento filosófico e sua inspiração poética: um pensamento sólido e severo na relação com o mundo, uma inspiração frágil e que foge entre os dedos, como a areia e a água. Obra que se desfaz, enquanto a vida também ela de areia e água acompanha essa obra e tristemente se desfaz.
Armando Silva Carvalho é um poeta de grande cultura e grande, para não dizer notável, domínio dos géneros poéticos. Do verso livre ao soneto é exímio no realismo dialogante, na reflexão metafísica, na pura expressão dos sentimentos.
Armando, ao ler Anthero, tornou-o seu e é de ambos a melancolia grave, o distanciamento de uma vida (ou sociedade) em que já não se reconhecem e mesmo assim procuram entender.
Do poema quase epígrafe, ou melhor dedicatória evocativa de Anthero, cito apenas o fim (p.9):
Repito:
Entre a beleza funérea
E a pouca areia e água em que vejo afundar-se
A minha vida
Corre a extinta luz dum mundo
Já sem mundos.
E nessa cinza, como um desafio,
Consigo decifrar as pègadas de Anthero
A caminho do supremo
Nada.

Os poetas que amamos contaminam o nosso pensamento, as nossas emoções, a nossa escrita poética.
Armando Silva Carvalho, ao reler a obra de Anthero (As Cartas) caminhou com ele pelos espaços que a sua obra -toda feita de vida- ia deixando em aberto.
É o que fazem os grandes poetas: abrem espaços a outros poetas, como por vezes também a um leitor comum. Por isso devem ser lidos, estudados, dados a conhecer.
No poema, um dos últimos do livro, Destas Ilhas No Alto (p.99-100) exprime o poeta o que Robert Musil definiu como as duas experiências de maior provação da alma, o mar e a montanha:
É dos picos que olhamos.
Consciência do cimo destas ilhas e no alto
Dos altos nos trocamos.
Andamos por razões que as mãos
de deus, os pés dos condenados, as zonas mais
Absortas do mistério
Nos sabem entrever entre montanha e montanha
Sob um céu mental e derradeiro.
....
É do mais fundo dos fundos
Que abarcamos
Os arcanos da alma ocultos na belíssima cabeça
Do nosso monge em secreta ascese.
Patriota, fiel e socialista,
Doando o seu conselho, o seu pedaço de alma
A uma corte selecta
De homens do país, agrários, literatos.

Só nos faltou o meio,
Meio termo, meio mundo, mediana fala
No meio da natureza,
Planície do desejo nos lugares do corpo,
Uma voz mais usada, ousada,
Que se sabe perdida e segue a ciência do seu mal
Entre os terríveis fogos, entre abismos sonoros
Entre a carne que vive.

Deus permanece oculto, não se rompe o mistério que envolve a sua carne, a carne que vibra na manifestação da existência, nossa e dele. Pois se é em nós e só em nós que existe e toma consciência, ainda que dolorosa...nós somos, no universo imenso, a prova máxima, a voz que fala, ("entre abismos sonoros") mesmo quando se assusta e se cala.
Neste livro de Armando, o que acontece é a meditação em diálogo ora directa, ora mais íntima, metafísica e mística, do pensamento e da condição de Anthero, face a um universo que existe mas não responde.
Anthero desistiu, face ao mar, entre areia e água.
Ao Armando pedimos que não desista nunca.

(Retomo agora este post, em sua memória, no dia 1 de Junho de 2017, da sua despedida).

Wednesday, August 04, 2010

Inquietações Juvenis

Na realidade o título devia indicar que vou falar de Alexander Search, o heterónimo juvenil de Fernando Pessoa, cuja edição crítica também já se encontra publicada.
Da poesia de Search existe, para os leitores de língua portuguesa, uma excelente tradução de Luísa Freire, (ed. Assírio e Alvim, 1995) que obteve em 1996 o Grande Prémio de Tradução da Associação Portuguesa de Tradutores -Pen Club.
A organização dos materiais, feita por ordem cronológica, apresentando primeiro os poemas datados, a seguir os não datados e depois os que podem interessar devido à sua temática, serve os meus objectivos.
Pois aqui mais facilmente encontrará o leitor a semente da ideia, a imagem primeira e fundadora de motivos e temas que reaparecerão depois na obra do heterónimo ele mesmo.
Aqui, como no imaginado Jean Seul (este francês) veremos como em inglês, língua apesar de tudo mais familiar, devido à estadia do poeta na África do Sul, onde fez o liceu, surgem o que poderemos chamar as grandes obsessões: com a vida, Deus e o universo e a relação íntima com todas estas questões.
Há também um sentimento sempre presente - que não o deixará - de algum sentido único para o seu próprio destino. Sentido que buscará de todas as maneiras, e de que o imaginário ocultista fará parte. A dado momento transferirá para a pátria a ideia de uma vocação messiânica, oriunda das profecias de Bandarra e sobretudo dos escritos de António Vieira e da sua História do Futuro. Pessoa identifica-se com o génio de Camões, acrescentando essa visão mítica que transparece no ciclo da Mensagem.Dos poemas datados de 1904 logo o primeiro é sobre a morte: On Death / Sobre a Morte.
E como disse usarei, para facilitar a leitura, a tradução de L.Freire.
Trata-se de um soneto de qualidade banal, o poeta é ainda inexperiente, nesta altura, e o facto de usar não a sua mas uma segunda língua não o ajuda; o tom é solene e pomposo, e só o facto de fazer uma reflexão sobre a morte o torna interessante, pois tem 16 anos quando o escreve.
Mas recordemos Rimbaud e logo veremos a diferença da qualidade poética.
Pessoa começava, influenciado pelas leituras da escola, - já teria lido os clássicos, Shakespeare, certamente, o pensamento estava lá mas a genialidade só seria encontrada ao reencontrar a sua própria língua. Dirá um dia a minha pátria é a língua portuguesa, afirmação que pode ser entendida de diversas maneiras, mas também desta: na língua que é a nossa o ser mais íntimo, mais visceral, manifesta-se mais completamente.
Percorrendo os poemas de 1904 aí estão, como digo, os grandes temas, ainda que tratados de forma ingénua, ou incipiente. Também já surgem as Cíntias que merecem um Epigrama, ou umas quadras que aprecem resultar da leitura do Prometeu de Goethe, elogiando o mérito do trabalho:
Work/Trabalho
Não vieste à terra para perguntar
Se Deus, vida ou morte existem ou não.
Pega a ferramenta para trablahar
Pondo na tarefa cada pulsação.

Ferramente tens, não procures em vão -
Saúde, fé em ti, arte eficiente,
Capacidade, poder de expressão,
Coração sensível e força de mente.

Falei de Goethe, mas poderia também falar de Blake, ou antes dele John Donne, o grande metafísico inglês do século XVII. Há uma investigação por fazer, nos livros da biblioteca de Pessoa: verificar em que casos a contaminação até do estilo é mais directa, e se por vezes estaremos mesmo diante de versões livres daqueles poetas ou textos que mais amou. Não é crime esse ensaio de mão, é ele que prepara os futuros grandes momento de expressão total: quem não leu não escreverá nunca e nunca será grande escritor. Além do mais recordemos que tudo o que se publica agora é material do espólio, não foi escolhido, não foi preparado pelo poeta para divulgação. Estamos, ao ler agora os materiais da arca, a invadir a sua privacidade!.
Nos poemas de 1905 encontramos a Canção de Próspero /Song of Prospero que não deixa dúvidas quanto à leitura da peça The Tempest, de Shakespeare, a obra prima do fim da sua vida, sobre a qual escrevi no meu livro Teatro e Sociedade (ed. da Universidade Lusófona).Eis a tradução de L.Freire:
Minha vara partida no fundo enterrada
Para sempre vai ficar;
Mais fundo que nunca o prumo soou,
Afundarei meu livro no mar.
O encanto de Próspero desapareceu,
Arte e magia tudo morreu,
Mortos e jazendo no fundo do mar.

Nunca mais ligados a mim
Os alegres espíritos do ar,
O que os chamava vinha daí,
E está afundado no cavo mar.
Embora não veja da luta um renovo,
Desejo contudo esta vida de novo,
Jazendo pr'a sempre no fundo do mar.

Quem conheça a obra ulterior de Pessoa encontrará no poema Abdicação o desenvolvimento deste mesmo tema, de um poder oculto que se desejou, que se possuiu e do qual se abdica, reconhecendo para além do temporário benefício obtido os malefícios que igualmente acarretava.Abdicação é de 1921 e podemos ver como é profundo o tratamento dado ao impossível sonho de reinar, sobre os outros como sobre si mesmo.
Termina deste modo:
Despi a realeza, corpo e alma,
E regressei à noite antiga e calma
Como a paisagem ao morrer do dia.

Os primeiros versos não são menos belos nem menos significativos:
Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços,
E chama-me teu filho.
...

A noite é um tema recorrente, como negro abissal onde toda a existência se dissolve e se recria, onde tudo se origina, como no Ungrund de um Boehme, ou já no século XX de um Paul Celan, como escrevi em Literatura e Alquimia (ed. Presença. 1987) O fragmento à noite, que Pessoa também escreverá em 1914, dois excertos de Odes, pela voz de Álvaro de Campos, é como um apelo à Grande Mãe, ao grande corpo materno, universal, envolvente, de que nada sabemos e tanto desejamos:
.................
Vem, Noite, antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas,
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo
.....
E assim continua, de fôlego longo, inspirado, inexcedível como poucos poemas o serão jamais.
Devemos a Maria Aliete Galhoz a primeira e pioneira cuidadosa organização, leitura e transcrição dos primeiros textos poéticos do espólio, preparados para a ed. Aguilar em 1972.
Neste volume pudemos nós outrora estudar o Pessoa ortónimo, os heterónimos, os poemas em inglês ou em francês, os fragmentos do Fausto, verificar as datas - e a cronologia é sempre importante para o estudo de uma obra - e a somar a todo este imenso esforço, as notas, abundantes (e carregadas de informação até hoje indispensável).
Faz falta uma homenagem adequada ao pioneirismo, feito de amor à obra de Pessoa, de Maria Aliete Galhoz. Não havia, naquele tempo, apoios financeiros, meios técnicos adequados, disponibilidade de equipas constituídas para esse efeito de divulgação do nosso grande poeta.
É ainda hoje o meu livro de cabeceira, quando quero reler Pessoa.
Mas voltando de novo a Alexander Search, e aos temas que de origem não mais o abandonarão, recordo um último, The Circle/ O Círculo, de 1907.
Há aqui de novo uma evocação que nos remete para leituras feitas, neste caso de Goethe e do seu Fausto I, quando o herói, imbuído ainda de paixão pelo poder da magia, procura, num círculo, descobrir os segredos da natureza, do Espírito da Terra, como diz.
Transcrevo parte da tradução de L. Freire:
Tracei um círculo por sobre a terra.
Era uma estranha, mística forma
Onde eu pensei que, muitos, houvera
Símbolos mudos que a mudança enforma
E da Lei, fórmulas complicadas
Que, do ventre da Mudança, são entradas.

Segue o poema com a afirmação de que o pensamento está condenado ao símbolo e à analogia:
Julguei que um círculo encerrasse inteiro/ em calma, a violência do mistério.
E adiante, para concluir:
E assim, em cabalístico jeito,
Ali tracei um círculo, curioso;
O círculo traçado era imperfeito,
Embora em sua forma cuidadoso.
Profundamente, da magia ao falhar,
Lição tirei que me fez suspirar.

Deixarei ao leitor, ao estudioso, que se oriente agora para estas primeiras produções de um Fernando Pessoa juvenil mas muito lido, empenhado num percurso que Fernando Gil chamou num seu recente livro de devir-eu, e que é isso mesmo: de todas as procuras a mais importante, a de quem se é, a do que se é. Ser quem, ser o quê, e de que modo. Pessoa procurou de todas as maneiras.
A evocação num círculo do Espírito do Mundo, que ao manifestar-se humilha Fausto e o coloca também a ele numa busca da Alma Superior, tem aqui, em Pessoa, um eco não menos importante.
Não será a magia a força condutora, embora possa ter sido, a dada altura, a força que despoletou todo um processo: o de um Eu que a experiência da vida torna humilde, e por isso mais sábio e exemplar.




Monday, July 19, 2010

Princesas




Falando-se tanto hoje em dia em modelos de educação, achando uns que a jovens adolescentes de doze-treze anos, por exemplo, é mais útil dar a ler um manual de instruções de uma qualquer máquina do que um poema, quero eu, defendendo os que são de opinião contrária, trazer um exemplo de experiência pessoal.
Tendo lido em voz alta o poema de Pessoa Eros e Psique ( sei bem que tem múltiplas interpretações e das iniciáticas me ocupei noutros lugares, Universidade e não Escola Secundária) junto a ilustração feita por uma jovem na aula seguinte, que foi de desenho, depois de ouvir o poema
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante que viria
De além do muro da estrada.
...
A jovem fixou o que mais lhe interessava: a imagem dessa Princesa.
O resto do poema, que na realidade se ocupa da transformação e re-conhecimento do poeta enquanto cavaleiro que descobre a sua Anima arquetípica, como é óbvio não podia despertar o imaginário de uma criança (pois se até nos adultos esse entendimento muitas vezes é difícil...) cujos conhecimentos se prendem ainda aos desenhos de Walt Disney ou outros que pode ver no cinema.
Mas o importante é que, ao ouvir ler, uma imagem lhe surgiu, e depois a inspirou para o desenho da aula.
Falta o Cavaleiro, que ela pensa desenhar também. Um dia o fará.
Agora: dirão que também das instruções da máquina poderiam ter surgido imagens. Sim, mas num adulto, com humor, num criador que "desfizesse" as instruções, avariasse a máquina, a colocasse em estado de representação mais de banda desenhada moderna, ou post-moderna.
Há um tempo para tudo, e nesta idade em que se está ainda perto da infância, é crime não permitir que se goste e se sonhe com princesas: Pessoa deu o exemplo e já era um adulto.
Ele que teve em parte a sua infância perdida, quebrada pela vida, como dirá pela boca de Álvaro de Campos, soube sempre de como ser feliz na infância era importante.
E nós o que temos feito?
Temos apressado crescimentos empobrecedores que têm feito da Escola - lugar de privilégio por excelência - um espaço menos criador, menos feliz.

Thursday, July 15, 2010

Fernando Pessoa - José Gil


Aos estudiosos ( e também, por que não, aos simples curiosos) da obra de Fernando Pessoa, este pequeno volume de José Gil que nos tem habituado a leituras sóbrias, aparentemente simples mas sempre incisivas da criação em Fernando Pessoa.
Este devir-eu, esta forma de nos dizer de que modo, entre outros, Pessoa se foi encontrando a si mesmo - pelos caminhos múltiplos da sua própria obra - recolhe um conjunto de reflexões feitas a partir do Livro do Desassossego, da Correspondência de Ofélia-Pessoa, e da função do inconsciente da Sensação no poema Passagem das Horas.
Três ensaios, três leituras obrigatórias.
No meu caso, que sempre me apercebi da estruturação, da função e do peso do inconsciente na obra de Pessoa, é-me especialmente agradável, dezenas de anos depois, encontrar uma leitura que não é igual (nunca o poderia ser ) mas devolve a essa função da nossa psique o seu lugar na obra de um dos nossos maiores poetas.
Faltaria, mas não foi intenção do autor e a sua liberdade tem de ser respeitada, a referência ao papel que a paixão pelos conhecimentos esotéricos, iniciáticos, desempenhou, tanto na produção poética como na relação, que se viria a quebrar, com a sua namorada. Ofélia queria um casamento tradicional, filhos, família; Pessoa queria atingir, na Iniciação, o ponto mais elevado. Se o atingiu é segredo bem guardado - mas sabe-se que sonhou, sabe-se que estudou, aguardando um sinal..
Relembro, pois tem sido um trabalho de cuidadosa investigação, recolha e transcrição de inéditos do espólio, o volume X da edição crítica de Fernando Pessoa, sobre o Sensacionismo e outros ismos. (Mantenho, na citação, a escrita do original)
Num apontamento de 1914 declara o poeta que tomou a decisão de ser ele mesmo:
"Hoje, ao tomar de vez a decisão de ser Eu, de viver á altura do meu mister, e, por isso, de desprezar a idéa do reclame, e plebêa sociabilização de mim, do Interseccionismo, reentrei de vez, de volta da minha viagem de impressões pelos outros, na posse plena do meu Genio e na divina consciência da minha Missão. Hoje só me quero tal qual meu caracter nato quer que eu seja, e meu Genio, com elle nascido, me impõe que eu não deixe de ser.
Attitude por attitude, escolher a mais nobre, a mais alta e a mais calma.Pose por pose, a pose de ser o que sou.
Nada de desafios á plebe, nada de girândolas para o riso ou a raiva dos inferiores. A superioridade não se mascara de palahaço; é de renuncia e de silencio que se veste
(...) Recobrei - ao sentir que podia e ia dominar o desejo intenso e infantil de 'lançar o interseccionismo' - a tranquila posse de mim.
Um raio hoje deslumbrou-me de lucidez. Nasci.
(...)
D'oravante vêr se estudo, trabalho, elaboro. As minhas angustias espirituais continuarão em muitos pontos; mas n'um cessaram, na busca de mim que, no amago de tudo, me trazia irrequieto porque não me encontrára.
Marinetti, tudo isso - o grau superior de clown, mais nada.
Associar-me menos com os outros.
Deus esteja comigo".

Mas não esqueçamos que se trata aqui de recolha de fragmentos soltos, ordenados, quando possível, por datas, e que logo noutros momentos a decisão que parecia definitiva é contrariada por outras propostas e reflexões filosóficas e estéticas que recuperam, com minúcia, o caminho aparentemente antes recusado.
Na sua ânsia de extrema liberdade tudo afinal deseja experimentar.
O poeta é de pensamento irrequieto, como ele próprio reconhece, e o seu desejo de tudo abarcar, tudo pensar, sentir e sistematizar, mais para si do que para os outros, cai em contradições que, embora despoletem momentos de genial criação, não lhe permitem levar até ao fim um modelo que se pudesse dizer coerente, completo e disponível na sua universalidade.
Os modelos teóricos de Pessoa são, no fundo, para uso próprio, exclusivo, - não terá nem poderia ter seguidores, e é isso que faz dele, entre outras coisas, o ser múltiplo e único que ele é.


Monday, June 21, 2010

José Saramago, Evocação


No ano da morte de José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis.
Foi há bastante tempo, tinha acabado de ser lançado, com enorme sucesso, o Memorial do Convento.
Sentia-se que em Portugal um fôlego novo, algo messiânico, mas ao mesmo tempo lúcido na sua distância crítica, estava a animar as Letras. E o país precisava de uma tal animação, tal como as Letras de língua castelhana se tinham reanimado com Gabriel Garcia Marquez e os Cem Anos de Solidão.
A propósito de Saramago falava-se de um novo realismo fantástico na nossa prosa romanesca.
Ainda saboreando o prazer de discutir, no Pen Club, o Memorial, já José Saramago, à mesa connosco, o pequeno grupo que se reunia para jantar e falar de literatura, anunciava a sua nova obra, de que já tinha ideia formada e que nos resumiu, com a sua especial arte de contador. Porque ele era um magnífico contador de histórias e era um prazer ouvi-lo.
Era então Pessoa, e Ricardo Reis, e a narrativa do que seria o ano da sua morte, ele Reis que tinha apenas vivido num imaginário poético de alter-ego, de rebuscada heteronimia com laivos de filosofia esotérica.
Comprei o livro mal surgiu nas livrarias e tive pouco tempo depois a surpresa de um exemplar enviado pelo correio com gentil dedicatória .
Li nesta obra o prazer da invenção do detalhe, a minúcia que faltava na criação pessoana onde Reis era grego e vago, tão impalpável quanto os seus não menos vagos sentimentos, expressos de forma quase displicente, evitando o contacto, evitando a matéria e a materialização fosse do que fosse. Até as suas rosas o não eram: não picavam, como as de Rilke.
Saramago fez dele um homem, uma vida e não apenas uma obra.
Deu-lhe convívio com o próprio Fernando Pessoa, afinal eterno e verdadeiro criador, deu-lhe substância, sem lhe diminuir o mistério.
Para a contracapa o editor e o autor tinham escolhido, de Pessoa, a seguinte afirmação:
Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e do mês, mas tenho-os algures) no Porto, é médico, e está presentemente no Brasil., afirmação retirada de carta datada de 1935, que será o ano da sua morte.
A carta era mais uma das "enganadoras", regra geral destinadas a brincar com João Gaspar Simões, seu amigo, e outros possíveis admiradores da sua obra. Pessoa, na verdade, já tinha decidido, se vivesse, publicar na íntegra sob o seu próprio nome toda a obra atribuída aos vários heterónimos. Esta indicação de falsa data de nascimento - antes dele mesmo, que nasceu em 1888 - pedia o que Saramago fez de seguida:
para a mesma contracapa, escreveu então com idêntica ironia:
Ricardo Reis regressou a Portugal depois da morte de Fernando Pessoa.
E assim se lançará na aventura de um monumental romance, que termina com Fernando Pessoa a bater à porta de casa de Ricardo Reis:
Então bateram à porta. Ricardo Reis correu, foi abrir, já prontos os braços para recolher a lacrimosa mulher, afinal era Fernando Pessoa, Ah, é você, Esperava outra pessoa, Se sabe o que aconteceu, deve calcular que sim, creio ter-lhe dito um dia que Lídia tinha um irmão na Marinha, Morreu, Morreu. Estavam no quarto, Fernando Pessoa sentado aos pés da cama, Ricardo Reis numa cadeira. Anoitecera por completo (...) Fernando Pessoa tinha as mãos sobre o joelho, os dedos entrelaçados, estava de cabeça baixa. Sem se mexer, disse,Vim cá para lhe dizer que não tornaremos a ver-nos, Porquê, O meu tempo chegou ao fim, lembra-se de eu lhe ter dito que só tinha para uns meses, Lembro-me, Pois é isso, acabaram-se.
Ricardo Reis subiu o nó da gravata, levantou-se, vestiu o casaco. Foi à mesa - de -cabeceira buscar The god of the labyrinth, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, Para onde é que você vai, Vou consigo, Devia ficar aqui à espera da Lídia, Eu sei que devia (...) E esse livro para que é, Apesar do tempo que tive não cheguei a acabar de lê-lo, Não irá ter tempo, Terei o tempo todo, Engana-se, a leitura é a primeira virtude que se perde, lembra-se. Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais incompreensíveis, uns riscos pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse, mas mesmo assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo aliviado de um enigma. Saíram de casa (...) Então vamos, disse Fernando Pessoa, Vamos, disse Ricardo Reis. O Adamastor não se voltou para ver, parecia-lhe que desta vez ia ser capaz de dar o grande grito. Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.

Assim termina, de forma genial, a narrativa em que criador e criatura partem, ambos conhecedores de seu destino comum, vão lado a lado, Pessoa deixando o chapéu usual pois lá para onde iam não se usaria chapéu, mas Reis sabendo que o livro esse sim, ainda que de páginas ilegíveis, seria o companheiro perfeito: o livro de um Sem Tempo, para ser decifrado num próximo futuro que ali se construía, para Reis como para Saramago.
Nunca mais me esqueci de que foi pelo fim que Saramago contou que a ideia lhe tinha ocorrido. Já estava a trabalhar nela, começando pelo princípio, pela chegada de barco, com uma frase inicial muito semelhante e que fecharia o círculo, o ciclo de uma vida:
Aqui o mar acaba e a terra principia.

Que melhor exemplo poderia eu escolher para dedicar aos meus alunos de Escrita Criativa, neste fim de Semestre?
E como não repetir o que lhes disse na primeira aula?:
ler, ler muito, ler tudo e de todas as maneiras.




Thursday, June 03, 2010

Os fios de Ariadne


Cláudia Guerreiro retomará esta mesma exposição em 2010.
O título poderia sugerir a obra de Cesário Verde, Nós, onde os poemas são espelho da alma e da circunstância nacional, ao seu tempo, de uma cidade ainda rural, onde o olhar do poeta se cruzava com vendedeiras de formas abundantes e sugestivas, como descrevi no post anterior, ou com atitudes de inspiração decadentista, baudelairiana ou semelhante.
Não é contudo para o nosso Portugal que esta exposição remete mas antes para uma outra consciência de ser: a dos nós que nos atam ou desatam, a dos novelos que é preciso desenrolar descobrindo algum fio, talvez o mais secreto, que leva da nossa consciência e identidade própria à de uma geração, como a da jovem artista.
Esta é uma geração que sofre: na sua liberdade de escolha (os nós sociais, não os políticos, essa liberdade foi garantida); as vias de realização parecem estar libertas, mas estão presas: nas modas, principalmente, como sabem os artistas a quem cruamente se diz, não estás "no meio", ou "não estás in", ou "não chegas ao grande público", "não circulas"..Aí se fecha então o novelo, os fios contraem-se, endurecem e a alma fica presa.
Mas o criador sabe, ou sente, que em tudo há limite e em tudo há limiar: esse é o espaço que tem de ser transposto.
Quando se pinta, como quando se escreve, não é o mundo que conta, o olhar de apreciação ou desapreço de quem contempla ou quem lê: é o acto mesmo em que o criador se envolve, se projecta, se esconde ou se revela, num diálogo (uma procura, uma discussão, uma luta, um esforço carregado de determinação) que só ele pode ter consigo mesmo.
posteriormente esse esforço, que levou a alguma completude interior, algum acabamento, poderá ser entendido, ou mesmo recusado, pelo próprio ou pelos outros.
No acto de criação os outros, esse colectivo bem abstracto, não existem.Porque há um outro mais forte, mais íntimo, que se manifestou como alter-ego: o eu profundo do artista, o que fala às vezes nos sonhos, e sempre no imaginário que a sua produção revela e por um tempo se manteve oculto, como que inexistente.
Mas existe, e a mão que desenha, como a que escreve, acabará por trazê-lo ao de cima, expondo-o completamente.
Nestes desenhos de Cláudia é a mão que está presente: agarra, aperta, faz sangrar o novelo da vida; espeta agulhas que perderam a "domesticidade" do tricot, num coração já sem côr; e quando desfia o novelo eis que os fios a prendem, em vez de a libertar.
Penso em Ariadne, no fio que libertará Teseu e a fará morrer a ela, abandonada, de desgosto.
Aqui Ariadne fica presa, de mãos atadas, que é como diz impotente perante a adversidade do abandono, enquanto Teseu, ainda que embrulhado nos seus fios, foge, erguido no ar por um conjunto de balões.
Ela, que reinava no labirinto terrestre do rei Minos, dominando o terrível Minotauro, é apresentada, no desenho de Cláudia, como a mulher erguida, ainda que presa, imagem de um Feminino forte ( e que resistirá no mito que Ovídio nos descreve).
Ele, ainda que erguido aos céus, um Teseu todo preso nos fios, como se fossem já as tiras com que as antigas múmias eram preparadas para as suas últimas viagens: um herói que o não é, afinal, pois não cumpre a palavra dada, peca por desleal, não merece ser salvo e provavelmente (aqui acrescento eu) cairá por terra quando os balões um a um forem rebentando no excesso de altitude.
A uma figuração de um Feminino forte, resistindo de pé como uma árvore, contrapõe a artista um Masculino fraco, que já podia estar no seu caixão. Os balões mal chegam a elevá-lo.
Na verdade, a mão de Claúdia é um elemento importante, nesta composição: símbolo de autoridade, mão que desenha e que conduz, mão que decide e que condiciona, a seu modo, o significado simbólico deste novelo.
No mito, segundo Ovídio, Ariadne, sofrida, é elevada até ao céu por Liber ( o nome diz tudo) e quando se espalham no ar as pedras preciosas da sua coroa ela transforma-se e permanece na abóbada celeste brilhando com a mesma forma da coroa que o amante primeiro desprezara.
Mas o mito acrescenta algo mais: o astro (Ariadne, a coroa de pedras preciosas) fica entre um homem de joelhos e um homem que segura na mão uma serpente.
Temos assim a simbologia profunda desvendada:
Ariadne - Feminino mediador entre a culpa e a redenção que a serpente, com a sua simbólica própria de regeneração igualmente representa.


Sunday, May 09, 2010

Cesário Verde


Cesário realista é também idealista.E tal como os outros também leu Baudelaire.
As suas mulheres,tanto as as vendedeiras que atravessam as ruas, como as outras que ele idealiza, frágeis ou fortes, humildes "enfezaditas" ou burguesas "frígidas" fatais são, mais do que figuras que despertem sentimentos, suportes para falar da vida e do quotidiano da cidade. O seu Livro é o livro da Lisboa e da sociedade do seu tempo.Poderíamos dizer que há em Cesário um sociólogo, um político apurado, disfarçado de poeta. Remeto para uma obra que não perdeu actualidade:
de Helder Macedo, Nós.Uma leitura de CESÁRIO VERDE, Plátano ed., s.d.
Em epígrafe, Helder Macedo coloca um poema de Fernando Pessoa /Alberto Caeiro que elegeu Cesário como Mestre:

Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas coisas,
É o de quem olha para as árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos...

Não se poderia escolher melhor texto para enquadrar o que foi a obra de Cesário: poeta também ele "do campo na cidade" como Pessoa desejou, algo artificialmente, que fosse o seu Alberto Caeiro, o poeta que pastoreava os pensamentos como se fossem sensações...
Cesário é um poeta de sensações, mas que não perde o sentido crítico nem o gosto de uma ironia que se sobrepõe à intenção poética, prejudicando-a por vezes. Quero dizer que essa intenção se banaliza, ao ser simplificada num exercício de humor por vezes demasiado caricatural.
O seu tratamento da mulher - entre elas a de uma Passante - varia conforme o contexto em que a coloca e descreve.
Como que inspirado em Arcimboldo acontece-lhe ver no corpo de uma pobre e magra vendedeira de hortaliça a própria terra-mãe, gigantesca, de grandes seios "injectados" e opulentas "carnes tentadoras". É o seu modo de trazer a abundância imaginada do campo para dentro da paisagem cinzenta da cidade:
...
E eu recompunha, por anatomia,
Um novo corpo orgânico, aos bocados.
Achava os tons e as formas. Descobria
Uma cabeça numa melancia,
E nuns repolhos seios injectados.
...
Há colos, ombros, bocas, um semblante
Nas posições de certos frutos. E entre
As hortaliças, túmido, fragrante,
Como dalguém que tudo aquilo jante,
Surge um melão, que me lembrou um ventre.
E, como um feto, enfim, que se dilate,
Vi nos legumes carnes tentadoras,
Sangue na ginja vívida, escarlate,
Bons corações pulsando no tomate
E dedos hirtos, rubros nas cenouras.

Como observa Helder Macedo, " O ser humano vegetal que emerge da cornucópia trazida para a cidade pela frágil mensageira do campo é uma Deusa-Mãe arquetipal, uma personificação da Natureza (...) é a antítese do corpo da vendedeira que o transporta, caracterizada inicialmente como 'rota, pequenina, azafamada, esguedelhada, feia' (estrofe5), 'magra, enfezadita' (estrofe 19)'descolorida nas maçãs do rosto'/E sem quadris na saia de ramagens( estrofe 16).
Trata-se do poema Num Bairro Moderno e como diz Helder Macedo, que o comenta, nele "se dramatiza uma invasão simbólica da cidade pelo campo", evocando imagens e valores que na cidade de há muito se perderam (p. 147 e seguintes).
Noutro poema célebre, Na Cidade, que Stephen Reckert também estuda, na companhia de Helder Macedo, a cidade é descrita como velha Babel, corruptora:
...Sentado à mesa dum café devasso,
Ao avistar-te, há pouco, fraca e loura,
Nesta Babel tão velha e corruptora
.....
Eu, que bebia cálices de absinto,
Mandei ir a garrafa, porque sinto
Que me tornas prestante, bom, saudável.
....
E pus-me a olhar, vexado e suspirando,
O teu corpo que pulsa, alegre e brando,
Na frescura dos linhos matinais.

Via-te pela porta envidraçada;
E invejava - talvez o não suspeites!-
Esse vestido simples, sem enfeites,
Nessa cintura tenra, imaculada.
....
Atravessavas, branca, esvelta e fina,
Uma chusma de padres de batina,
E de altos funcionários da nação.
.....
E eu, que urdia estes fáceis esbocetos,
Julguei ver, com a vista de poeta,
Uma pombinha tímida e quieta
Num bando ameaçador de corvos pretos.

E foi então que eu, homem varonil,
Quis dedicar-te a minha pobre vida,
A ti, que és ténue, dócil, recolhida,
Eu que sou hábil, prático, viril.

O poema termina com a crítica que era, afinal, o fio do poema: não a jovem passante, mas os outros, os padres, "bando ameaçador de corvos pretos", os funcionários, os burgueses, em suma, sendo o seu olhar de poeta "viril" um artifício mais da pérfida cidade.Mas é esta o centro da atenção: a cidade e a sociedade revolta, degradada, não a pálida passante, que no torvelinho da ironia se esfuma e se apaga.



AS PASSANTES



Um dos poemas franceses de Rilke (1875-1927) trouxe-me outros à memória, entre eles o célebre de Baudelaire, que fez do motivo da "Passante" um verdadeiro topos literário, como escreve Stephen Reckert a propósito dessa Passante e de várias outras, de Cesário, Pessoa, Sá-Carneiro no seu ensaio "A Passante e o Futuro do Passado" (em Fernando Pessoa, tempo. solidão. hermetismo, Moraes ed.,Lisboa, 1978).
Mas começo com Rilke:
La Passante d'Été
Vois-tu venir sur le chemin la lente, l'heureuse,
celle que l'on envie, la promeneuse?
Au tournant de la route il faudrait qu'elle soit
saluée par des beaux messieurs d'autrefois.

Sous son ombrelle, avec une grâce passive,
elle exploite la tendre alternative:
s'effaçant un instant à la trop brusque lumière,
elle ramène l'ombre dont elle s'éclaire.

Por comodidade usarei a bela tradução de Gabriela LLansol, ainda que discorde da tradução de Passante por Passeante.
Aquela que passa e que vemos passar não representa, como arquétipo, o mesmo que aquela que passeia. Mas respeito a liberdade poética da tradutora:
A Passeante de Verão
Já vês a lenta e feliz,
aquela que se inveja, a passeante?
Na dobra da estrada, importa que seja
saudada pelos belos senhores de antigamente.

Debaixo da sombrinha, com uma graça passiva,
vai fazendo render a suave alternativa:
por um instante apagando-se a luz demasiado viva,
volta a chamar a si a sombra que a ilumina.

No ciclo de poemas franceses transparece por um lado a experiência do tempo que Rilke viveu em Paris, secretariando o temível e ingrato Rodin, enquanto se absorvia na escrita da sua obra maior, ainda que pouco lida em comparação com as Elegias de Duíno ou os Sonetos a Orfeu: Os Cadernos de Malte Laurids Brigge. Aqui se funda uma experiência literária, uma técnica de narração inspirada e inovadora, que fornece em parte as bases do chamado movimento Modernista. A um espaço do presente, descrito com olhar minucioso, a contraposição de um tempo que é passado e só no dizer da escrita se actualiza.
Os Cadernos...cuja edição data de 1910, começaram a ser a ser escritos em 1907- 1908, a partir de notas de memórias e viagens e sobretudo da estadia em Paris.
Os amigos de que se rodeava eram grandes vultos da época: Rodin, Emile Verhaeren, André Gide, Romain Rolland. No salão de 1907 descobriu a obra de Cézanne, e como leitura de sempre encontrou em Paul Valéry, que traduziu para alemão, o seu guia e influência.
A Paris de Rilke era o museu do Louvre, o Jardin des Plantes e du Luxembourg, as ruas que percorria a pé ou contemplava de longe, a gente anónima, sofredora e pobre, em contraste com a élite da cultura. Em simultâneo o grande isolamento do trabalho. Foi para ele não a cidade das luzes da ópera, dos musicais ou do teatro, mas a cidade do trabalho e mais trabalho: nos primeiros volumes de poesia, e nas notas dos Cadernos.
Vejamos agora o belo poema de Baudelaire (1821-1867) como que fundador do motivo e do mito que por trás dele se esconde (do Belo passageiro, da Beleza efémera, da Poesia, em suma, no que tem de inatingível).
A Une Passante
La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair...puis la nuit!- Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?

Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu na sias où je vais,
O toi que j'eusse aimée, o toi qui le savais!
(Les Fleurs du Mal, 1861)

Diferentes épocas, diferentes sensibilidades, diferentes reacções a uma passante: em Baudelaire, cultor de uma libertinagem assumida, a do excesso da vida e seus prazeres - neste caso a bebida - cortada no entanto pelo imperativo do poema e da absoluta necessidade de o dizer, de proclamar esse último reduto da alma que se encontra e se perde na busca do Absoluto indicível.
Daqui podíamos, sem esforço, passar para os poemas em que se descreve a temível, a avassaladora Beleza, o tal Belo do mundo platónico das Ideias, da Essência fundadora do Ser, ( o Belo, o Bom, o Verdadeiro ).
La Beauté (XVII)
Je suis belle, ô mortels! comme un rêve de pierre,
Et mon sein, où chacun s'est meurtri tour à tour,
Est fait pour inspirer au poète un amour
Eternel et muet ainsi que la matière.
...
etc. ou ainda:
Hymne à la Beauté (XXI)
Viens-tu du ciel profond ou sors-tu de l'abîme,
O Beauté? ton regard, infernal et divin,
Verse confusément le bienfait et le crime,
Et l'on peut pour cela te comparer au vin

Tu contiens dans ton oeil le couchant et l'aurore;
Tu répands des parfums comme un soir orageux;
Tes baisers sont un philtre et ta bouche une amphore
Qui font le héros lâche et l'enfant courageux.

Sors-tu du gouffre noir ou descends-tu des astres?
Le Destin charmé suit tes jupons comme un chien;
Tu sèmes au hasard la joie et les désastres,
Et tu gouvernes tout et ne réponds de rien.

Tu marches sur des morts, Beauté, dont tu te moques;
De tes bijoux l'Horreur n'est pas le moins charmant,
Et le Meurtre, parmi tes plus chères breloques,
Sur ton ventre orgueilleux danse amoureusement.
....
De Satan ou de Dieu, qu'importe? Ange ou Sirène,
Qu'importe, si tu rends, - fée aux yeux de velours,
...
L'univers moins hideux et les instants moins lourds?

Este sentido trágico do Belo, só é comparável, em Rilke, ao sentido trágico do Anjo nas Elegias de Duíno. Há contudo mais diferenças a notar entre estes dois poetas: a sensualidade de Baudelaire, explícita em relação ao corpo da mulher, ou a qualquer metáfora do feminino, não se encontra em Rilke, que envolve o feminino no véu de uma espiritualidade que o sublima- como no caso da Portuguesa, ou das referências aos amantes perfeitos.
Baudelaire vive o corpo, ama o corpo, descreve-o, como noutro poema, La Chevelure, e não perde a noção dos sentidos nem quando o corpo é velho, feio, deformado, repulsivo, como em Une Charogne. Disso não faltam exemplos, bastará ler ainda dos Tableaux Parisiens, além do poema da Passante a Danse Macabre, para ficar por aqui.
Cultiva-se um decadentismo que esconde uma ferida profunda, a do amor do Belo representado num Eterno Feminino irrecuperável.
Stephen Reckert encontra em Manuel Bandeira, poeta dos nossos dias (penso no século XX) a expressão de um mesmo motivo em idêntica situação - de passar- que desperta " a curiosidade erótica como meio de cognição, por assim dizer, metafísica, transmutando a 'passante' média ou alta burguesa em princesa de conto de fadas, com o fim evidente de acentuar até ao extremo a sua inacessibilidade" (p. 51 da obra citada):
Aquela cor de cabelos
Que eu vi na filha do rei
-mas vi tão subitamente-
Será a mesma cor da axila,
Do maravilhoso pente?
Como agora o saberei?
Vi-a tão subitamente!
Ela passou como um raio:
Só vi a cor dos cabelos.
Mas o corpo, a luz do corpo? ...
Como seria o seu corpo?...
Jamais o conhecerei!
( A Filha do Rei )

Poderíamos, quanto aos baudelairianos nacionais, ir então espreitar Cesário Verde, Mário de Sá-Carneiro, Fernando Pessoa, na companhia de Reckert. Mas ficará para outra vez.
São de Klimt as imagens escolhidas.




Thursday, May 06, 2010

Árvores do mundo

Magdalena Tulli é uma escritora polaca cuja obra não é por enquanto conhecida em Portugal.
A versão inglesa deste seu primeiro romance, Sonhos e Pedras, datado de 1995, permite desde logo adivinhar uma grande sensibilidade poética e um forte poder descritivo. Magdalena é psicóloga e tradutora, tendo traduzido Marcel Proust e Italo Calvino, escolhas que nos confirmam a impressão com que ficamos ao ler a sua prosa: a um poderoso imaginário da cidade, Varsóvia, neste caso, une-se a meditação de um Tempo que se reconstrói nela e a partir dela, como a Árvore do mundo descrita na primeira página.
É deste modo, simbólico mas muito directo, que a autora nos coloca no Centro - da cidade e do mundo- sem mais perda de tempo ( o Tempo, o precioso transformador de pedras e de sonhos).
Cito do primeiro parágrafo:
" A ÁRVORE DO MUNDO, como qualquer outra árvore, no começo da estação da vegetação (esta é a frase que o tradutor inglês escolheu, eu talvez dissesse antes floração), abre pequenas e delicadas folhas douradas que com o tempo adquirem um tom verde escuro e um brilho prateado. Depois tornam-se amarelas e vermelhas como se estivessem a arder em chama viva e depois de terem ardido...tornam-se castanhas e caem no chão...como papéis transformados em cinza..." (p.7).
Esta árvore é uma metáfora da Árvore da Vida, como se vê adiante:
" Quando a estação da vegetação chega ao fim a árvore do mundo está carregada de frutos. Os frutos amadurecem, caem, apodrecem. Em cada fruto há uma semente e nessa semente o germe de uma árvore e dos seus opostos, a copa e a raiz...O fruto pertence à árvore mas contém em si mesmo uma futura árvore completa, em simultâneo com o fruto que nela vai nascer "(p.7-8).
Não será necessário recorrer à primeiríssima imagem da árvore Ygdrasil, a árvore cósmica que une céu e terra, fortalecendo o poder da imagem do círculo como símbolo de totalidade contida e perfeita em si mesma.
Outras imagens ocorrem, como a árvore da Kabala, de raízes plantadas no céu e copa enterrada na terra, como se a perfeição do redondo da copa (o Todo) só nas profundezas mais recônditas do ser e da existência fosse possível de encontrar.
Mas a autora não pretende, desde logo, apontar uma via mística e sim conduzir o leitor ao coração da cidade:
" As cidades que amadurecem na árvore do mundo estão contidas na sua forma, como maçãs. Cada uma é igual à outra . Cada uma é diferente" (p.8).
Seguem-se descrições :um rio, ruas, um jardim zoológico, habitantes que sabem a côr das nuvens e que sabem ainda que a cada coisa que lhes é dada corresponde outra que lhes é tirada. Cada olhar é acompanhado de uma consciência de perda" (p.8).
Deste modo, reflectindo sobre o que se perdeu ou perde ainda e o que se poderia ter ou ter tido, a autora inscreve o tema central do que vai ser esta obra: a partir da imagem da árvore do mundo, seus frutos e sementes, a maçã da cidade, suas pedras, seus espaços e tempos, sendo o Tempo o grande escultor que tudo transforma e recupera.
Proust anda próximo, principalmente das últimas páginas, em que já se fala do tempo abertamente.
Mas por enquanto a proximidade que se sente é mais a de um Blake ou sobretudo de um Rilke, de cujas árvores, frutos, copas redondas, sombras, não se pode escapar ao ler este princípio.
Falemos pois de Rilke e da sua nogueira, na cidade de Paris:
Árvore, sempre no meio
de tudo o que a rodeia
Árvore que saboreia
a cúpula inteira dos céus.
O imaginário do ser redondo, para usar as palavras de Gaston Bachelard, impõe-se aqui:
" O mundo é redondo em volta do ser redondo" (G.B., La Poétique de L'Éspace,p. 214).
E os versos de Rilke vão erguendo em direcção a Deus a árvore que escolheu:
Deus vai aparecer~lhe
e para que tenha a certeza
dá forma redonda ao seu ser
e estende-lhe os braços maduros.

Árvore que talvez
pense por dentro.
Árvore que se domina
dando-se lentamente
a forma que elimina
os acasos do vento!

Podemos falar, com Bachelard, de um imaginário do ser perfeito, neste poema de Rilke; mas podemos, com Magdalena Tulli, nesta obra, igualmente falar de uma simbólica muito própria, muito íntima, da sua relação com a cidade:
o fruto, com o tempo, com o verme que o rói; e a semente, com o mesmo tempo, do renascimento perpétuo.
Os sonhos, no romance de Magdalena, acabam por moldar as pedras, devolvendo-lhes a forma primitiva ou parte dela; vencem os "acidentes" da matéria, sem permitir que a marca funda da existência se disperse.
A árvore, com o seu fruto, é forma contida na multiplicidade do devir.

(Dreams and Stones, trad. Bill Johnston, archipelago books, 2004)

Thursday, April 22, 2010

Brilho no Escuro


Outras ocupações me deixaram um pouco afastada do blog, mas não há coincidências e aqui regresso pela mão amiga de quem ama a literatura e arte e me envia outros números da revista Brilho no Escuro:agradeço a Isabel de Sá, a Graça Martins e ao João Borges, que me anuncia a preparação de um n.4.
Estejam atentos.
Podemos agora ver melhor como de um onirismo sarcástico, fazendo evocar alguns dos poemas e das collagens de Jacques Prévert bem como as leituras apaixonadas da obra de Comte Lautréamont - a grande Bíblia do surrealismo em França e entre nós - as criadoras partiram para a expressão mais intensa, quem sabe se mais dolorosa, dos atamentos da alma de que as cordas e os nós são a marca visível e quantas vezes sangrenta.
Tantos e tantos anos passados, e as almas sangram na mesma. Podemos dizer, como Verlaine "em diálogo" com Rimbaud:
Chora-se no meu coração
como chove na cidade
Verlaine chorava o amor perdido de Rimbaud, nós choramos hoje a esperança traída, o horizonte fechado, e só na arte temos refúgio, nos criadores que continuam presentes: o seu dizer torna-se o único dizer possível, na pintura, no poema, na ilustração, neste caso concreto destas revistas de fulgurante brilho..
Por um lado são eles que nos apontam novamente o caminho, como fizeram outrora (nos anos sessenta, os anos da "verde" esperança dos Verdes Anos) .
João Borges, partindo de uma título de Agustina Bessa Luís, oferece um ciclo de poemas:
Canção Diante De Uma Porta Fechada
...
Diante de uma porta fechada, estou sentado e canto. Para a chuva, para o que está do outro lado.
...

Este verso é uma entrada em diálogo com o espaço de um quarto, de uma cidade onde também chove, como na de Verlaine, uma entrada em diálogo com a leitura íntima de uma autora, uma obra (foi de início Agustina) é de seguida Irene Lisboa, a minuciosa, a ciosa da sua escrita, a tão esquecida apesar de tão inscrita no mundo. Um mundo fechado.
Interessante é ver como os poetas, através das suas obras, falam uns com os outros, como no tempo o diálogo pode não ter interrupção, é uma questão de acaso e de momento.
Mas:
O livro tem de estar ali, tem de estar disponível, como a pintura tem de ter direito à sua legítima parede, a ilustração à folha que já chama por ela, clama desesperadamente por ela, para ser um tempo que se torna espaço, como em Parzival acontece ao reino do Graal, um tempo mágico que se torna actual, presente, só ali, para cada um e para todos, para sempre.
Não me esqueçam, pinta Graça Martins na imagem que escolhi para o post, e eu digo com ela, não a esqueçam, nem a ela nem a nenhum destes nossos compagnons de route!